02 de Novembro de 2018, Sexta-feira: Fieis defuntos (finados)

A nossa liturgia católica deixa um ampla variedade de textos bíblicos para se escolher nas missas neste dia (50 páginas no lecionário, mas no site da CNBB repetem-se apenas os textos de Todos os Santos!). Apresentamos aqui as leituras sugeridas na Liturgia diária da Editora Paulus (Missa 1 – folheto).

1ª Leitura: Jó 19,1.23-27b

Jó é o justo que sofre, não por própria culpa, mas como provação. Nos caps. 1-2, Deus e Satanás fizeram uma aposta: Jó amaldiçoaria Deus se fossem tirados todos os seus bens, seus filhos e sua saúde? Satanás recebeu permissão de tirar tudo isso, mas Jó não amaldiçoou Deus. Seus amigos vieram, mas em vez de consolá-lo, discursam sobre uma eventual culpa dele para merecer tanta desgraça (doutrina da retribuição). A parte central deste livro sapiencial do séc. V e IV a.C. são um diálogo entre as acusações dos seus amigos e a defesa de Jó.

Jó tomou a palavra e disse: (v. 1)

A Nova Bíblia Pastoral (p. 641) comenta o cap. 19: Lamento profético (cf. Hab 1,2; Jr 20,8; Lm 3,8) que acusa Deus de falsear a justiça e agir com os reis que exploram e exercem a violência. Apresenta como consequência a solidão e a hostilidade dos membros da comunidade, do círculo de relações familiares e dos amigos íntimos (cf. 15,8.17; Jr 23,18.22;  Am 3,7; Pr 11,13; 20,19; 25,9). A religião centrada no Templo e nos sacrifícios, na doutrina da retribuição e nos pecados morais, é incapaz de gerar solidariedade e aprofunda a concepção de que o sofrimento é castigo divino. O apelo de Jó se dirige ao “protetor” (go’el, v. 25). Este termo pode significar o parente próximo enquanto redentor do sangue (2Sm 14,11) e da herança (Dt 25,5-10; Rt 2,20; 3,9; 4,4s; Lv 25,25; Nm 5,8); o defensor diante dos inimigos (Pr 23,10-11); ou o Deus que liberta os hebreus do Egito (Ex 6,6; 15,13; Sl 74,2) e resgata os exilados da Babilônia (Is 41,14; 43,1).

Gostaria que minhas palavras fossem escritas e gravadas numa inscrição com ponteiro de ferro e com chumbo, cravadas na rocha para sempre! (vv. 23-24)

A Bíblia do Peregrino (p. 1096) comenta: As palavras são de uma solenidade extraordinária, um chamado a posterioridade (ver Sl 102,190). Pensa numa grande inscrição lapidar, com chumbo incrustado na rocha. O autor sente a importância do que seu protagonista vai dizer e o sublinha. É importante, porque expressa a última apelação ou convicção de Jó; mas deve ser tomado no contexto total. Em certo sentido, esse desejo de perpetuidade se estende às outras palavras de Jó, especialmente as que expressam sua sede e esperança de justiça. Não podemos negar que o livro de Jó dura mais que uma inscrição na rocha, que a consciência do autor não se enganava ao calcular a importância do seu livro.

“Com chumbo” (hebr.:  we’oparet), ou “com estilete” (weçipporen, cf. Jr 17,1). O rabino medieval Rashi (1040-1105) sugeriu que o chumbo tem, como finalidade, escurecer as letras incisas da inscrição para fazê-lo sobressair. Os nobres foram sepultados em caixões mais duradouros (sarcófagos) de pedra ou de chumbo.

Eu sei que o meu redentor está vivo e que, por último, se levantará sobre o pó; e depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne, verei a Deus (vv. 25-26).

“Redentor”, ou defensor, vingador de sangue (cf. 16,18-21; Nm 35,19). No antigo Israel, era aquele que reivindicava um direito que um de seus parentes próximos já não podia exercer por si mesmo (Lv 25,25; Rt 4,4). Depois se aplica-se muitas vezes a Deus, salvador do seu povo e vingador dos oprimidos. Os rabinos do judaísmo aplicaram este termo ao messias (em grego: Cristo), donde vem a tradução de São Jerônimo “meu redentor”.

