01 de Agosto de 2018, Quarta-feira: Por que se tornou eterna minha dor, por que não sara minha chaga maligna? Para mim te tornaste como miragem de um regato, como visão d’águas ilusórias (v. 18).

Leitura: Jr 15,10.16-21

No livro de Jr há cinco “confissões” do profeta (11,18-12,6; 15,10-21; 17,14-18; 18,18-23; 20,7-18) nas quais se percebe a carga da sua missão, o conflito entre pessoa e ofício. Pela primeira vez na antiguidade, os sentimentos de um indivíduo se fazem ouvir. Só podemos compará-los com as “confissões” de St.º Agostinho, de onde os exegetas tiraram o título.

Provavelmente, o próprio Jeremias inseriu estas confissões no seu livro, porque é difícil imaginar que um discípulo tenha colocado expressões desesperadas e blasfemas na boca do venerado mestre. São poesias inéditas, no estilo de salmos de lamentação e terminam, às vezes, num oráculo (resposta de Deus).

A Bíblia do Peregrino (p.1888) descreve o dilema de Jeremias: Se Deus não faz caso de sua intercessão nem lhe permite, vale a pena continuar na função de profeta? Além disso, os seus oráculos são ameaças repetidas que não dão lugar ao consolo, antes, lhe provocam antipatia e hostilidade. Finalmente, lhe fizeram saber que tudo será em vão, que o povo não se converterá, que o castigo final chegará. Parece que sua função é permitir que Deus comente no desfecho: “bem que Jeremias o disse a eles”. Estranho destino: ter nascido para ser profeta (1,4) e ser profeta para agravar a culpa e precipitar a desgraça. O estilo é impressionante por sua sinceridade e audácia: o autor de Jó aprenderá com ele.

Ai de mim, minha mãe, que me geraste um homem de controvérsia, um homem em discórdia com toda a gente! (v. 10a).

Levando uma vida cheia de conflitos e sofrimentos por combater toda espécie de injustiças, Jeremias se queixa, lamenta, confessa e protesta. Há de levar o sofrimento diante de Deus, mas o tempo do sofrimento é indefinido. Aqui, ele começa sua queixa amaldiçoando a si mesmo, o seu nascimento (em 20,14-18 no final da confissão), como depois Jó 3,2-16.

 Não emprestei com usura nem ninguém me emprestou, e contudo todos me amaldiçoam (v. 10b).

Como os oradores no templo com os salmos de lamentação, Jr confessa sua inocência. As relações comerciais provocam pleitos, porque o fiador tinha de reclamar o dinheiro (Eclo 29,1-7) e quem recebeu o empréstimo buscava subterfúgios para não pagar ou para adiar o pagamento.

Nossa liturgia saltou os vv. 11-15 (os vv. 12-14 correspondem a 6,29 e 17,3s).  A conduta de Deus parece estranha porque é paciente com os injustos e deixa o justo sofrer e perecer. Deus não deveria vingar o profeta que por servi-lo se encontra desacreditado?

Quando encontrei tuas palavras, alimentei-me, elas se tornaram para mim uma delícia e a alegria do coração, o modo como invocar teu nome sobre mim, Senhor Deus dos exércitos (v. 16). 

“Quando encontrei tuas palavras”, lit. “tuas palavras estavam ao alcance” (eram encontráveis), as palavras que o Senhor dirigia a Jeremias diretamente (cf. sua vocação em 1,9) e talvez também as palavras de Deus escritas. Podem se referir aos oráculos iniciais de esperança e consolo, dirigidos aos israelitas do norte, em todo caso, soa como lembrança nostálgica do primeiro sonho juvenil.

A palavra de Deus é alimento espiritual (cf. Ez 2,9-3,3; Ap 10,8-11; Sl 19,9.11; 119,103.131; Jo 4,34; Hb 6,5; cf. Dt 8,3; Mt 4,4p), “delícia e alegria para meu coração”; na Bíblia, o coração significa menos a vida afetiva que o centro da pessoa toda (cf. Ct 3,11; Sl 119,111 etc.)

“Invocar teu nome sobre mim”, expressão usada em relação ao Templo (7,10s.30; 14,9; cf. 1Rs 8,43; Dt 28,10). Invocar o nome de Javé sobre o lugar que ele escolheu (o templo em Jerusalém), o homem proclama a presença de Deus nesse lugar e o submete à jurisdição exclusiva dele. Deus tem o direito de exigir certas condições para que possa se apresentar nesse lugar. Aqui, a palavra de Deus substitui o culto vazio, e a pessoa do profeta, como porta-voz de Deus, substitui o templo tornando-se o lugar da presença de Deus (cf. Jesus em Jo 2,20-22p; Mc 14,58p)?

