02 de março de 2018 – Sexta-feira, Quaresma 2ª semana

Leitura: Gn 37,3-4.12-13a.17b-28

Na leitura de hoje, ouvimos sobre a venda de um pessoa por dinheiro, pela primeira vez na Bíblia (cf. Campanha da Fraternidade 2014 sobre Tráfico Humano): José, bisneto de Abraão. A última parte do livro de Gênesis (Gn 37-50; salvo os capítulos 38 e 49) nos conta a história de José, apresentada no gênero literário de “novela”, numa trama de família sem intervenção visível de Deus, sem nova revelação, mas toda ela é um ensinamento, claramente expresso no fim (50,20 e já 45,5-8).

Israel amava mais a José do que a todos os outros filhos, porque lhe tinha nascido na velhice. E por isso mandou fazer para ele uma túnica de mangas longas. Vendo os irmãos que o pai o amava mais do que a todos eles, odiavam-no e já não lhe podiam falar pacificamente (vv. 3-4).

A leitura de hoje apresenta o início do conflito. “Israel” é o apelido dado por Deus a Jacó, neto de Abraão (cf. 32,29; 35,10). Com quatro mulheres, ele teve uma filha e onze filhos (29,31-30,24; cf. 37,9). José era caçula; Benjamin, o décimo segundo filho, nasceu só depois quando José já estava no Egito (35,16-20). Os doze filhos de Jacó dão origem às 12 tribos de Israel (Ex 1,1-7; 24,4).

Jacó-Israel “amava mais a José do que a todos os outros filhos, porque lhe tinha nascido na velhice” (v. 3) por sua esposa preferida, Raquel (29,22-24). Deu para ele uma “túnica de mangas longas”. As antigas vestes das cortes orientais (cf. 2Sm 13,13,18) não são práticas para o trabalho. Os irmãos ficavam com ciúmes e “odiavam-no” (v. 4; cf. Caim e Abel em 4,3-8; os conflitos entre os irmãos Ismael e Isaac em 21,1-20 e entre os gêmeos Esaú e Jacó em 25,21-33,17).

Este ódio se explica não apenas pelo “ciúme” (v. 11) que irmãos mais velhos sentem do irmão mais novo porque este necessita de atenção maior dos pais. A leitura de hoje omitiu dois motivos mencionados nos vv. anteriores: José, aos 17 anos, contava ao pai as conversas mal-intencionadas (ou má reputação) dos seus irmãos (cf. vv. 1-2). José contou também dois sonhos, nos quais, por meio de símbolos, seus irmãos iriam se prostrar diante dele como se fosse rei (vv. 5-11). Sonhos em pares é uma característica desta novela e são relatados também em 40,9-23 (dois funcionários na cadeia) e 41,1-36 (sonhos do faraó).

Ora, como os irmãos de José tinham ido apascentar o rebanho do pai em Siquém, disse Israel a José: “Teus irmãos devem estar com os rebanhos em Siquém. Vem, vou enviar-te a eles” (vv. 12-13).

Em Siquém (v. 13), seus irmãos haviam vingado o estupro de sua irmã Dina, mas contra a vontade e a promessa do seu pai (34,1-30).

Partiu, pois, José atrás de seus irmãos e encontrou-os em Dotaim. Eles, porém, tendo-o visto ao longe, antes que se aproximasse, tramaram a sua morte (vv. 17b-18).

A liturgia de hoje pula a busca errante de José (vv. 14-17a), porque os irmãos não estavam no lugar onde o pai pensava. O ódio dos irmãos a José chegou ao ponto de que “tramaram a sua morte” (v. 18) no campo (cf. Caim e Abel em 4,3-8).

Disseram entre si: “Aí vem o sonhador! Vamos matá-lo e lançá-lo numa cisterna, depois diremos que um animal feroz o devorou. Assim veremos de que lhe servem os sonhos” (vv. 19-20).

Agora os irmãos querem se livrar do “sonhador” (v. 19). Eliminando o sujeito, deixará de cumprir-se o sonho. Em Jr 38,1-13, os chefes de Jerusalém querem matar o profeta Jeremias e o lançam numa cisterna que não tinha água.