Na sua tradução normativa para Igreja Católica (Vulgata), S. Jerônimo, traduziu o original hebraico go’el por redemptor (= resgatador), e o latim passou as nossas línguas. Os cristãos aplicaram o título ao Cristo que nos livra da culpa (com seu próprio sangue) e nos reconcilia com Deus. Umas das imagens mais famosas do Brasil e do mundo é o Cristo Redentor em Rio de Janeiro (1931). O título da primeira encíclica do papa João Paulo II foi “Redemptor hominis” (redentor do homem), escolhido depois como lema episcopal por Dom Ricardo Weberberger (1979).

A Bíblia do Peregrino (p. 1097) comenta: O vingador é uma instituição jurídica antiga. Um membro da família, do clã, da tribo, por graus, está obrigando a vingar seu próximo. Em caso de assassinato, matando o culpado, Dt 19,6-12 (a legislação antiga não admite compensação). O ato e a obrigação de vingar baseiam-se em laços de solidariedade. Deus assume essa função com relação a Israel (ver sobretudo o Segundo Isaías). Nosso texto se refere ao vingador de sangue, e o ato da vingança deve consistir em provar a inocência da vítima.

A Bíblia de Jerusalém (p. 907) comenta: Jó, caluniado e condenado pelos seus amigos, espera um defensor, que é precisamente o próprio Deus, a menos que aí deve ser visto um mediador celeste que assumiria a defesa de Jó e o reconciliaria com Deus (cf. 16,19). Jó, contudo, continua a considerar perdida sua felicidade próxima a sua morte: Deus só intervirá para vingar sua causa depois de ele morrer. Todavia, Jó espera ser disso testemunha, “ver” seu vingador. Parece, pois, que ele nesta passagem (após ter imaginado – 14,10-14 – a possibilidade de esperar no Xeol durante o tempo da ira), num impulso de fé em Deus que pode fazer voltar a Xeol (cf. 1Sm 2,6; 1Rs 17,17-24; Ez 37) está contando com um retorno passageiro a vida corporal, para o tempo da vingança. Esta curta evasão da fé de Jó dos limites intransponíveis da condição mortal, para satisfazer sua necessidade de justiça numa situação desesperada, preludia a revelação explícita da ressureição da carne (cf. 2Mc 7,9).

“Por último, se levantará sobre o pó”. “Por último/no fim” lembra Is 44,6; 48,12; “se levantar” é termo jurídico (frequentemente aplicado a testemunha ou ao juiz: 31,14; Dt 19,16; Is 2,19.21; Sl 12,6) ou então o ato de intervir. O pó pode significar a sepultura, a humilhação, e poderia aludir sutilmente a condição humana.

O v. 26 é difícil de traduzir: “depois que tiverem destruído esta minha pele” ou “depois do meu despertar, levantar-me-á junto dele”: ‘ûrî, “minha pele”: ‘ôrî, hebr.– “levantar-me-á junto dele”: zeqapanî ‘itô, conj.; “eles destruíram isso”: niqqepû zo’t, hebr.

A Bíblia do Peregrino (p. 1096s) comenta: Mas é terrível observar que exatamente essas palavras do livro sejam para nós tão obscuras. O texto hebraico está mal conservado, talvez por manipulação intencional; os tradutores antigos ensaiaram leituras diferentes do texto, como profissão de fé na ressurreição (Jerônimo) ou negado tal interpretação (Crisóstomo), e os comentaristas modernos, em vez de entrar em acordo, tendem a multiplicar ou diferenciar as explicações. Trata-se claramente da justificação que, apesar de tudo, Jó espera: espera ou deseja uma justificação antes de morrer ou depois da morte? No segundo caso, terá consciência dela estando morto, ou ressuscitará para recebê-la? No último caso, pensa numa ressureição pessoal ou na ressurreição universal de que lhe falam Dn e Sb? O livro não pensa na ressurreição, a exclui: 3,11-22; 7,9-10;10,18-22; 16,22; 17,1.13-16; 21,23-26. Por outro lado, em sua sede de justiça, Jó expressa as vezes uma esperança paradoxal, até nos momentos que se entrega à morte, sobretudo no cap. 16, que se liga com o presente. Por isso prefiro, como um pouco mais provável, a interpretação que nossa tradução reflete: ao morrer, Jó invoca a terra para que não cubra seu sangue, para que clame pedindo a vingança, 16,8; agora grita que o vingador de seu sangue vive, por isso espera que, já morto, conhecerá sua própria sua própria justificação lá do reino da morte, e, justificado, poderá ver a Deus. A vida já não lhe importa, contanto que lhe façam justiça; já aceitou a morte, pensando que lhe farão vingança; a justiça deverá prevalecer, e ele, ainda que morto, terá a satisfação de sabê-lo.

