03 de junho de 2018, Domingo: Disse o Senhor Deus à mulher: “Por que fizeste isso?” E a mulher respondeu: “A serpente enganou-me e eu comi”

1ª Leitura: Gn 3,9-15

Em vista ao texto do evangelho de hoje que nos fala de Satanás-Belzebu, ouvimos como primeira leitura a maldição da serpente, símbolo da astúcia e da tentação por Satanás.

(Depois que o homem comeu da fruta da árvore,) o Senhor Deus chamou Adão, dizendo: “Onde estás?” E ele respondeu:  “Ouvi tua voz no jardim, e fiquei com medo, porque estava nu; e me escondi” (vv. 9-10).

O texto de hoje faz parte de uma narrativa que começou com a criação de Adão e Eva no jardim Éden (2,1-5) e depois contou a queda, ou seja, o pecado deste casal quando comeu o fruto proibido (3,1-8). Antigamente, os exegetas chamaram esta narrativa de javista, porque usa o nome de Deus Yhwh = Javé, traduzido aqui por “Senhor”.

A “árvore do conhecimento do bem e do mal” era a única árvore no jardim Éden do qual Javé Deus proibiu de comer (cf. 2,9.16s; 3,1-5). Mas Eva deixou-se seduzir pela serpente e deu de comer também ao homem. A mentira (falsa propaganda) da serpente prometeu: “Vossos olhos se abrirão e sereis como deuses” (v. 5). Depois de comerem, porém, “seus olhos se abriram e souberam que estavam nus” (v. 7).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 28) comenta este pecado: O que o relato condena não é a posse do conhecimento, pois Deus o outorgará ao homem, mas a maneira com ele foi adquirida, pela violação da prescrição divina… O Senhor intervém como um juiz no contexto de um processo judicial. Interroga os culpados, determina as responsabilidades e fixa as sanções. Com isto mesmo, o relato dá a entender que Deus não se desinteressa da sua criatura e não a abandona ao poder da força que a seduziu.

O saber lhes revelou a sua nudez, isto é, sua fraqueza que não importava antes do pecado (2,25). Sem excluir a ideia de pudor, as palavras “nudez” e “vergonha” exprimem na Bíblia a fraqueza, a falta de proteção, a derrota (Am 2,16; cf. Mc 14,51s; Mq 1,8; Sl 6,11 etc.).

Deus chamou Adão, dizendo: “Onde estás?”. O pecado do homem o afastou de Deus: “Onde estás?” Outra pergunta interrogatória será dirigida a Caim depois de ter matado seu irmão: “Onde está seu irmão?” (4,9). Como “Adão” significa simplesmente “ser humano”, cada um de nos poderia se perguntar: “Onde estou em relação com Deus? Longe, distante? Porque?…”

A relação mútua se turba com a vergonha, e surge o encobrimento (vv. 7-8). A relação com Deus se turba com a cautela, a vergonha e o medo, e acontece outro encobrimento (cf. Ap 3,18; Eclo 23,18-19)

Disse-lhe o Senhor Deus: “E quem te disse que estavas nu? Então comeste da árvore, de cujo fruto te proibi comer?” Adão disse: “A mulher que tu me deste por companheira, foi ela que me deu do fruto da árvore, e eu comi” (vv. 11-12).

O homem e, mais adiante, a mulher empurram para outrem a responsabilidade pelo sucedido. Ao tentar de responder a pergunta “de onde vem o mal?”, a própria narração não culpa unicamente o ser humano, mas a tentação (serpente) a ele proposta.

A tradição machista culpou Eva e com ela as mulheres (cf. v. 12; 1Tm 2,14), mas a serpente se aproximou a Eva por ser a parte mais fraca (na sociedade machista). Depois, Adão cedeu igualmente à tentação. Indiretamente, Adão parece culpar até o próprio Deus: “a mulher que tu deste”.

Nas cartas pastorais do NT revoga-se certas liberdades das cartas anteriores de Paulo (cf. Gl 3,28; 1Cor 11,5). Assim justifica-se a proibição de uma mulher ensinar o marido ou falar na assembleia, porque “não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão” (1Tm 2,14). Adão comeu sem ser seduzido? Pior.