Rúben, porém, ouvindo isto, disse-lhes: “Não lhe tiremos a vida”! E acrescentou: “Não derrameis sangue, mas lançai-o naquela cisterna do deserto, e não o toqueis com as vossas mãos”. Dizia isto, porque queria livrá-lo das mãos deles e devolvê-lo ao pai. Assim que José chegou perto dos irmãos, estes despojaram-no da túnica de mangas longas, pegaram nele e lançaram-no numa cisterna que não tinha água. Depois, sentaram-se para comer (vv. 21-25a).

Uma vez (v. 21), Rúben, o primogênito e responsável pelos seus irmãos, quer evitar a morte de José, outra vez é o irmão Judá que quer a mesma coisa (v. 26). Os exegetas pensam em duas tradições que se misturam aqui: uma é da tradição “javista” em Jerusalém e tem interesse em Judá (cap. 38), o ancestral da tribo de Davi e Salomão, outra tradição “eloísta” escreve no reino do norte habitado pelas outras tribos.

Levantando os olhos, avistaram uma caravana de ismaelitas, que se aproximava, proveniente de Galaad. Os camelos iam carregados de especiarias, bálsamo e resina, que transportavam para o Egito. Judá disse aos irmãos: “Que proveito teríamos em matar nosso irmão e ocultar o seu sangue? É melhor vendê-lo a esses ismaelitas e não manchar nossas mãos, pois ele é nosso irmão e nossa carne”. Concordaram os irmãos com o que dizia (vv. 25b-27).

Judá dá o conselho de vender o irmão como escravo: “Que proveito teríamos em matar nosso irmão e ocultar seu sangue?” (lit. cobrir seu sangue), para abafar a justiça e evitar que o sangue da vítima gritasse aos céus, como o sangue de Abel em 4,10 (cf. Is 26,21; Ez 24,7-8; Jó 16,18). Os irmãos jogam José numa cisterna que não tinha água (cf. Jeremias em Jr 38,6) e depois o vendem a uma “caravana de ismaelitas” (vv. 25.27s; outra tradição: “midianitas” em v. 28) que carregam especiarias apreciadas pelos egípcios para tratamento médico e preparação das múmias.

Ao passarem os comerciantes madianitas, tiraram José da cisterna, e por vinte moedas de prata o venderam aos ismaelitas: e estes o levaram para o Egito (v. 28).

O preço da venda, “vinte moedas de prata” é abaixo do valor de um escravo, estabelecido pela lei em Ex 21,32: “trinta moedas de prata” (Zc 12,12; Mt 26,15) que equivalem cerca de 40 gramas de ouro ou 300 gramas de prata.

Em seguida, os irmãos mancharão a túnica de José com sangue de bode e o pai pensará que “um animal feroz devorou” (v. 20, cf. vv. 31-33). Jacó-Israel havia enganado seu próprio pai Isaac roubando a benção do primogênito (27,1-40), agora será ele enganado pelos próprios filhos.

No Egito, outra veste de José tem um papel enganador na sedução em 39,7-20. Aquele que sonhava ser rei é vendido como escravo e, no Egito, é jogado ainda na cadeia. Mas a providência divina vigia sobre José, tira-o da prisão e faz dele vice-rei do Egito para finalmente salvar seu pai e seus irmãos da fome. Assim Deus escreve reto pelas linhas tortas dos homens, e os sonhos se cumprem.

Pela novela de José, o autor prepara o êxodo de um povo numeroso que será libertado da escravidão no Egito (Ex 1-14). A trajetória de José lembra o profeta Jeremias que foi jogado numa cisterna e levado ao Egito contra sua vontade (cf. Jr 11,21; 38; 43). O evangelista Mateus também se inspirou nesta novela quando apresenta os sonhos de José que o guiam para aceitar Maria como esposa e salvar a sagrada família na fuga ao Egito (Mt 1-2).

Igual a José, Jesus também sofreu “ciúme” (Mc 15,10) por sua sabedoria de “filho amado” (cf. Mc 1,11; 9,7; 12,6), foi preso e despido de suas vestes, ridicularizado como rei, vendido por “trinta moedas de prata” (Mt 26,15). José no Egito chegou ao fundo do poço, mas teve uma ascensão maravilhosa, perdoou e salvou seu povo (que não o reconheceu; cf. Gn 42,8). Jesus chegou ao mais fundo do poço (cruz, túmulo), mas ressuscitou (também não foi logo reconhecido, cf. Lc 24,16; Jo 20,14; 21,4) e tornou-se fonte de reconciliação e salvação (cf. Fl 2,6-11; 2 Cor 5,14-21; Lc 23,34; Jo 3,16-17).

