04 de dezembro de 2016 – Advento, 2º Domingo Ano A

 

Leitura: Is 11,1-10

Ouvimos hoje um grande poema messiânico, paralelo e complementar de 9,1-6 (1ª leitura da noite de Natal), com o qual compartilha vários temas: o “rebento” (cf. 4,2) sucessor, a justiça como fundamento, a paz universal, dois nomes/títulos.

O poema de Is 11 define determinados traços essenciais do Messias vindouro: ele é do trono davídico (v.1), será cheio de espírito profético (v.2), fará reinar entre os homens a justiça, reflexo terreno da santidade de Javé (vv. 3s; cf. 1,26; 5,16) e restabelecerá uma paz paradisíaca (vv. 6-8), fruto do conhecimento de Javé.

A fecundidade da terra produz uma planta (“rebento”, v. 1) e se conjuga com o dinamismo do vento (“espírito”, v. 2) para formar um líder ideal que pela prática eficaz da “justiça” realiza o sonho da paz (vv. 3b-5) e o estende ao reino animal (vv. 6-8) reproduzindo o paraíso. Os animais se reconciliam entre si e com o ser humano reconciliado plenamente com Deus. O cenário é um “monte” (v. 9; 2,2-5), consagrado pela presença de Deus.

José Luiz Gonzaga do Prado (na revista Vida Pastoral nov./dez. 2016) comenta: Isaías era familiar ao palácio de Acaz e conhecia bem seu filho Ezequias, em quem depositava grande confiança. Ezequias foi realmente um dos melhores reis de Judá, mas o poema de Isaías que expressa sua confiança nele vai muito além.

Nascerá uma haste do tronco de Jessé e, a partir da raiz, surgirá o rebento de uma flor (v. 1).

Nos vv. anteriores, Isaías havia profetizado que uma árvore frondosa seria cortada, na linguagem oriental quer dizer a corte real (11,33s; cf. Ez 17; Dn 4), ou seja, os governantes em Jerusalém, cuja soberba Isaías criticava desde 2,6ss. Mas sua destruição pelos inimigos assírios (cerca se 711 a.C.) não será total.

Jessé era o pai de Davi (1Sm 16, 1s, cf. Rt 4,22) e antepassado de todos os reis de Judá e do Messias (cf. Mt1,6-16). As origens não são significantes, o tronco está cortado; mas uma seiva perene, a promessa divina, vivifica essa cepa. Alguns pensam que a indicação de Mt 2,23, Jesus “será chamado nazareno”, alude ao termo hebraico nézer – rebento (cf. 4,2; Jr 23,5; 31,15; Zc 3,8; 6,12).

José Luiz Gonzaga do Prado (na revista Vida Pastoral nov./dez. 2016) comenta: A dinastia de Davi, o filho de Jessé, estava enfraquecida, quase liquidada diante do poderio crescente da Assíria. Falando em ramo familiar, o de Jessé estava reduzido a quase nada, a um toco cortado quase rente ao chão. Como de uma velha parreira decepada, do toco ou até das raízes, ainda pode surgir um broto novo, assim também surge aqui o broto novo do ramo familiar de Jessé.

Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e discernimento, espírito de conselho e fortaleza, espírito de ciência e temor de Deus; no temor do Senhor encontra ele seu prazer (vv. 2-3a).

O rebento se ergue como centro dos quatros pontos cardeais ou quatro ventos (quatro vezes “espírito”; “sopro, vento, espírito” traduzem a mesma palavra hebraica ruah). Estranhamente os quatros convergem e “pousam” sobre o menino. Resumem o “alento do Senhor” em plenitude (cf. Is 61,1; Lc 4,18). O “espírito de Yhwh (Javé ou Iahweh, traduzido por Senhor)”, ou o “santo espírito de Javé” (42,1; 61,1s; 63,10-13; Sl 51,13; Sb 1,5; 9,17), seu “sopro”, atua através de toda a história bíblica.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1377) comenta: Ainda antes da criação, ele repousa sobre as águas do caos (Gn 1,2) e dá a vida a todos os seres (Sl 104,29-39; 33,6; Gn 2,7, cf. 37,5-6.9-10). É ele que dá a habilidade aos artífices (Ex 31,3; 35,31), o discernimento aos juízes (Nm 11,17), a sabedoria a José (Gn 41,38); ele suscita os juízes (Jz 3,10; 6,34; 11,29) e os reis Saul e Davi (1Sm 11,6; 16,13). Enfim e acima de tudo, ele inspira os profetas (Nm 11,17. 25-26; 24,2; 1Sm 10,6.10; 19,20; 2Sm 23,2; 2Rs 2,9; Mq 3,8; Is 48,16; 61,1; Zc 7,12; 2Cr 15,1; 20,14; 24,20), enquanto os falsos profetas seguem seu próprio espírito (Ez 13,3, cf. ainda Dn 4,5.15; 5,11-12.14).