Disse o Senhor Deus à mulher: “Por que fizeste isso?” E a mulher respondeu: “A serpente enganou-me e eu comi” (v. 13).

No Antigo Oriente, a serpente significa a potência de fertilidade (Canaã) e a força política. No Egito, a serpente na tiara do faraó (rei) simbolizava o olho do deus Sol, que com seu hálito podia destruir os inimigos. Na epopeia babilônica de Guilgamesh, a serpente roubava ao herói a planta da imortalidade. Em Gn 3, a serpente serve de máscara para um ser hostil a Deus e inimigo do ser humano. Nela a Sabedoria, e depois o NT e toda a tradição cristã, reconheceram o Adversário, o Diabo, Satanás (cf. Jó 1-2 etc.), chamado de “pai de mentira” em Jo 8,44.

Então o Senhor Deus disse à serpente: “Porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais domésticos e todos os animais selvagens! Rastejarás sobre o ventre e comerás pó todos os dias da tua vida! Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (vv. 14-15).

A serpente, “o mais astuto de todos os animais do campo”, passa a ser o mais miserável deles, a sua astúcia volta-se contra ela. No hebraico, o sujeito de “ferirá a cabeça” é a descendência (linhagem), em latim é a mulher (ipsa: esta, a mulher).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 28) comenta: Este versículo tem sido entendido de maneiras diferentes. Para uns, ele anunciaria uma luta de morte e sem fim entre a descendência da mulher e a da serpente; este combate sem desfecho insere-se no contexto das sanções adotadas pelo Senhor. A tradução aqui adotada deixa possibilidade para esta interpretação. Segundo outros, o v. permite entrever um desfecho favorável, pois visa antes de tudo a serpente. A linhagem da serpente é atingida na “cabeça”, a da mulher somente no “calcanhar”; além disso, “comer pó” é sinal de derrota (Mq 7,17) … À luz dos demais livros bíblicos, a tradição cristã frequentemente viu neste texto o “Protoevangelho” que anuncia a vitória do Messias, nascido de uma mulher, o que é sugerido já pela versão grega (este, um indivíduo, e não a descendência, que seria “isto”). A tradição católica reconheceu aqui um dado importante sobre o papel da mãe do Messias, donde a tradução “ipsa conteret” (ela, a mulher, te esmagará) da Vulgata.

Na festa da Imaculada Conceição de Maria (08 de dezembro) ouvimos esta leitura (vv. 9-15.20), porque fala pela primeira vez da vitória sobre o mal (v. 15 é chamado “Proto-evangelho”, primeira boa notícia). Como Jesus é o novo Adão que não é vencido pelo diabo (cf. Mc 1,12-13; Rm 5,12-21; 1Cor 21s; Jo 20,15), ele é o homem mais forte que vai amarrar satanás (cf. evangelho de hoje: Mc 3,22-30). Maria é a nova Eva que foi preservada do pecado original e não peca. “Ele”, ou “ela”, destruirá o poder da serpente (cf. v. 15). O profeta Isaías apresenta imagens de uma paz paradisíaca que o messias trará: a criança pequena pode brincar com a cobra sem lhe fazer mal (Is 11,8).

 

2ª Leitura: 2Cor 4,13-5,1

A vida de Paulo parece frustração e fracasso diante do êxito que seus rivais em Corinto conseguem. Sinal de Evangelho autêntico, porém, não é prestígio fácil. O evangelho provoca sempre conflitos e perseguições, assim a testemunha participa do caminho de Jesus em direção à morte e à ressurreição. Um primeiro aspecto dessa ressurreição já se pode perceber no testemunho vivo da comunidade, que foi gerada pelo testemunho do apóstolo, cuja fraqueza humana se torna instrumento do poder de Deus.

Sustentados pelo mesmo espírito de fé, conforme o que está escrito: “Eu creio e, por isso, falei”, nós também cremos e, por isso, falamos, certos de que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressuscitará também com Jesus e nos colocará ao seu lado, juntamente convosco (4,13-14).

