01 de junho de 2018, sexta-feira: Não darei largas à minha ira, não voltarei a destruir Efraim, eu sou Deus, e não homem; o santo no meio de vós, e não me servirei do terror

Sagrado Coração de Jesus – Ano B

A festa do Sagrado Coração de Jesus, sexta-feira, celebra-se na semana após a Solenidade de Corpus Christi, ou seja, numa sexta-feira lembrando o coração transpassado de Jesus na Sexta-feira Santa (Jo 19, 34). A festa litúrgica origina-se numa visão que Jesus fez a Santa Margarida de Alacoque, em 27 de dezembro de 1673, festa de São João Evangelista. Margarida acabava de sair do hospital, estava de joelhos, rezando na capela, sente a presença interior de Deus e escuta a voz de Jesus, dizendo-lhe as seguintes palavras: “O meu coração está tão apaixonado pelos homens, que não pode conter as chamas que o inflamam e precisam se expandir. Escolhi o teu coração, Margarida, para ser todo meu”. Jesus disse que Santa Margarida assumisse o lugar do apostolo João Evangelista na última ceia (Jo 13,23-25). A partir, de então, Margarida começou a ser interlocutora do Sagrado Coração de Jesus.

A devoção do Coração de Jesus está intimamente ligada ao Apostolado da Oração, fundado em 1844, na França, pelo padre jesuíta Francisco Xavier Gautrelet. O Apostolado da Oração está presente em 85 países do mundo e 40 milhões entre zeladas e zeladoras. No Brasil, o primeiro centro do Apostolado foi fundado em 30 de junho de 1867. Hoje e nos próximos dias, muitas pessoas receberão a fita do Sagrado Coração de Jesus. Oferecer o dia e unir ao Coração de Jesus e rezar por uma intenção mensal são pilares da Espiritualidade do Apostolado da Oração. Neste mês de junho, a intenção é a santificação dos padres. “Jesus manso e humilde de coração! Fazei o nosso coração semelhante ao vosso!”

ANO B

1ª Leitura: Os 11,1.3-4.8c-9

Na primeira leitura, o profeta Oseias que viveu por volta de 750 a.C. nos fala do amor de Deus. É um poema do amor paterno de Deus, com traços maternais, que é paralelo ao poema do amor conjugal em Oseias: Deus ama como pai ou Deus esposo, o povo deve amá-lo como esposa ou filho; traços que se completam e se relacionam. Coincidem na quebra paradoxal do esquema: quando tudo parece perdido por causa da resistência da esposa ou do filho, o amor invencível de Deus salva tudo.

Oseias emprega aqui, a propósito de Israel não mais a imagem da esposa, mas a do filho na linha da tradição do Êxodo. Este capítulo está em paralelismo estreito com os cap. 1-3. Depois da analogia do amor conjugal desonrado, temos aqui a do amor paterno desprezado. Deve-se, contudo, notar que nos três primeiros capítulos do livro, os filhos já estavam estreitamente associados à mãe (2,1-4). Já desde o início (1,2), as duas perspectivas estão unidas.

(Assim diz o Senhor:) Quando Israel era criança, eu já o amava, e desde o Egito chamei meu filho (v. 1).

A metáfora do filho é utilizada para Israel em textos narrativos e proféticos (Ex 4,22s; Dt 8,5; 32,6; Is 1,2; 30,9; Jr 3,4.19-22; 4,22; 31,9.20; Ml 1,6; cf. Dt 1,31; 32,11; Is 63.16). Deus chama aqui Israel o seu filho amado, depois também o messias é chamado assim (Sl 2,7; 2Sm 7,14; Is 42,1 grego; Mc 1,11; 9,7). O evangelista Mateus retoma esta mensagem: “Do Egito chamei o meu filho” (Mt 2,15); saúda em Jesus o filho que assume toda a vocação de Israel.

“Amar” é o primeiro verbo neste poema, o motor de tudo (cf. Jr 31,3). Encontra-se, aqui, o primeiro testemunho do tema do amor de Deus como causa da eleição de Israel, doutrina esta que será abundante desenvolvida pela Deuteronômio (Dt 4,37; 7,7-9; 10,15 etc.).