Não costumo freqüentar a roda dos folgazões e gabo-me disso; fiquei a sós, sob o influxo de tua presença e cheio de indignação (v. 17).

A conseqüência da sua entrega a Deus é ficar “a sós”. As palavras divinas que devora com prazer o enchem por dentro da cólera divina, que tem de derramar em forma de oráculos (6,11; 10,25). Assim o profeta fica isolado, na margem da sociedade e do politicamente correto; a vocação lhe impõe terrível solidão. Lit. “Eu não sento no grupo dos que se divertem, para me alegrar” (cf. 16,8). Gozadores, ricos e orgulhosos são igualados: é a categoria maldita pelos salmos, escritos sapienciais e pelos evangelhos (Sl 1,1; 26,4s; 49; 73; Pr 1,22; 21,24; Lc 6,24-26; Mt 5,3s).

Por que se tornou eterna minha dor, por que não sara minha chaga maligna? Para mim te tornaste como miragem de um regato, como visão d’águas ilusórias (v. 18).

Como depois Jó, Jr confessa sua inocência e pergunta o “porquê”. Sofrendo sem fim (“eterna minha dor”), passa dos limites e compara Deus com um riacho ilusório, “visão de águas ilusórias” (lit. águas nas quais não se pode confiar cf. Jó 6,15-20) em vez de “fonte da água viva”, distorcendo a imagem de Deus em 2,13 (cf. ver Jó 6,15s e a leitura de quinta-feira passada). O pleito apresenta este balanço: bons serviços mal pagos, boas palavras mal cumpridas. Terá Deus razão também neste pleito?

Ainda assim, isto diz-me o Senhor: “Se te converteres, converterei teu coração, para te sustentares em minha presença; se souberes separar o precioso do vil, falarás por minha boca; os outros voltarão para ti, e tu não voltarás para eles. Em favor deste povo, farei de ti uma muralha de bronze fortificada; combaterão contra ti, mas não prevalecerão, porque eu estou contigo para te salvar e te defender, diz o Senhor. Eu te libertarei das mãos dos perversos e te salvarei dos prepotentes” (vv. 19-21).

Por esta indagação de comparar Deus com um rio ilusório (v. 18), Jr precisa-se “converter”. Deus responde sem dar explicações, antes, reiterando suas exigências. Aqui, como em 12,5, não tranquiliza a luta interior do profeta, antes a condena como “vil” e exige do profeta uma nova “conversão”, que ele sanciona, renovando, quase nos mesmos termos, as ordens e as promessas da vocação (vv. 20s; cf. 1,9. 17-19). A promessa de tornar-se “uma muralha de bronze fortificada” (cf. 1,18) por fora, enquanto o interior do profeta está revoltado, contém pouco consolo. Mas Deus promete sua presença salvadora e libertadora (cf. leitura de quarta-feira da semana passada).

“Se te converteres, converterei teu coração”; expressão típica do estilo jeremiano (cf. 17,14; 20,7). O profeta sublinha, assim, a ligação estreita entre ação humana e ação divina. A mesma palavra hebraica é traduzida por “converter, voltar, retornar”. Pode-se traduzir: “Se tu voltas e eu faço voltar” (ou: e eu te permito voltar), ou: “Se retornas, eu te farei retornar”. Em 1,17 tem a mesma idéia, mas com maior insistência sobre a boa vontade do homem que torna possível a ação de Deus nele. Por outro lado, o homem deve reconhecer que se Deus não age nele, sozinho nada pode (cf. 31,18). “Se retornas, eu te faço retornar… Eles retornarão a ti, mas tu não retornarás a eles”. A solidariedade com o povo não pode consistir em afastar-se de Deus junto com eles; o profeta tem de voltar e arrastá-los.

