03 de novembro de 2017 – Sexta-feira, 30ª semana

Leitura: Rm 9,1-5

No cap. 9 começa um tema novo, o destino de Israel (Rm 9-11). À primeira vista, esse bloco se insere sem transição: depois de um final entusiasta e vibrante (8,38, cf. leitura de ontem), vem um juramento solene (v. 1). A quem Paulo se dirige, aos judeu-cristãos ou aos cristãos que vêm do paganismo (gregos, romanos …)?

A Bíblia do Peregrino (p. 2723) comenta:

É verdade que não há transição explícita; mas o tema de Israel tem preocupado o autor desde o começo, em seu repetido binômio “judeus e gregos”, na ampla seção dedicada aos judeus (Rm 2-3). Seria universal uma salvação por Jesus Cristo que excluísse o povo judeu? Aqui surge o enigma: os judeus, depois de esperar o Messias durante séculos, não acolheram à sua chegada. Podemos pensar que a presente seção pretende resolver o problema. Podemos tomá-la como ilustração da doutrina e ao mesmo tempo resposta a objeções contra ela. Também podemos pensar que Paulo interpela os cristãos de Roma convertidos do paganismo. Isso implica uma resposta sobre os destinatários: O fato de Paulo se dirigir polemicamente a judeus fechados ao evangelho e começar captando-lhes a benevolência (9,1-5), não explica a colocação, nem muitos dados do texto. Mais provável é pensar que Paulo se dirige aos cristãos de Roma, em sua maioria procedentes do paganismo, para corrigir sua atitude frente aos judeus que recusam o evangelho.

Segundo essa opinião, Paulo descobre naqueles cristãos o perigo da autossuficiência, a preocupação de justificar-se num julgamento comparativo com Israel, segundo o esquema de Ez 16,52 em seu contexto. A igreja não pode nem por comparação justificar-se frente à graça de Deus. Ela não pode romper com a história de Israel, que é sua história. A misericórdia de Deus é grande arco que abrange a história.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1378) discorda a respeito dos destinatários:

Paulo levanta a grande questão que ocupará as próximas páginas (caps. 9-11). Como é que os seus irmãos, privilegiados por Deus, agora ficam fora da salvação? O Apóstolo busca argumentos da própria Bíblia Hebraica, e discute, em tom familiar, para convencer seus parentes de sangue. Após o desabafo pessoal, elenca as sete dádivas que Deus concedeu a Israel (vv. 4-5) e, acima de tudo, ao Cristo (Ef 2,12-13).

Não estou mentindo, mas, em Cristo, digo a verdade, apoiado no testemunho do Espírito Santo e da minha consciência (v. 1).

Começa com um testemunho solene. A fórmula poderia ser interpretada como juramento: “juro por Cristo” que “digo a verdade”, acima de nacionalismo ou partidarismo. Ao testemunho de Paulo (“da minha consciência”) se acrescenta o “do Espírito”: duas testemunhas, como pede a lei judaica (Dt 19,15). Essa introdução vale para os três capitulos; o final terá tom de hino (11,33-36; leitura de segunda-feira próxima).

Tenho no coração uma grande tristeza e uma dor contínua, a ponto de desejar ser eu mesmo segregado por Cristo em favor de meus irmãos, os de minha raça (vv. 2-3).

Paulo fala dos seus sentimentos pessoais (cf. sua dor em 2Cor 12,7). É apóstolo dos pagãos (Gl 2,7), mas é também irmão dos judeus; se fala como cristão, em suas palavras vibra um afeto intenso de família. Não existe vontade de desforra (cf. At 28,19), embora o tenham perseguido; há sentimento de pena e um gesto de solidariedade.

“Desejar ser eu mesmo segregado por Cristo em favor de meus irmãos”; como o sentimento de Moisés no monte quando tratava com Deus depois do pecado do bezerro do ouro: “Cancela-me do teu registro” (Ex 32,32), tal é o alcance do ser “mesmo segregado por Cristo”, a exclusão da pertença ao Messias; lit. anátema, ser objeto de maldição (cf. Js 6,17; Lv 27,28). Esta palavra aparecerá como fórmula final em muitos dogmas da igreja: “Quem não acredita em …, anátema sit (seja excluído, maldito)”.

Eles são israelitas. A eles pertencem a filiação adotiva, a glória, as alianças, as leis, o culto, as promessas e também os patriarcas. Deles é que descende, quanto à sua humanidade, Cristo, o qual está acima de todos, Deus bendito para sempre! Amém! (vv. 4-5).

Paulo alista sete privilégios dos judeus: são “israelitas”, é nome genérico, tradicional, que se prende ao neto de Abraão, Jacó, que recebeu o apelido Israel (Gn 32,29; 35,10); deste privilégio decorrem os outros: a adoção filial deste povo como “filho de Deus” (Ex 4,22s; cf. Dt 7,6); eles possuem a “glória”, ou seja, a presença luminosa de Deus na nuvem (Ex 24,16s; 40,34s; cf. Mc 9,7p; At 1,9), que habita no meio do povo (Ex 25,8; Dt 4,7; cf. Jo 1,14); “as alianças”, no plural, talvez englobando as patriarcais e a de Moisés (com Noé em Gn 9; com Abraão em Gn 15 e 17; com Jacó-Israel em Gn 32,29; com Moisés em Ex 24,7s); o “culto” prestado ao único Deus verdadeiro (Ex e Lv); as “leis”, expressão da sua vontade; as “promessas”, patriarcais e davídicas; o último e máximo privilégio é que da sua estirpe “descende, quanto a sua humanidade (lit. carne), o Cristo (Messias)” (cf. 2Sm 7; Rm 1,3). O filho dá brilho a toda a árvore genealógica (cf. Lc 3,23-38).