A história remonta à origem no “Egito”, antes da monarquia e da divisão dos reinos. Para Oséias, a verdadeira história de Israel começa com a saída do Egito. Toda esta passagem descreve a idade do deserto como tempo de intimidade com o Senhor (para lá o profeta queria reconduzir sua esposa, cf. 2,16). Da história dos patriarcas, Oséias parece ter conhecido – ou conservado – apenas alguns traços desfavoráveis (12,5.13).

No v. 2 (omitido pela liturgia de hoje), Deus reclama da idolatria do povo, dos sacrifícios aos Baals (divindades estrangeiras, cf. 2,15).

Ensinei Efraim a dar os primeiros passos, tomei-o em meus braços, mas eles não reconheceram que eu cuidava deles. Eu os atraía com laços de humanidade, com laços de amor; era para eles como quem leva uma criança ao colo, e rebaixava-me a dar-lhes de comer (vv. 3-4).

Cena doméstica em traços de emoção contida. “Efraim” foi um dos dois filhos de José; nasceu no Egito e foi constituído coerdeiro da terra de Israel (Gn 41,50-52; 48,13s.17-19). Deu nome à região central de Israel. Por sua posição privilegiada, Efraim é “meu filho primogênito” em Jr 31,20 (cf. Os 11,1.3), e o reino do norte foi chamado de “Israel” como também de “Efraim” (cf. 4,17; 5,3.12-14; 6,4.10; 7,1.8.11; 8,9.11; 9,3.8.11.13.16; 10,6.11; 11,3.8; 12,1s.9.15; 13,1.12.15; 14,9).

Deus os atraia com “laços de humanidade”, lit. “com cordas humanas”, como que se opondo às usadas para animais e carros (Is 5,18). Com os “laços de amor” temos um paralelismo sugestivo de “homem e amor”, mas no v. 9 Deus diz que não é homem (por isso, alguns corrigem e leem “carinho”). “Eu era para eles”, pode ressoar o nome de Yhwh (Javé): “Eu estou aqui para vós” (em grego foi traduzido “Eu sou que sou”; Ex 3,14).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 891) comenta: Nos vv. 3 e 4 a imagem é sempre do pai, mas de um pai dotado de traços maternais. As antigas traduções e provavelmente já o texto hebraico masorético leram “jugo” (‘ol) em vez de “criancinhas” (‘ul); a tradução daí resultante “fui para eles como alguém que afrouxa o jugo perto da boca” supõe que o profeta abandone a imagem do pai e da criança, para assumir uma comparação tirada do reino animal.

Meu coração comove-se no íntimo e arde de compaixão (v. 8c).

Nos vv. 5-8b (omitidos pela nossa liturgia) já se pronunciou a sentença inapelável pelo pecado da idolatria, com a execução já em marcha (v. 5: “pois voltará ao Egito, assírio será seu rei”). Mas acontece algo inesperado: um arrebatamento de amor em Deus, expresso numa espécie de monólogo em voz alta: “Como poderei deixar-te, Efraim, entregar-te, Israel?” (v. 8a).

Com singular força, soa o verbo hpk, “inverter, voltar-se, contorcer”. É verbo clássico da subversão das cinco cidades de Sodoma e Gomorra, “Adama”, “Seboim” e Soar (cf. v. 8b omitido na liturgia; Gn 19,25; Dt 29,22 e Gn 10,19; 14,2,8). Aqui ocorre uma subversão ao contrário (inversão, comoção) no coração de Deus, uma mudança radical que se realiza no próprio Deus. Oséias parece entender que o castigo previsto é como que vivido previamente no coração de Deus (cf. o grito de Davi pela morte do seu filho subversivo, Absalão, em 2Sm 19,1).

Não darei largas à minha ira, não voltarei a destruir Efraim, eu sou Deus, e não homem; o santo no meio de vós, e não me servirei do terror (v. 9).

Esta é a única menção à santidade de Deus feita por Os (cf. todavia 12,1). “Não me servirei do terror”, esta frase é duvidosa; outra interpretação: “não quero arrasar”.

A ciência da religião caracteriza o fenômeno do sagrado, o “santo” por dois aspectos, “o fascinante e o aterrador” (R. Otto). Aqui, a transcendência de Deus é fortemente sublinhada, mas, ao contrário de outros textos mais antigos (Ex 19; 2Sm 6,6-8 etc.) ou mais recentes do que estes (Is 6,3), ela é, aqui, despojada do seu aspecto aterrador para exprimir a vontade de amar. A santidade divina manifesta-se pela misericórdia que perdoa, enquanto o homem, habitualmente, dá livre curso à sua cólera. Um ser humano cederia à sua ira, provocada várias vezes e se desligaria de um pacto violado pelo outro parceiro. Mas Deus não é condicionado pela conduta humana: sua santidade pode se manifestar perdoando, convertendo e salvando.