“Sustentar (lit. ficar de pé) em minha presença” Esta é a atitude do servo diante de seu senhor e especialmente a do homem de Deus diante de seu Senhor na intercessão, no louvor, na escuta da Palavra (cf. 18,20; 1Rs 17,1; Sl 106,23)

A boca do profeta tem de ser purificada (6,29; Sl 12,7). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.741s) comenta: “Se, em vez de palavras levianas pronunciares palavras de valor…; lit. “Se expressares algo valioso e não vil” (se medires tuas palavras ao invés de te permitir falar qualquer coisa). Os comentadores judaicos interpretam conforme o aramaico: “Se tirares o nobre do vil” (isto é, se converteres os malvados para a justiça) – “tua boca será minha”: lit. “tu serás (novamente) como a minha boca”: as palavras do profeta serão novamente palavras divinas. O profeta não é apenas alguém que fala: é o “portador” de outra pessoa. Prioritária para ele, cronológica e metafisicamente, é dependência em relação àquele de quem ele deve transmitir a palavra, cf. 1,9; 5,14; Ex 4,16; 1Rs 17,24…

 

Evangelho: Mt 13,44-46

Ao longo do seu Ev, Mt apresenta cinco discursos de Jesus, em alusão aos cinco livros da Lei de Moisés (chamada Torá, “Lei”, em hebraico; ou Penta-Teuco, “cinco livros” em grego). No terceiro discurso, Mt usa e amplia o discurso de parábolas já existente em Mc 4. Agora finaliza este discurso com três pequenas parábolas que só se encontram no evangelho dele: as parábolas do tesouro e a da pérola (evangelho de hoje), a da rede e mais uma conclusão que talvez seja um autorretrato do próprio evangelista (cf. evangelho de amanhã).

O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo. O Reino dos Céus também é como um comprador que procura pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola (vv. 44-46).

As duas parábolas formam um par (cf. a semente da mostarda e o fermento em vv. 31-33) com a mesma conclusão: Não importa, se um “encontra” por acaso e outro “procura” há tempo, quem acha o Reino dos Céus deve deixar tudo para entrar nele (cf. 4,22; 8,19-21; 9,9; 19,21.27-30; Lc 9,57-62).

Consideradas fora do seu contexto, essas duas parábolas dão ensejo a vários sentidos possíveis: valor do tesouro e da pérola, alegria da descoberta, obrigação de vender tudo. O tema “escondido/revelado” é primordial e traduz-se pela “alegria”. Enquadradas entre duas ameaças terríveis da “fornalha ardente” (13,42.50) que contrastam violentamente com a alegria, estas parábolas passam a ser uma exortação a vender tudo para possuir esta alegria.

O camponês teria tido outras opções: poderia ter retirado o tesouro em segredo, poderia ter obedecido à lei e publicar seu achado para ver se encontrar-se um dono legítimo, ou poderia fazer um empréstimo no banco. Mas ele “vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo”.

O comprador de perolas é um empresário que importa ou exporta. Pérolas foram importadas da Índia e desde Alexandre Magno estavam na moda, tornando-se símbolos de preciosidade (cf. 7,6). Não interessam aqui as circunstâncias da compra, exceto que ele “vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola”.

Para entrar no Reino de Deus é necessária uma decisão total. Apegar-se a seguranças, mesmo religiosas, que são falsas ou puras imitações, em troca da justiça do Reino de Deus, é preferir bijuterias a uma pedra preciosa de “grande valor” (cf. 6,33: “Procurai, em primeiro lugar, o reino de Deus”).

Já a sabedoria do Antigo Testamento foi comparada com tesouros, pérolas, pedras e metais preciosos (Pr 1,9; 4,7-9; Sb 7,9; …). Enquanto uns aplicaram a sabedoria à Lei (Eclo 24), Mt aplica esta preciosidade ao (evangelho do) reino dos céus; o discípulo “cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens, e compra” este valor máximo que é o reino; cf. a vocação fracassada do jovem rico em 19,16-23p: “Vai, vende seus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu … um rico dificilmente entrará no Reino dos Céus”.

Chama atenção o fato de que Jesus não precisa explicar estas duas parábolas, como outras antes e depois. Os discípulos já devem entender seu significado: é preciso apostar tudo no reino e não se apegar nas muitas coisas deste mundo (13,22: “o cuidado do mundo e a sedução da riqueza sufocam a palavra”; cf. 6,19: “Não juntais para vós tesouros na terra,… mas ajuntai para vós tesouros no céu…”).

O site da CNBB comenta: O Evangelho de hoje nos mostra a parábola na qual Jesus compara o Reino de Deus com um tesouro e com uma pérola. A comparação com o tesouro nos mostra o valor que o Reino de Deus deve ter nas nossas vidas, um valor que não pode ser superado por nenhum outro valor deste mundo. A pérola nos mostra a preciosidade inigualável que é o Reino de Deus para todas as pessoas. E tanto o valor como a preciosidade do Reino de Deus significam que todas as outras coisas perdem sua importância diante dele e só têm sentido enquanto contribuem para que o homem possa chegar até Deus.

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