O batismo é sinal da fé, nele recebemos o Espírito que nos faz filhos de Deus (cf. Rm 8,14s; Gl 3,25-27). Paulo cita o Sl 116,10 (desligado ao contexto e segundo a versão grega): “Eu creio, e por isso falei”. Com a fé batismal se recebia o Espírito, e uma de suas manifestações clássicas era falar línguas misteriosas (cf. At 10,44-46; 1Cor 14); aqui o “Espírito” presente pela “fé” impulsiona a falar e proclamar em língua inteligível (cf. 1Cor 14,9.19). É a proclamação de uma esperança: “Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus, nos ressuscitará também com Jesus e nos colocará ao seu lado dele, juntamente convosco” (v. 14; cf. Rm 6,4-5; 8,11).

E tudo isso é por causa de vós, para que a abundância da graça em um número maior de pessoas faça crescer a ação de graças para a glória de Deus (4,15).

Como de costume, tudo se concluirá no louvor a Deus, numa “ação de graças para a glória de Deus” numa multiplicação de fieis pela graça divina. A palavra grega eucaristia significa “ação de graças” e é usada depois para a missa (o primeiro termo era “partir o pão”; At 2,42; 20,7; cf. Lc 24,30.35).

Por isso, não desanimamos. Mesmo se o nosso homem exterior se vai arruinando, o nosso homem interior, pelo contrário, vai-se renovando, dia a dia (4,16).

A Bíblia do Peregrino (p. 2775) comenta: O apóstolo se sente submetido a movimento duplo e oposto: da decadência física e até mental, de crescimento espiritual diário. Atuam a força da “corrupção” e da “renovação”.

Em Rm 7,22, “homem interior” designa o ser humano racional e inteligente. Aqui a oposição visa ao crescimento espiritual e ao definhamento físico (cf. Rm 8,18s.23), cf. o contraste de “homem velho” e o “homem novo” em Ef 4,22-24 e Cl 3,9s; e o de “em seu corpo” e “fora do seu corpo” (2Cor 12,2). Sem serem totalmente equivalentes, esses contrastes querem exprimir a mutação que se opera em consequência da ação criadora da presença de Deus.

Com efeito, o volume insignificante de uma tribulação momentânea acarreta para nós uma glória eterna e incomensurável. E isso acontece, porque voltamos os nossos olhares para as coisas invisíveis e não para as coisas visíveis. Pois o que é visível é passageiro, mas o que é invisível é eterno (4,17-18).

Neste contexto (4,16-5,10), Paulo desenvolve o tema da “tribulação momentânea” e da “glória eterna e incomensurável” (cf. Rm 8,17; Hb 12,11; 1Pd 1,6s). Dois termos traduzem o termo hebraico kabod que significa “peso” (aqui traduzido por “volume”) e “glória” (também: brilho, riqueza, majestade, honra). A Bíblia do Peregrino (p. 2775) comenta: O texto o desdobra em um “peso de glória excessivo” que que desequilibra todas as balanças (no Sl 62,10 todos os homens são leves). Para os judeus, o futuro está atrás deles: é invisível porque não o temos à frente, como o passado.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2238) comenta: A oposição não se faz entre visível e invisível, mas antes entre o que já se constatou e o que se espera, mas ainda não apareceu.

Paulo volta a falar do visível e invisível em 5,7 (cf. leitura do próximo domingo).

De fato, sabemos que, se a tenda em que moramos neste mundo for destruída, Deus nos dá uma outra moradia no céu que não é obra de mãos humanas, mas que é eterna (5,1).

A Bíblia do Peregrino (p. 2775s) comenta: A vida em tendas recorda aos israelitas a vida patriarcal e a caminhada pelo deserto (encenada na festa das Tendas); também aos recabitas de costumes beduínos (Jr 35). A imagem se aplica ao indivíduo (Is 38,12; Jó 4,19-21). O oposto são as casas que eles encontram já construídas na terra prometida (Dt 6,11; Js 24,13). A casa celeste, sendo construída por Deus é perpétua.

Em Hb 8,1; 9,24 se fala da tenda autêntica, não construída por mãos humana, i. é, o santuário no céu, em oposição ao templo de Jerusalém. Nos próximos vv. 2-10 (cf. próximo domingo), Paulo continua o tema: além da tenda no deserto que se arma e desarma, compara a passagem do sofrimento para a glória futura com um peregrino que caminha longe de casa, preocupado em chegar, e com quem está sem veste (nu), pronto para revestir-se de uma roupa nova.