Dois séculos depois, o Segundo Isaias (Deuteroisaías) anima a esperança dos exilados comparando o amor divino com o amor de mãe que não consegue se esquecer do seu filho (Is 49,14s).

Este amor divino (perdão sobre-humano), que se nega a pagar o mal com o mal, encontramos no mito de Gn 4 (Caim não é punido com a morte), na profecia de Ez 17,23.32 (“Eu não tenho prazer na morte do ímpio, mas que ele se converta e viva” ) e de maneira universal em Sb 11,21-12,1: “O mundo inteiro está diante de ti… mas te compadeces de todos, porque tudo podes. Fechas o olhas diante dos pecados dos homens, para que se arrependam. Sim, tu amas tudo o que criaste… se alguma coisa tivesses odiado, não a teria feito… Mas a todos perdoas, porque são teus; Senhor, amigo da vida!”

No NT, Jesus convida a não se vingar, mas perdoar e amar os inimigos para sermos “filhos do Pai do céu” (Mt 5,9.38-48p; 6,12; 18,21-35). Ele nos apresenta Deus como Pai misericordioso que perdoa e acolhe seu filho pródigo (Lc 15,11-32).

 

2ª Leitura: Ef 3,8-12.14-19  

Na leitura de hoje, o autor da carta volta falar do “mistério” da salvação (cf. 1,9; Rm 16,25). Aqui, mistério não tem o sentido esotérico de coisas incompreensíveis. Significa o desígnio (projeto) de Deus que visa a salvar toda humanidade, através de Jesus Cristo, e se manifesta na Igreja pelo ministério de Paulo. Pela revelação desse mistério, os gentios (os povos não-judeus, os pagãos) são chamados a participar do povo de Deus (Cl 2,2s). O Cristo (Messias) não é monopólio de Israel, mas veio para todas as nações (cf. Lc 2,31s; Mt 28,19). Na versão latina, a palavra grega mistérion é traduzido por “sacramentum” (revela-se este mistério na Igreja Católica, quer dizer, na Igreja para todas as nações, cf. LG 1).

Este é o conteúdo deste mistério: Os povos pagãos que se convertem a Cristo são coerdeiros com os judeus cristãos (cf. 2,19), são membros do mesmo corpo, da Igreja (cf. 1,22s; 1Cor 12,12s) e associados as mesmas “alianças da promessa” (2,12s). O “Evangelho” é como a promulgação que torna efetivo o cumprimento para quem queira aceitá-lo.

Eu, que sou o último de todos os santos, recebi esta graça de anunciar aos pagãos a insondável riqueza de Cristo e de mostrar a todos como Deus realiza o mistério desde sempre escondido nele, o criador do universo (vv. 8-9).

Paulo se chama o “último” a quem Cristo se revelou como ressuscitado, aqui “o último de todos os santos”, porque foi perseguidor, porque chegou mais tarde (1Cor 15,8-10; cf. Eclo 33,16-18). Mas foi ele que recebeu a “graça” (cf. v. 2) de anunciar aos pagãos a “riqueza” (alude à Sabedoria) “insondável” (cf. Is 40,28; Sl 145,3; Jó 5,9; 9,10; 11,7) de Cristo e de “pôr a luz” (a tradução latina Vulgata: “mostrar claramente a todos”) “como Deus realiza o mistério” (lit. qual é a economia do mistério).

O capítulo vai falar sucessivamente da insondável “riqueza” de Cristo (v. 8), dos recursos inesgotáveis da sabedoria de Deus (v. 10) e, por fim, das “quatros dimensões” (v. 18): esses temas são de origem sapiencial. O verbo “sondar, penetrar”, a menção à sabedoria, a evocação das dimensões acham-se reunidos em Eclo 1,3: “a altura do céu, a extensão da terra, o abismo e a sabedoria, quem pode penetrá-lo?”

Assim, doravante, as autoridades e poderes nos céus conhecem, graças à Igreja, a multiforme sabedoria de Deus, de acordo com o desígnio eterno que ele executou em Jesus Cristo, nosso Senhor (vv. 10-11).