No outro extremo está a interpretação, também provável, que coloca a reivindicação de Jó nesta vida, numa teofania imediatamente antes da morte. Em tal caso, “sem pele e sem carne” é expressão hiperbólica que descreve o estado físico de Jó antes de morrer. Em qualquer caso, a doutrina da ressurreição não existe no texto original nem corresponde ao sentido do livro; é fruto de uma leitura posterior, iluminada pelo progresso da revelação neste ponto…

Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão, e não os olhos de outros (v. 27ab).

Como não se pode olhar muito no sol sem ficar cego, um ser humano não pode ver Deus com seus olhos porque morreria (Ex 33,20; cf. Jo 1,18; 6,46). Mas na situação em que Jó já imagina estar, não existe tal perigo; é algo paradoxal, e Jó reforça seu paradoxo.

A Bíblia do Peregrino (p. 1096s) comenta: As palavras de Jó sobrevivem a ele e o vingam; mas isso não basta. As palavras de Jó ultrapassam a ele e ao autor, têm significado excessivo para sua realidade. Tem de vir uma realidade “final” que encham a capacidade de sentido dessas palavras. Esse é o fundamento de sua leitura cristã.

2ª Leitura: Rm 5,5-11

Na carta aos romanos, depois de discursar sobre a justificação pela fé e não pelas obras da lei, Paulo fala sobre a esperança e o amor (vv. 1-5).

(Irmãos) A esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (v. 5).

“Justificados pela fé, estamos em paz com Deus” (v. 1); por isso, começamos a viver a “esperança da glória de Deus” (v. 2).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2126) comenta: A esperança cristã é a expectativa dos bens escatológicos: a ressurreição do corpo (Rm 8,18-23; 1Ts 4,13s; cf. At 2,26; 23,6; 24,15;26,6-8;28,20), a herança dos santos (Ef 1,18; cf. Hb 6,11s 1Pd 1,3s), a vida eterna (Tt 1,2; cf. 1Cor 15,19), a glória (Rm 5,2; 2Cor 3,7-12; Ef 1,18; Cl 1,27; Tt2,13), a visão de Deus (1Jo 3,2s), numa palavra, a salvação (1Ts 5,8; cf. 1Pd 1,3-5) própria e dos outros (2Cor 1,6s; Ts 2,19). Designando em primeiro lugar a virtude que espera esses bens, ela pode, as vezes, designar estes mesmos bens celestes (Gl 5,5; Cl 1,5; Tt 2,13; Hb 6,18). Outrora depositada em Israel (Ef 1,11-12; cf. Jo 5,45; Rm 4,18), com exclusão dos gentios (Ef 2,12; cf. 1Ts 4,13), ela preparava uma esperança melhor (Hb 7,19), que hoje é oferecida também aos gentios (Ef 1,18; Cl 1,27; cf. Mt 12,21; Rm 15,12), no ministério de Cristo (Rm 16,25). Ela se fundamenta em Deus (1Tm 5,5; 6,17; 1Pd 1,21; 3,5), em seu amor (2Ts 2,16), em seu apelo (1Pd 1,13-15; cf. Ef 1,18; 4,4), em seu poder (Rm 4,17-21), em sua veracidade (Tt 1,2; Hb 6,18) e na sua fidelidade (Hb 10,23) em manter as promessas consignadas nas escrituras (Rm 15,4) e no Evangelho (Cl 1,23), e realizadas na pessoa de Cristo (1Tm 1,1; 1Pd 1,3.21). Ela não pode decepcionar (Rm 5,5). Voltada, por definição, para os bens invisíveis (Rm 8,24; Hb 11,1), ela se apoia na fé (Rm 4,18; 5,1s; 15,13; Gl 5,5, Hb 6,11s; 1Pd 1,21) e se nutre do amor (Rm 5,5; 1Cor 13,7), as duas outras virtudes teologais às quais está intimamente ligada (1Cor 13,13). O Espírito Santo, o dom escatológico por excelência, já parcialmente possuído (Rm 5,5; At 1,8), é sua fonte privilegiada (Gl 5,5), que a ilumina (Ef 1,17s), a fortifica (Rm 15,13), a faz orar (Rm 8,25-27) e por ela realiza a unidade do corpo (Ef 4,4). Fundada na justiça pela fé em Cristo (Rm 5,1s; cf. Gl 5,5), ela é cheia de segurança (2Cor 3,12; Hb 3,6), de conforto (2Ts 2,16; Hb 6,18), de alegria (Rm 12,12; 15,13; 1Ts 2,19) e de santo orgulho (Rm 5,2; 1Ts 2,19; Hb 3,6); ela não se deixa abater pelos sofrimentos presentes, que não tem proporção com a gloria prometida (Rm 8,18). Pelo contrário, ela os suporta com uma “constância” (Rm 8,25; 12,12; 15,4; 1Ts 1,3; cf. 1 Cor 13,7) que a prova (Rm 5,4) e a fortalece (2Cor 1,7).