O texto de Is 11 quer ensinar que esse espírito dos profetas será dado ao rei prometido, ao messias (cf. 42,1; 61,1). Jl 3,1-2 anuncia para o tempo messiânico a sua efusão universal (citado em At 2,16 -18). Como a doutrina da sabedoria (cf. Pr8,22-31; Sb 7,22-8,1), a doutrina do espírito encontrará sua expressão definitiva no Novo Testamento (cf. Mc 1,10p; Mt 10,20; Lc4,18s; 10,21; Jo 1,32-34; 3,4-8; 4 24; 7,39; 14,16s.26; 15,26; 16,7-10; 19,30; 20,22; At 1,8; 2; Rm 5,5; 8,1-27, etc.).

O espírito profético profere ao Messias as virtudes eminentes de seus grandes antepassados: “sabedoria e discernimento (inteligência)” de Salomão, “conselho e fortaleza (prudência e bravura)” de Davi, “ciência e temor de Deus (conhecimento e temor de Javé)” dos patriarcas e dos profetas, Moisés, Jacó e Abraão (cf.9,5).

“Sensatez (sabedoria) e inteligência (discernimento)” é uma dupla sapiencial frequente: significa a percepção intelectual, a habilidade para agir. “conselho e fortaleza (força e prudência)” recolhem dois títulos de 9,5 como virtudes de governo e militares. “Conhecimento (ciência) e respeito (temor) do Senhor” sintetizam o sentido religioso, feito de tratamento confiante e reverência.

José Luiz Gonzaga do Prado (na revista Vida Pastoral nov./dez. 2016) comenta: O próprio texto vai explicar o que é “temor de Javé”: é não julgar por interesses escusos (v. 3), mas fazer justiça aos fracos e castigar o opressor. “Conhecer Javé”, Jeremias explica em 22,15-16. É praticar o direito e a justiça, fazer justiça ao humilde, ao indigente… Inspirado no temor de Javé, ele vai usar de sua autoridade para fazer justiça ao fraco e reprimir o opressor. Assim, o resultado será que, não só ele, mas o país inteiro estará inundado do “conhecimento de Javé”, todos sabendo respeitar os direitos dos fracos.

O hebraico acrescenta um verso (3a) que repete e perturba a composição, mas deu motivo à teoria dos “sete dons do Espírito” (as traduções antigas em grego e latim acrescentam “piedade” em vez de repetir “temor” em v. 3a).

Ele não julgará pelas aparências que vê nem decidirá somente por ouvir dizer; mas trará justiça para os humildes e uma ordem justa para os homens pacíficos; fustigará a terra com a força da sua palavra e destruirá o mau com o sopro dos lábios. Cingirá a cintura com a correia da justiça e as costas com a faixa da fidelidade (vv. 3b-5).

Da plenitude dos carismas brota o governo justo, exercido principalmente no ato de julgar (Sl 72; 101; Jr 22,15s), não pelas aparências (cf. 1Sm 16,7). Julgar inclui eliminar aqueles que, promovendo a injustiça, tornam a paz impossível. A palavra do juiz é vara que executa a sentença. Vencerá não pela força bruta, mas pela Palavra e o Espírito, pela justiça e verdade (verdade=fidelidade, cf. Sl 45,4; cf. Jo 18,36s).

O lobo e o cordeiro viverão juntos e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; bezerro e o leão comerão juntos e até mesmo uma criança poderá tangê-los. A vaca e o urso pastarão lado a lado, enquanto suas crias descansam juntas; o leão comerá palha como o boi; a criança de peito vai brincarem cima do buraco da cobra venenosa; e o menino desmamado não temerá pôr a mão na toca da serpente (vv. 6-8).