Se unimos esse v. ao v. 18, eles nos remetem ao começo do Eclesiástico (1,1-3.8); predomina a linguagem sapiencial: “conhecer (manifestar), sabedoria, desígnio/projeto”. Os destinatários talvez sejam “as autoridades e poderes” que governam o mundo judaico e o mundo pagão, os quais descobrem agora, numa Igreja única de judeus e pagãos, a sabedoria impensada e transcendente de Deus. Em outra interpretação, são os anjos ou os santos (cf. Zc 14,5; Dt 33,33; Jó 5,1; 15,15). Os próprios espíritos celestes não conhecem o desígnio de salvação de Deus; por isso, levaram os homens a crucificar o Cristo (1Cor 2,8); hoje, contemplando a Igreja, eles o compreendem (cf. 1Pd 1,12), “o desígnio eterno que ele executou (ou: concebeu) em Jesus”.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2270) comenta: Os poderes, responsáveis pela lei judaica e pelo mundo religioso pré-cristão (cf. Cl 1,16…) ignoram o desenrolar do plano divino (1Cor 2,8). Ao reunir judeus e pagãos, a Igreja constitui a manifestação última do desígnio de Deus e, por assim dizer, a personificação da Sabedoria. Olhando para ela, os poderes compreendem que a humanidade nova acede diretamente a Deus em Cristo (cf. 10 e 11) e que o papel provisório delas é ambíguo e ultrapassado.

Em Cristo nós temos, pela fé nele, a liberdade de nos aproximarmos de Deus com toda a confiança (v. 12).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2270) comenta: Lit. “a liberdade e acesso”. Dois termos importantes são associados. O primeiro evoca a condição daquele que tudo pode dizer; o acento é posto ora sobre a franqueza, ora na coragem, ora na liberdade, ora no caráter público da declaração ou da situação (ver Ef 3,12; 6,20; Cl 2.15. Cf. Jo 16,25.29; At 4,31; 2Cor 3,12). O segundo, utilizado no vocabulário cultual ou régio, implica a possibilidade de acesso à presença de Deus ou do soberano (cf. 2,18; Rm 5,2. Ver também 1Pd 3,18; Hb 4,16; 10,19).

No v. 13 (omitido), Paulo pede a comunidade de não se deixar abater por causa das tribulações. Em seguida, encontramos novamente o esquema trinitário, sem usar o termo técnico Filho: o Pai (vv. 14.19), seu Espirito (v. 16), Cristo (vv. 17.19). Em tom de súplica, o autor da carta pede ao Pai (v. 14) que o amor de Cristo habite os corações (vv. 17.19), para serem fortalecidos pelo Espírito, na interioridade do ser humano (v. 16).

O Espírito é um novo dinamismo interior; a fé nos abre e transforma em morada estável de Cristo, o amor nos dá raiz e alicerce, de onde brota uma nova capacidade de conhecer e compreender o “mistério” e receber a “plenitude de Deus” (v. 19; cf. 1,23).

Eu dobro os joelhos diante do Pai, de quem toda e qualquer família recebe seu nome, no céu e sobre a terra (vv. 14-15).

Dobrar os joelhos é gesto humilde de súplica (At 20,36; cf. 1Rs 8,54; Esd 9,5). De Deus Pai procede toda paternidade humana e seu equivalente celeste (que não se esclarece). Outra tradução possível: “de quem toda paternidade recebe o seu nome”. Jogo de palavras entre patriá (família) e patêr (pai). O Pai, revelado em Jesus Cristo, está na origem do todo o agrupamento humano ou angélico.

Em lugar de paternidade pode-se entender sobrenome, frequente em Nm e Cr, para apresentar genealogias. Agora todos têm um último Pai comum (Lc 3,38 faz a genealogia de Jesus ascender até Adão e Deus).

Que ele vos conceda, segundo a riqueza da sua glória, serdes robustecidos, por seu Espírito, quanto ao homem interior, que ele faça habitar, pela fé, Cristo em vossos corações, que estejais enraizados e fundados no amor (vv. 16-17).