Essa esperança é vivida em meio a uma luta perseverante, ancorada na certeza, garantida “pelo Espírito Santo que nos foi dado”. Só aqui o Espírito Santo é tal vinculado ao “amor de Deus” que se manifesta em Jesus Cristo; uma visão trinitária: Deus é amor em três pessoas (cf. 1Jo 4,8.16).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2126) comenta: O amor com que Deus nos ama e do qual o Espirito é um penhor e testemunha por sua presença ativa em nós (cf. 8,15 e Gl 4,6). Nele nos dirigimos a Deus como um filho a seu Pai; o amor é recíproco. Nele, igualmente, amamos nossos irmãos como o mesmo amor que o Pai ama o Filho e com que nos ama também a nós (cf. Jo 17,26).

O Espírito Santo da promessa (Ef 1,13; cf. Gl 3,14; At 2,33), que caracteriza a nova aliança em oposição à antiga (Rm 2,29; 7,6; 2Cor 3,6; cf. Gl 3,3; 4,29; Ez 36,27), não é somente uma manifestação exterior  de poder taumatúrgico e carismático (At 1,8); é também e sobretudo um princípio interior de vida nova que Deus dá (1Ts 4,8, etc.; cf. Lc 11,13; Jo 3,34; 14,16s; At 1,5; 2,38, etc.; 1Jo 3,24), envia (Gl 4,6; cf. Lc 24,49; Jo 14,26; 1Pd 1,12), outorga (Gl 3,5; Fl 1,19), derrama (Rm 5,5; Tt 3,5s; cf. At 2,33). Recebido pela fé (Gl 3,2.14; cf. Jo 7,38s; At 11,17) e pelo batismo (1Cor 6,11; Tt 3,5; cf. Jo 3,5; At 2,38; 19,2-6), ele habita no cristão (Rm 8,9; 1Cor 3,16; 2Tm 1,14; cf. Tg 4,5), no seu espírito (Rm 8,16; cf. Rm 1,9) e mesmo em seu corpo (1Cor 6,19). Este Espirito, que é o Espirito de Cristo (Rm 8,9; Fl 1,19; Gl 4,6; cf. 2Cor 3,17; At 16,7; Jo 14,26; 15,26; 16,7.14), torna o cristão filho de Deus (Rm 8,14-16; Gl 4,6s) e faz Cristo habitar em seu coração (Ef 3,16). Ele é para o cristão (como para o próprio Cristo, Rm 1,4) um princípio de ressurreição (Rm 8,11), por um dom escatológico que desde agora o marca como com um selo (2Cor 1,22; E 1,13; 4,30) e que se encontra nele como penhor (2Cor 1,22; 5,5; Ef 1,14) e primícias (Rm 8,23). Substituindo o princípio mau da carne (Rm 7,5), torna-se no homem um princípio de fé (1Cor 12,3; 2Cor 4,13; cf. 1Jo 4,2s), de conhecimento sobrenatural (1Cor 2,10-16; 7,40; 12,8s; 14,2s; Ef 1,17; 3,16.18; Cl 1,9; cf. Jo 14,26), de amor (Rm 5,5; 15,30; Cl 1,8), de santificação (Rm 15,16; 1Cor 6,11; 2Ts 2,13; cf. 1Pd 1,2), de conduta moral (Rm 8,4-9.13; Gl 5,16-25), de coragem apostólica (Fl 1,19; 2Tm 1,7s; cf. At 1,8), de esperança (Rm 15,13; Gl 5,5; Ef 4,4) e de oração (Rm 8,26s; cf. Tg 4,3.5; Jd 20). Não se deve extingui-lo (1Ts 5,19) nem conquista-lo (Ef 4,30). Unindo a Cristo (1Cor 6,17), ele realiza a unidade de seu Corpo (1Cor 12,13; Ef 2,16.18; 4,4).