 

Evangelho: Mc 3,20-35

O evangelho de hoje apresenta uma composição de texto que os exegetas chamam de “sanduiche”, isto é, uma parte no meio (vv. 22-30: Belzebu) entre duas partes correspondentes em cima e em baixo, ou seja, antes e depois (vv. 20-21.31-35: familiares de Jesus). Encontramos esta forma de composição também em Mc 5,21-43, 6,7-33; 11,11-21; 14,1-11.

Aqui, Mc intercala uma discussão com os escribas vindos de Jerusalém, vv. 20-30, numa cena em que Jesus se defronta com sua família, vv. 20-21 e 31-35. “Os parentes de Jesus saíram” (v. 21), e só “chegaram” (v. 31) depois da acusação dos escribas de Jerusalém (vv. 22-30).

Jesus voltou para casa com os discípulos. E de novo se reuniu tanta gente que eles nem sequer podiam comer (v. 20).

Depois de cinco controvérsias com os fariseus (2,1-3,6), Jesus continuou seu caminho de cura e libertação. O povo continuava o seguindo e ele escolheu os doze apóstolos (3,7-19). Estes vão “ficar com ele” (3,14), seus discípulos constituirão sua nova família (vv. 31-35). Depois da escolha dos doze numa montanha, “voltou para casa”.

Deve-se tratar da “casa de Simão” (1,29) em Cafarnaum, onde Jesus estava, de certa maneira “em casa” (cf. 2,1; é o sentido da expressão em 1Cor 11,34; 14,35), a mesma casa depois em 3,31, onde seus familiares ficavam “do lado de fora”. Mc gosta de anotar a multidão em redor de Jesus, “tanta gente que eles nem sequer podiam comer” (cf. 6,31). Outras casas encontramos em 2,15 (Levi); 7,17 (no exterior); 9,28 (fora de Cafarnaum).

Quando souberam disso, os parentes de Jesus saíram para agarrá-lo, porque diziam que estava fora de si (v. 21).

As dificuldades de Jesus em levar adiante sua ação vêm agora de sua própria família: ela não compreende que ele tenha ido tão longe nos enfrentamentos na radicalidade de sua proposta. O evangelho de Mc não narra os acontecimentos da infância de Jesus. Ouvimos da família dele só aqui em 3,21.31-35 e em 6,1-6. Em Mc, ninguém compreende Jesus, nem os adversários, nem o povo, nem os discípulos, nem os próprios familiares (cf. v. 21; 4,13; 6,1-6; 8,32; 9,32 etc.; 15,35).

“Os parentes”: o texto original em grego fala apenas dos “seus”, podem ser conterrâneos ou parentes. Mas em v. 21 “saíram para agarrá-lo”, e em v. 31 “chegaram sua mãe e seus irmãos… e mandaram chamá-lo”. Então é o mesmo grupo de parentes. “Irmãos” não são necessariamente irmãos de sangue, mas podem ser parentes quaisquer (cf. Gn 13,8: tio Abraão e sobrinho Ló).

Mc não diz como eles “souberam disso”, apenas menciona o seu julgamento: “Está fora de si”. Havia tentativas de atenuar a dureza da expressão, por ex.: ele está em êxtase; ele os enlouqueceu; também se lê: “porque (lhes) dizia que está fora de si”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2401) comenta sobre os familiares: São provavelmente achegados que o conheceram num estilo de vida corrente, e não conseguem integrar sua nova figura. Como se para eles fosse uma personagem nova. Procuram dominá-lo, impedir sua atividade; julgam que delira ou que não sabe conter-se e, eventualmente, temem por ele (a interpretação é duvidosa).

Mas a palavra grega ao pé da letra é “está fora de si”, aqui no sentido de loucura, delírio (cf. Jo 10,20), falta de juízo. Assim Mc prepara a acusação contra Jesus: ser possuído pelo demônio (Beelzebu, vv. 22-30p; cf. Jo 7,20; 8,48.52). A resistência se infiltra entre seus familiares ou parentes próximos, embora seja mais incompreensão que hostilidade.