Aqui continua a súplica, numa frase difícil e densa (vv. 16-19), pedindo: ”robustecer” (v. 16) e “habitar” (v. 17) para “compreender” (v. 18) e “entender” (v. 19). “Internamente”, ou no homem interior da antropologia grega; na intimidade onde reside o Espírito. Pode se comparar com expressões equivalentes dos salmos (Sl 39,4; 55,5; 94,19; 19; 109,22). “Robustecidos (fortalecidos) por seu Espírito” (cf. Sl 51,12 “espírito firme”). Pela fé, Cristo “habita” (Jo 14,23) em nossos corações. “Enraizados e fundados (alicerçados)”; são as duas imagens clássicas da vida agrária e urbana (Jr 1,10; Sl 144,12; aplicadas à sabedoria em Eclo 1,15-20).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2270) comenta o termo “homem interior”: Esta expressão designa a parte racional do homem (cf. Rm 7,22…) por oposição a “o homem exterior” que é o seu corpo perecível (2Cor 4,16). Esse tema, tomado da filosofia grega popular, é distinto da oposição “homem velho – homem novo” que se inscreve numa perspectiva judaica. Acontece, entretanto, que o “homem interior” quase se confunde com o “homem novo”, como em 2Cor 4,16 e, aqui, em Ef 3,16. A expressão homem interior fica, todavia, mais marcada por sua origem antropológica: ela é muito semelhante ao termo “coração” no v. 17.

Tereis assim a capacidade de compreender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura, a profundidade, e de conhecer o amor de Cristo, que ultrapassa todo o conhecimento, a fim de que sejais cumulados até receber toda a plenitude de Deus (vv. 18-19).

A importância de ser nova criatura (pelo batismo) consiste em viver o amor segundo o modelo do próprio Cristo (Rm 8,39). Amor que vai muito além do conhecimento e tem dimensão universal.

A totalidade desse amor está expressa nas quatro dimensões que designavam, no pensamento grego da filosófica estoica, a totalidade do universo: “A largura, o comprimento, a altura, a profundidade”, enumeração à maneira da literatura sapiencial, para sublinhar o caráter inacessível da Sabedoria de Deus e dos seus caminhos (cf. 3,8); cf. Jó 11,5-8: “a sabedoria… é mais elevada do que os céus… mais profunda do que o Xeol (morada dos mortos), mais extensa do que a terra e mais ampla do que o mar.”

A Bíblia do Peregrino (p. 2809) comenta: Nós reconhecemos em nosso espaço três dimensões. Os hebreus concebiam quatro dimensões (Jó 11,5-8), porque não concebiam que a linha de profundidade, subterrânea continuasse para cima. A superfície da terra que o homem vivo pisava, era um corte total. Como se podia imaginar que do Xeol partisse uma linha contínua até o céu?

As quatros dimensões não são explicitamente determinadas; trata-se sem dúvida do desígnio misterioso de Deus (o mistério da salvação que une judeus e gentios, cf. 3,1-13, leitura de ontem) e antes de tudo do “amor de Cristo”. Como para a sabedoria, essas dimensões vão além de qualquer medida humana (cf. também as dimensões escatológicas do templo e da Terra prometida em Ez 40-45; Ap 21,9s).

Uma exegese muito antiga interpreta as quatros dimensões a partir da “cruz”, símbolo da extensão ecumênica (cf. 2,13-17) e cósmica (cf. Cl 1,20) da obra de Cristo, como o vértice do universo.

“O amor de Cristo que ultrapassa todo o conhecimento”; o simples conhecimento, a gnose, não podia plenificar o homem; só o “amor de Cristo” capacita o ser humano para “receber toda a plenitude de Deus”, porque seu amor revela o amor de Deus (Jo 1,15). O amor que Cristo nos testemunhou entregando-se (5,2.25; Gl 2,20), amor idêntico ao do Pai (2,4.7; 2Cor 5,14.18s; Rm 8,35.37.39).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2200) comenta: Muito mais que “compreender” (v. 18, termo grego de origem filosófica), trata-se de “conhecer” com um conhecimento religioso, místico, penetrado de amor (cf. 1,17s; 3,3s; ver Os 2,22; Jo 10,14), que vai mais longe que qualquer conhecimento intelectual (cf. 1Cor 13). Mais ainda: trata-se menos de conhecer do que de ser amado e sabê-lo (cf. Gl 4,9), ainda que seja impossível penetrar na profundeza desse amor.