Com efeito, quando éramos ainda fracos, Cristo morreu pelos ímpios, no tempo marcado. Dificilmente alguém morrerá por um justo; por uma pessoa muito boa, talvez alguém se anime a morrer. Pois bem, a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores (vv. 6-8).

“Quando éramos ainda fracos”, ou seja, impotentes para nos desvencilhar do pecado.

A Bíblia do Peregrino (p. 2713) comenta os vv. 6-10: Exalta o amor desinteressado de Jesus Cristo com um sistema de quatro oposições que produzem efeito cumulativo. Malvados perdoados, culpados indultados, inimigos reconciliados, reconciliados legitimamente orgulhosos (Is 45,25; Sl 64,11). A morte de Cristo de é antes de tudo revelação do amor incondicional de Deus: um amor não suscitado por nossa boa conduta, pelo contrário. Não podemos estar orgulhosos de nós: todo nosso orgulho reside em Deus. Já não orgulhosos de seu poder (Sl 115,3), mas do seu amor.

Muito mais agora, que já estamos justificados pelo sangue de Cristo, seremos salvos da ira por ele. Quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com ele pela morte do seu Filho; quanto mais agora, estando já reconciliados, seremos salvos por sua vida! Ainda mais: Nós nos gloriamos em Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo. É por ele que, já desde o tempo presente, recebemos a reconciliação (vv. 9-11).

O sangue (= morte) de Cristo nos trouxe vida e salvação. No fundo está o texto de Is 53: “justificados pelo sangue”, “reconciliados pela morte do seu filho” (vv. 9-10); o servo inocente de Deus nos traz vida e salvação (cf. 1Jo 4,10). Agora já que fomos reconciliados, podemos crer com maior razão e esperar que sejamos salvos pela vida-ressurreição de Jesus (vv. 10-11).

“Seremos salvos por sua vida”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2180) comenta: Desde agora justificados (v. 9), reconciliados com Deus (vv. 10-11), graças ao sangue, isto é, à morte do Cristo (vv. 9-10), os crentes aguardam, cheios de esperança, a salvação escatológica, último fruto da Ressureição de Cristo (v. 10). Paulo nunca separa a morte de Cristo da sua ressurreição (cf. 4,25). A perspectiva dos vv. 9-11 é a mesma que a de Rm 5,2 e 8,11.

 

Evangelho: Jo 6,37-40

Este evangelho é tirado do grande discurso de Jesus sobre o Pão da Vida (cap. 6) que começou, igual aos evangelhos sinóticos com a multiplicação dos pães (vv. 1-15) e caminhada de Jesus sobre o mar agitado para se juntar a seu discípulos (vv. 16-21). Mas a multidão dos judeus que comeu dos pães e porém, veio à procura de Jesus. Queriam fazer Jesus rei para continuar este milagre dos pães (v. 15). Jesus crítica que eles o procuram só para comer e ficar satisfeito em vez de trabalhar pelo alimento que permanece para vida eterna (vv. 26s). Os judeus reclamam um sinal (em João, os milagres são chamados “sinais”), análogo ao do maná (vv. 30s). Jesus declara: “Eu sou o Pão da vida. Quem vem a mim, nunca mais terá fome, e o que crê em mim nunca mais terá sede. Eu, porém, vos disse: vos me vedes, mas não credes” (vv. 35s; cf. 4,14; Is 55,1; Mt 5,6; Ap 7,16).

(Naquele tempo, disse Jesus ás multidões:) “Todos os que o Pai me confia virão a mim, e quando vierem, não os afastarei” (v. 37).