Já no Antigo Testamento (AT), o profeta sofre hostilidade por parte dos seus familiares (Jr 12,6; 11,21; Zc 13,3; cf. Mc 6,4p), em Sb 5,4 considera-se a vida do justo “uma loucura”. Todos os evangelhos relatam certa incompreensão por parte dos familiares (irmãos) e conterrâneos de Jesus (cf. Lc 4,23-30; Jo 2,4; 7,3-5). Mt e Lc copiam Mc 3,31-35 (e 6,1-6), mas não estes vv. 20-21. Eles têm uma visão mais positiva da família de Jesus (cf. a narrativas de infância em Mt 1-2 e Lc 1-2; cf. At 1,14).

A incompreensão a respeito do mistério (segredo) do messias é característica do evangelho de Mc. Este evangelista mostra a incompreensão dos familiares e, com mais frequência, a dos discípulos, além da hostilidade da elite dominante. Só no final do Evangelho, na cruz e na ressurreição, se entenderá o mistério do messias.

O site da CNBB comenta: A família humana pode fazer com que toda prática de uma pessoa seja vista apenas com olhos humanos, e o resultado disso é a interpretação incorreta dos fatos que devem ser analisados à luz da fé. Os parentes de Jesus não foram capazes de ver o dedo de Deus agindo, e, por isso, achavam que Jesus estava fora de si. Mas o povo foi capaz de ver o que realmente estava acontecendo, pois os corações de todos estavam abertos ao momento presente e à ação do próprio Deus, procurando ver a vida e os ensinamentos de Jesus à luz da fé. Por isso, o povo se reunia em número cada vez maior em torno de Jesus, de modo que ele e seus discípulos nem sequer podiam comer.

Depois da opinião dos familiares de Jesus que achavam que ele “está fora de si” (v. 21), os peritos de Jerusalém chegam a uma conclusão pior.

Os mestres da Lei, que tinham vindo de Jerusalém, diziam que ele estava possuído por Beelzebu, e que pelo príncipe dos demônios ele expulsava os demônios (v. 22).

Jesus já foi sentenciado pelos fariseus e herodianos na Galileia (3,6), mas agora vêm peritos, “mestres da lei”, da capital de Jerusalém em missão oficial (v. 22; cf. os enviados do templo para interrogar o Batista em Jo 1,19). Parece que trazem a sentença já confeccionada. A quem liberta os possessos declaram o primeiro possesso, aliado camuflado do chefe dos demônios. “Belzebu” é um dos nomes tradicionais do diabo (tomado do deus da cidade filisteia de Acaron em 2 Rs 1,2-16 onde o nome Beel-Zebul, “senhor príncipe”, é transformado maliciosamente em Baal Zebub, “senhor das moscas”). A acusação dos mestres da lei é gravíssima e visa desacreditar pela base toda atividade de Jesus, declarando-o agente do rival (satanás) de Deus. É uma acusação absurda em simples lógica e se voltará contra os que a pronunciam.

Então Jesus os chamou e falou-lhes em parábolas: “Como é que Satanás pode expulsar a Satanás? Se um reino se divide contra si mesmo, ele não poderá manter-se. Se uma família se divide contra si mesma, ela não poderá manter-se. Assim, se Satanás se levanta contra si mesmo e se divide, não poderá sobreviver, mas será destruído. Ninguém pode entrar na casa de um homem forte para roubar seus bens, sem antes o amarrar. Só depois poderá saquear sua casa (vv. 23-27).

Jesus responde com dupla comparação (“em parábolas” v. 23): a unidade de um reino e de uma casa/família. Satanás tem seus agentes, seus instrumentos, sua morada e seguidores; insinua-se sua oposição ao reino de Deus (cf. 1,12-15) e a casa/família de Deus (cf. vv. 31-35). Não é que uma facção do reino de Satanás esteja lutando contra outra; o ataque vem de fora, de um mais “forte” que ele, que vem “o amarrar” e “saquear sua casa” (Jesus já enfrentou satanás com sucesso no deserto, cf. 1,12-13). Quando Satanás for amarrado, também o domínio da morte o será (cf. Lc 10,18; Hb 2,14; Ap 20,1.10).