Evangelho: Mt 21,33-43.45-46

O evangelho de hoje nos apresenta uma parábola de Jesus dirigida “aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos do povo” (v. 23), os vinhateiros que assassinam o “filho amado” (Mc 12,6; cf. Mc 1,11; 9,7) do dono. A liturgia nos apresenta a versão de Mt que copiou de Mc 12,1-12.

(Naquele tempo, dirigindo-se Jesus aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos do povo, disse-lhes:) “Escutai esta outra parábola: Certo proprietário plantou uma vinha, pôs uma cerca em volta, fez nela um lagar para esmagar as uvas e construiu uma torre de guarda. Depois arrendou-a a vinhateiros, e viajou para o estrangeiro (v. 33).

O que ouvimos hoje, é uma “parábola”, mas também uma “alegoria”, porque cada pormenor tem o seu significado. Também o “proprietário” é símbolo, significa o próprio Deus. Na época, havia grandes latifúndios na Palestina cujos donos eram estrangeiros e arrendavam a terra a pessoas ou grupos. No Antigo Testamento (AT), a “vinha” é o símbolo de Israel, do povo de Deus (cf. Is 5,1-7; Sl 80) e metáfora na lírica de amor (cf. Ct 8,11 e o uso junto com as palavras amada e jardim). A torre indica que se trata de uma vinha modelo, normalmente bastava uma barraca ou casa.

Quando chegou o tempo da colheita, o proprietário mandou seus empregados aos vinhateiros para receber seus frutos. Os vinhateiros, porém, agarraram os empregados, espancaram a um, mataram a outro, e ao terceiro apedrejaram. O proprietário mandou de novo outros empregados, em maior número do que os primeiros. Mas eles os trataram da mesma forma (vv. 34-36).

Há uma parábola parecida em Is 5,1-7, da qual Jesus toma o começo (o cuidado com que o dono tratou da vinha) e o final (“a vinha é a casa de Israel; em vez de frutos de justiça, assassinato”), mas ele dirige a parábola não ao povo, sim aos dirigentes, “chefes dos sacerdotes e anciãos do povo” (v. 23). Estes são os vinhateiros a quem Deus confiou o seu povo, mas em vez de entregar a parte do dono, os frutos da justiça, eles maltrataram os “empregados” que Deus enviou, os profetas (cf. 2Cr 24,19; Jr 7,25s; Ne 9,26), p. ex.: Elias perseguido (1Rs 19), Amos expulso (Am 7), Jeremias preso ao tronco, julgado, atirado na cisterna para morrer e conduzido ao Egito a força (Jr 20,2; 26; 38; 43), Urias degolado (Jr 20,23), Zacarias lapidado no átrio do templo (23,35; 2Cor 24,20s).

Finalmente, o proprietário, enviou-lhes o seu filho, pensando: ‘Ao meu filho eles vão respeitar’. Os vinhateiros, porém, ao verem o filho, disseram entre si: ‘Este é o herdeiro. Vinde, vamos matá-lo e tomar posse da sua herança!’ Então agarraram o filho, jogaram-no para fora da vinha e o mataram (vv. 37-39).

Sobre o envio do “filho” recorda-se a história de José, enviado por Jacó (cf. Gn 37,20; leitura de hoje). Mt caracteriza o filho não como “amado” (Mc 12,6), mas o destaca como messias acrescentando que “finalmente” foi enviado.

Ele é o “herdeiro de todas as coisas” (Hb 1,2), o messias a quem Deus entrega o seu povo que é a herança do Senhor (cf. 1Rs 8,51; Jr 12,8; Sl 2,8; Hb 1,1s). Mas seus rivais pretendem “matá-lo e tomar posse da sua herança”.

Esta alegoria é, ao mesmo tempo, mais um anúncio da paixão: Jesus será morto “fora” da vinha (na parábola de Mc, foi jogado fora só depois do assassinato): a crucificação acontecerá fora dos muros da cidade (cf. Lv 24,14.23; 16,27; Nm 15,36; Dt 22,24; Hb 13,12).