Depois de declarar Pão da Vida, Jesus explica o significado de “vir a mim” do v. 35 e da falta de fé dos que viram o milagre dos pães como sinal, mas não creem exigindo mais sinais (vv. 26.30.36). Portanto, Jesus fala agora sobre a fé, resumindo o cap. 3: o fiel só pode crer, quando “nasce pelo Espírito”, ou seja, quando é o Pai que o “confia” (lit. dá, cf. v. 39) ou “atrai” (v. 44).  A fé é dom e iniciativa de Deus e “vir a Jesus” equivale a crer.

A Bíblia do Peregrino (p. 2568s) comenta: Viram o milagre, não o penetraram como sinal, não acreditaram na pessoa de Jesus. É o olhar superficial que não penetra na realidade. A estes se opõem a comunidade dos fiéis que Jesus recebe como dom do Pai. O pai tem a iniciativa: envia seu Filho (vv. 38s), recomenda-o aos que creem, designa-lhe uma missão salvadora.

Os que vêm a Jesus são dados pelo Pai ao Filho, por isso que o Filho os acolhe e o guarda (17,6-15). Jo acentua mais uma vez a gratuidade e a soberania da graça de Deus. “Afastar (lit. lançar fora)” lembra a expulsão do paraíso (Gn 3) ou alude à prática de excomungar da sinagoga (Jo 9,22). Mas o amor de Deus é universal (cf. Sb 11,21-12,2), e Jesus acolhe os pecadores (8,1-11; cf. Lc 15) e os samaritanos (Jo 4).

Pois eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou (v. 38).

Já no v. 33, Jesus declarou: “O pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (cf. vv. 50s.58). Na conversa com Nicodemos, Jesus disse: “Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem… Deus amou tanto o mundo que entregou seu Filho único para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (3,13.16). Em Jo, Jesus é o “enviado” do Pai que realiza a vontade e as obras do Pai, até o juízo final e a ressurreição dos mortos: “O Filho, por si mesmo, nada pode fazer, mas só aquilo que vê o Pai fazer… Como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho dá a vida a quem quer…. Por mim mesmo, nada posso fazer, eu julgo segundo o que ouço e meu julgamento é justo, porque não procuro a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (5,19.21.30). Nos evangelho sinóticos, Jesus reza no jardim Getsêmane: “Pai, … Afasta de mim este cálice; porém, não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 15,36p).

A vontade do Pai será explicado em seguida nos vv. 39s.

Jesus veio para “fazer a vontade daquele que me enviou” (cf. 4,34; 5,19-30). Falando do envio do Filho pelo Pai (cf. 3,34 nota) ou o amor do Pai ao Filho. Jo nada fez senão reafirmar a unidade de Jesus e de Deus e a filiação divina de Jesus.

“E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas os ressuscite no último dia. Pois esta é a vontade do meu Pai: que toda a pessoa que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna. E eu o ressuscitarei no último dia” (vv. 39-40).

Jesus não deve “perder nenhum daqueles” que o Pai lhe deu. Esta ideia do Bom Pastor é retomada em Jo 10,28s; 17,12; 18,9; cf. Mt 18,14.

“Ver” o Filho é discernir as aparências (condição humana), ver com os olhos da fé e reconhecer que ele é realmente o Filho enviado pelo Pai (cf. 12,45; 14,9). Os judeus que viram Jesus, mas não acreditaram nele (v. 36), perdem o acesso e sua demanda por sinais não pode ser atendida fora da fé. Os gregos (pagãos) que “querem ver Jesus”, porém, terão acesso, porque Jesus atrairá todos a si na cruz (12,21.32).

A Bíblia do Peregrino (p. 2568) comenta: O último dia é o dia do juízo final (11,24; 12,48). A vontade do Pai é a salvação de todos as pessoas. A salvação não está completa sem a ressurreição. É necessário contemplar com olhar penetrante, iluminado. A ressurreição que promete será dom do Filho, o único que pode comunicar a vida eterna.

Os vv. 39 e 40c poderiam ser de uma redação eclesial posterior que quer corrigir a escatologia presente do evangelista (a participação atual nos bens celestes através da fé: “que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna”), pela perspectiva de uma escatologia futura (ressurreição só no último dia); cf. o mesmo procedimento em 5,24-26 (a hora é agora) e 5,28s (vem a hora).

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