A ideia é a de Cl 2,9s (cf. Ef 1,23): os cristãos participam na “plenitude” que Cristo recebe de Deus e comunica ao seu Corpo que é a Igreja. Pode-se também compreender: cumulados para entrar em toda a plenitude de Deus. Pela plenitude de vida divina que o cristão recebe de Cristo, em quem ele habita (Cl 2,9s), ele entra por sua vez na plenitude do Cristo total: a Igreja e ulteriormente o novo Universo, em cuja construção ele contribui (1,23; 2,22, 4,12-13; Cl 2,10). É um grande paradoxo: encher-se do que tudo enche, abrange transborda; cf. a oração de Salomão na inauguração do templo: “É verdade que Deus poderia habitar sobre a terra? Os próprios céus e o céu dos céus não te podem conter! Quanto menos esta Casa que construí” (1Rs 8,27).

 

Evangelho: Jo 19,31-37

O evangelho nos apresenta o coração de Jesus furado pela lança do soldado que confirma a morte de Jesus, mas abre uma fonte de vida espiritual.

Era o dia da preparação para a Páscoa. Os judeus queriam evitar que os corpos ficassem na cruz durante o sábado, porque aquele sábado era dia de festa solene. Então pediram a Pilatos que mandasse quebrar as pernas aos crucificados e os tirasse da cruz. Os soldados foram e quebraram as pernas de um e depois do outro que foram crucificados com Jesus (vv. 31-32). 

No evangelho de Jo, Jesus morre no dia 14 de nisan, “o dia da preparação para a Páscoa” quando se imolava os cordeiros em massa no templo de Jerusalém para estarem prontos para a ceia pascal depois nas casas de família (cf. Ex 12). Em Jo, a última ceia não é ainda a ceia pascal (cf. Jo 13,1: “antes”), Jesus será o verdadeiro Cordeiro pascal imolado por nós (cf. 1,29.36; Rm 5,7).

Frequentemente, os corpos dos condenados ficavam expostos na cruz por dias. Mas para evitar escândalos (cf. Dt 21,22-23) ou tumultos na festa que se aproximava, os soldados aceleraram a morte dos outros dois crucificados quebrando suas pernas para morrerem logo de asfixia.

Ao se aproximarem de Jesus, e vendo que já estava morto, não lhe quebraram as pernas; mas um soldado abriu-lhe o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água. Aquele que viu, dá testemunho e seu testemunho é verdadeiro; e ele sabe que fala a verdade, para que vós também acrediteis. Isso aconteceu para que se cumprisse a Escritura, que diz: “Não quebrarão nenhum dos seus ossos”. E outra Escritura ainda diz: “Olharão para aquele que transpassaram” (vv. 33-37).

Jesus, porém, enfraquecido pela flagelação anterior (19,1), já tinha morrido; então um soldado verificou a morte com uma lança. Do lado de Jesus “saiu logo sangue e água” (19,34). Isto quer dizer que de fato morreu (contra os docetistas, cf. 1,14; 1Jo 5,6) e pode ser correta observação médica (sangue e um líquido claro dos pulmões). O discípulo amado, antes mencionado em v. 26s, testemunhou tudo isso.

Mas também pode se ver neste detalhe uma alusão aos sacramentos da Igreja (água=batismo, cf. 3,5; 7,39; sangue=eucaristia, cf. 6,53-56), já que o Corpo de Cristo é o novo templo, a Igreja (cf. 2,19-21; Cl 1,18; Ef 1,22s; 5,23; cf. 1Cor 3,16s; 6,19). Assim a água saindo do lado desse novo templo é a fonte da salvação (Ez 47, cf. Jo 2,21). A Igreja (com seus sacramentos) é a nova Eva saindo do lado do novo Adão adormecido (cf. Gn 2,21-22), de Cristo morto. A citação da “outra escritura”, Zc 12,10, combina com isso: “Olharão para aquele que transpassaram.”

Também se cumpre a Escritura sobre o cordeiro pascal: “Não se quebrarão nenhum dos seus ossos” (19,36; Ex 12,46; cf. Sl 34,20s). Já bem no início da narração, Jesus foi declarado “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (1,29.36). Jesus é o verdadeiro Cordeiro pascal (1 Cor 5,7), assim em Jo, a morte de Jesus coincide com a hora exata da imolação dos cordeiros no templo “ao cair da tarde” (Ex 12,6; Jo 19,14.42).

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