Pois bem, quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros?” Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: “Com certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo” (vv. 40-41).

Depois faz uma pergunta dirigida ao público tomado como uma espécie de júri: “O dono da vinha, o que fará com esses vinhateiros?” Eles pronunciam sua própria sentença (cf. 2Sm 12,5-6).

Mt copiou esta parábola de Mc 12,1-12, mas enfatizou “o modo violento” com que Deus destruirá estes assassinos, porque Mt escreveu em 80 d.C., ainda sob o impacto da destruição de Jerusalém pelo exército romano em 70 d.C.. Mais explícito escreveu na próxima parábola em 22,7: “Diante disso o rei ficou com muita raiva, e mandando suas tropas, destruiu aquelas homicidas e incendiou-lhes a cidade”.

Então Jesus lhes disse: “Vós nunca lestes nas Escrituras: a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isto foi feito pelo Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos? Por isso eu vos digo: o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos” (vv. 42-43).

A pergunta “vós nunca lestes nas Escrituras?” é colocada por Mt sempre em conflitos com os adversários (12,3.5; 19,4; 21,16; 22,31). Para Mt é importante “produzir/entregar os frutos” (vv. 34.41.43; cf. 3,8; 7,16-20; 12,33; 13,41-43; 25,31-46) que são sinais da fidelidade à aliança e da ação concreta.

Matando o filho, os dirigentes de Israel não conseguiram seu objetivo, porque o filho volta a viver para receber a herança, como menciona a citação de Sl 118,22-23: “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular” (v. 42; cf. Is 8,14s; 28,16; 1Pd 2,4-8; Rm 9,32s; Ef 2,20; At 4,11). Neste salmo, alguém que estava numa posição importante (pedra angular, ou pedra fundamental) agradece porque chegou perto da morte e voltou a viver, e pode ir novamente ao templo para participar da liturgia. Junto com Zc 4,7; Dn 2,34.44s; 7,14, esse salmo era apto para os cristãos verem o trajeto do messias Jesus.

Antes rejeitado e morto, o filho, quando ressuscitar, exercerá sua autoridade e “o reino de Deus … será entregue a um povo que produzirá frutos” (v. 43). Este povo novo é a Igreja, novo povo de Deus e aberto aos pagãos (cf. “reino” e “povo” em Dn 2,44; 7,27). A forma passiva “será entregue” indica a ação do próprio Deus.

Nossa leitura omite o v. 44, porque falta em alguns manuscritos: “Quem cair sobre essa pedra, ficará despedaçado, e se ela cair sobre alguém, o esmagará” (cf. Lc 20,18); neste a pedra de v. 42 é identificada com o Filho do Homem que fará o juízo final (cf. Dn 2,44s; 7,13s).

Os sumos sacerdotes e fariseus ouviram as parábolas de Jesus, e compreenderam que estava falando deles. Procuraram prendê-lo, mas ficaram com medo das multidões, pois elas consideravam Jesus um profeta (vv. 45-46).

As “multidões” do povo ainda protegem Jesus, mas não é suficiente porque o consideram apenas “um profeta” (cf. 16,14; 21,11). “Os sumos sacerdotes e fariseus compreendem que estava falando deles” (v. 45; cf. 27,62). Mas não só eles, nós também devemos entender que a exigência de trazer frutos da justiça, gestos concretos de caridade, continua valendo para cada um(a) de nós e para a Igreja como toda porque são os critérios do juízo final (cf. 7,21-23; 25,31-46).

O site da CNBB resume: O Evangelho de hoje nos apresenta uma síntese de toda a história da salvação. Deus formou o seu povo, representado por Jerusalém que, nesta parábola, é simbolizado pela vinha. Aqueles que eram responsáveis pela vida religiosa do povo não foram fiéis a Deus, que lhes enviou os profetas para que voltassem ao caminho da justiça, mas os profetas não foram recebidos, foram vítimas de toda espécie de violência e acabaram mortos. Por fim, Deus enviou seu Filho ao mundo, mas ele também foi rejeitado e morto. Deus, então, estabeleceu uma nova Aliança com o seu novo povo, a Igreja, que deve produzir seus frutos no devido tempo.

 

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