“Cristo, o qual está acima de todos, Deus bendito para sempre”; Paulo raramente chama Jesus de “Deus” (cf. Tt 2,13), mas lhe dá muitas vezes o título “Senhor” (kýrios) que é nada menos que o título atribuído a Javé Deus no AT (Rm 10,9.13; Fl 2,10s; etc.), considera-o preexistente (cf. Fl 2,5; 1Cor 1,24.30; 2Cor 4,4; 8,9 etc.) e o associa na fórmula trinitária (2Cor 13,13).

Evangelho: Lc 14,1-6

No cap. 14, Lc junta quatro cenas que têm a ver com banquete, ou convites à refeição, numa espécie de simpósio ao estilo grego (cf. 5,29a; no AT, cf. as instruções sobre banquetes e convidados em Eclo 31,21-32,13). Como na multiplicação dos pães (9,10-17p), nesse banquete se prefigura a Eucaristia e se anuncia o banquete celeste.

A primeira cena é uma cura de um hidrópico que lembra a cura do homem com a mão atrofiada na sinagoga num dia de sábado (6,6-11; Lc copiou de Mc 3,1-6) e também da cura da mulher encurvada (13,10-17, evangelho de segunda-feira passada).

Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de um dos chefes dos fariseus. E eles o observavam. Diante de Jesus, havia um hidrópico (vv. 1-2).

Em Lc, Jesus é convidado com frequência por fariseus (cf. 7,36; 11,37), desta vez por um dos chefes deles (cf. 19,2: refeição com o chefe dos publicanos, Zaqueu). Imaginamos que Jesus, conforme seu costume, leu e comentou numa sinagoga e, ao terminar, um dos chefes dos fariseus o convidou para à ceia do sábado. Como em 6,7, os fariseus o vigiam e observam (cf. Sl 37,32), se vai curar no sábado. Mas aqui o ambiente e a doença são diferentes de 6,6-11; a cura do hidrópico devia ser uma tradição independente de Mc, provavelmente da fonte Q (Mt 12,9-14 juntou as duas versões, Mc e Q).

Tomando a palavra, Jesus falou aos mestres da Lei e aos fariseus: “A Lei permite curar em dia de sábado, ou não?” (v. 3).

Sem muitas palavras sobre os detalhes e possibilidades casuísticas, Jesus dirige uma pergunta direta “aos mestres da Lei e aos fariseus”. Em 6,8s, Jesus chamou primeiro o homem deficiente “para o meio de todos” e perguntou depois.

Mas eles ficaram em silêncio. Então Jesus tomou o homem pela mão, curou-o e despediu-o (v. 4).

O silêncio dos fariseus diz muita coisa. Não se desenvolve um diálogo, porque os fariseus já se decidiram ser contra Jesus (cf. 6,11; 11,53s) e Jesus não está interessado em debates jurídicos (em Lc). Ele responde à sua própria pergunta primeiramente pela ação, pelo fato da cura. Para o doente, o caso está resolvido, pode ir.

Depois lhes disse: “Se algum de vós tem um filho ou um boi que caiu num poço, não o tira logo, mesmo em dia de sábado?” E eles não foram capazes de responder a isso (vv. 5-6).

Jesus dá uma segunda resposta que pode ter origem nos debates sobre o sábado na comunidade primitiva dos judeu-cristãos. Lc não é tal familiarizado com os costumes da Palestina nem com a legislação judaica. Em Mt 12,11, o argumento funciona melhor (“buraco” em vez de poço; cf. Ex 21,33s).

Além do seu poder próprio que se mostra na cura, Jesus revela a vontade benevolente de Deus que está na origem da Lei e a antecede (cf. os argumentos de Paulo em Gl e Rm), ou seja: amar ao próximo e ajudar ao necessitado já é a essência de lei (10,25-37; cf. Mt 22,34-40p) e não suporta limites. Se a exceção da lei de sábado vale para um filho e até para um boi (Dt 22,4; cf. Sl 36,10; Lc 13,15), porque limitá-la para ajudar o próximo e curar o necessitado? A pergunta de Jesus não proíbe, mas permite o repouso sabático. Para ele, o descanso no sábado (Gn 2,1-4; Ex 20,8-11 etc.) significa a revelação da benevolência de Deus para com suas criaturas, a paz e a salvação (cura).

Não há espaço para uma conclusão ainda positiva da plateia como em 13,17. Os adversários não são capazes de responder. Jesus é soberano. A frequência dos conflitos de sábados chama atenção, porque Lc costuma evitar repetições, mas os menciona em 6,7-11; 13,10-17; 14,1-6. Obviamente, os primeiros cristãos tinham uma dificuldade com este preceito e refletiram bastante qual seria a interpretação correta e cristã entre os dois extremos de Mt 5,17-19 (Cristo não veio para abolir nenhuma vírgula da lei) e Rm 10,4 (Cristo e o fim da lei).

O site da CNBB comenta: O Evangelho de hoje nos mostra claramente que a vida sempre se impõe diante da morte, a verdade sempre se impõe diante da mentira, da falsidade e do erro. A Lei de Deus foi feita para a vida e não para a morte e a interpretação verdadeira da Lei de Deus deve sempre contribuir para que a vida de todos seja melhor. Jesus denuncia os erros que existem na interpretação da Lei, as interpretações falsas, ou seja, que não apresentam nenhuma legitimidade por serem contraditórias ao espírito da Lei de Deus, por escravizarem quando deveriam libertar, por promoverem a morte quando deveriam promover a vida, e as interpretações mentirosas. Jesus denuncia aquelas interpretações que não estão de acordo com a Lei, mas sim com os interesses de quem as interpretou.

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