Na Igreja Ortodoxa, o ícone da ressurreição (anástasis) mostra a descida de Jesus entre os mortos: Com a estandarte da cruz, ele liberta Adão e Eva (representantes da humanidade) dos seus túmulos, e Satanás fica amarrado sob a porta arrombada da mansão dos mortos.

Em verdade vos digo: tudo será perdoado aos homens, tanto os pecados, como qualquer blasfêmia que tiverem dito. Mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, mas será culpado de um pecado eterno.” Jesus falou isso, porque diziam: “Ele está possuído por um espírito mau” (vv. 28-30).

Atribuir a Satanás o que é ação de Deus é “blasfemar contra o Espírito Santo” (v. 29). No AT, blasfêmia contra Deus era considerada delito gravíssimo com pena de lapidação (cf. Ex 22,27; Lv 24,11-16; Eclo 23,12; cf. Mc 2,7; 14,64; At 6,11; 7,57s). Quem se obstina diante dos sinais evidentes, fecha-se à ação de Deus, também ao perdão de Jesus pelo qual venceria Satanás. Quem recusa o perdão, não pode recebê-lo (cf. Jo 20,22-23), corta o galho em que está apoiado, “nunca será perdoado” (v. 29).

O site da CNBB resume: A inveja nos faz capazes de encontrar os motivos mais terríveis para condenar alguém que pratica o bem. Com Jesus não foi diferente. Os mestres da Lei viam tudo o que Jesus fazia e não podiam negar os fatos, mas quando deveriam aderir à proposta de Jesus, a inveja tomou conta dos seus corações. Como o poder de Jesus não podia ser contestado, resolveram contestar a origem de tal poder, afirmando que este não era a manifestação de uma realidade divina, e sim diabólica, atribuindo a Jesus o que de fato era a origem dos seus próprios pensamentos, uma vez que negavam como divina a ação do próprio Espírito Santo, e isso sim, é algo diabólico.

Chegaram a mãe de Jesus e seus irmãos. Eles ficaram do lado de fora e mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada ao redor dele. Então lhe disseram: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura” (vv. 31-32).

O texto volta a falar dos familiares de Jesus (cf. vv. 20-21). Jesus está no interior da casa (provavelmente a de Simão Pedro, cf. 1,19; 2,1; 3,20), “uma multidão sentada ao redor dele” (cf. v. 20). Por “fora” deste círculo, os familiares procuram Jesus: define-se agora os familiares (v. 21: lit. “os seus”) que “saíram para agarrá-lo” (em 3,21), agora “chegaram a mãe de Jesus e seus irmãos” (v. 31). O termo “irmão” abrange, em linguagem bíblica, também os parentes (cf. Gn 13,8: tio e sobrinho). Em Mc, não se menciona o pai José (também não em 6,3). Então, José já deve ter morrido e Jesus, como primogênito adulto tornou-se chefe desta família que quer agora romper o círculo dos seguidores e reclamar seu parente famoso.

Ele respondeu: “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (vv. 33-35).

Jesus não despreza vínculos familiares, por isso, ele tem um “Pai” no céu (Mc 14,36; Mt 6,9p; Lc 2,41-52). Mas ele está criando uma nova família, não através da carne, mas através do Espírito (cf. Jo 1,12-13; Rm 8,14-17). “Quem faz a vontade de Deus” (cf. 14,36p; “do Pai”, cf. Mt 6,10b; 7,21; 12,50), fará parte desta nova família de Jesus (vv. 34-35). Quanto à Maria, ninguém como ela cumpriu a vontade do Pai e foi agraciada com o Espírito (cf. Lc 1,35-38).

O site do CNBB resume: Somos convidados pelo evangelho de hoje a descobrir a verdadeira família à qual nós pertencemos: a família dos filhos e filhas de Deus, que procura conhecer e pôr em prática a vontade do Pai e participar do seu projeto de construção do mundo novo, da civilização do amor, sinal do Reino definitivo. Participar dessa verdadeira família não significa negar a nossa família terrena, nem os nossos relacionamentos sociais e afetivos, mas subordinar essas duas realidades à realidade maior, que é a família dos filhos e filhas de Deus, fazendo, assim, com que haja uma verdadeira hierarquia de valores na nossa vida, que subordina o temporal ao eterno.

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