A justiça traz paz não só para a sociedade, mas também se estende à natureza, até para o âmbito animal (como na linguagem popular, os animais podem simbolizar pessoas também; cf. Gn 49,9: leão; Sl 22,13s; 17.22: cães, búfalos; Lc 13,31s: raposa; Jo 1,29 e Ap 5; cordeiro; etc.). O poeta forma duplas de animais selvagem e doméstico; a cada três duplas aparece o homem na figura de menino. O homem, até o mais fraco, torna a submeter e domesticar os animais (cf. Gn 1,26.28; 2,19s). Resta um animal que se diria inconciliável. Pois bem, também fazem as pazes a serpente e o homem, ou mais exatamente, a descendência da mulher que é a criança (cf. Gn 3,15). E não se trata de vitória difícil, mas de brincadeira infantil.

O pecado dos primeiros seres humanos contra Deus (Gn 3) havia quebrado a harmonia entre o homem e a natureza (Gn 3,17-19), entre um homem e outro homem (Gn 4). Os profetas anunciam guerras e invasões como castigo das infidelidades de Israel. Ao invés, trazendo o perdão dos pecados, a reconciliação com Deus e o reino da justiça, a era messiânica estabelece a paz que é sua consequência: fertilidade do solo (Am 9,13-14; Os 2,19.23-24); desarmamento geral (Is 2,4; Mq 4,3-4; 5,9-10; Zc 9,10); paz perpétua (Is 9,6; 32,17; 60,17-18; Sf 3,13; Zc 3,10; Jl 4,17). A Nova Aliança é uma aliança de paz (Ez 34,25; 37,26). O reino messiânico é um reino de paz (Zc 9,8-10; Sl 72,3-7). Esta paz estende-se ao reino animal, até a serpente, responsável pela primeira falta: a era messiânica é descrita aqui simbolicamente como um retorno à paz paradisíaca (cf. Jesus no meio das feras após vencer satanás em Mc 1,13b).

José Luiz Gonzaga do Prado (na revista Vida Pastoral nov./dez. 2016) apresenta uma antiga fábula como contraste a Is 11: O lobo e o cordeiro foram ao mesmo córrego beber água. Vendo o cordeiro, o lobo diz: “Vou te matar porque estás sujando a minha água!”. O cordeiro responde: “Não pode ser, eu estou mais embaixo, a água está correndo daí para cá”. O lobo diz: “Então eu vou te devorar porque na semana passada teu pai me insultou!”. “Não pode ser”, responde o cordeiro, “faz dois meses que meu pai morreu.” “Ah! Se não foi teu pai, foi teu irmão, teu tio…” E avançou sobre o cordeiro. O fabulista conclui: “O mais forte sempre acha uma razão para devorar o mais fraco”. Não será esse o princípio que governa o nosso mundo? … Inspirado no temor de Javé, o novo rei vai acabar com a estória do lobo e do cordeiro, quando o mais forte sempre tem razão e sempre encontra um motivo para devorar o mais fraco. Então, “o lobo será hóspede do cordeiro, o leopardo vai se deitar ao lado do cabrito…”. As pessoas deixam de ser bichos umas para as outras.

Não haverá danos nem mortes por todo o meu santo monte: a terra estará tão repleta do saber do Senhor quanto as águas que cobrem o mar (v. 9).

Destruídos os perversos e amansadas as feras, instaura-se um paraíso, cujo centro é o “santo monte” do Senhor (cf. 2,2s; 25,6 etc.). No primeiro, o homem (“Adão”) se perdeu por ambicionar a “ciência de Deus” (cf. Gn 2,17: o conhecimento do bem e do mal); neste segundo, ela é concedido ao homem como “conhecimento (saber) do Senhor”, conhecer convivendo. Isso é plenitude de alegria e paz, só comparável à imensa plenitude do mar.

Naquele dia, a raiz de Jessé se erguerá como um sinal entre os povos; hão de buscá-la as nações, e gloriosa será a sua morada (v. 10).

Um autor posterior, no estilo de discípulo (Segundo Isaías), acrescentou um quadro de restauração nacional em vv. 10-16. Por isso, da imagem vegetal salta desajeitadamente a militar do estandarte (“sinal”, 5,26). Em 2,2-5 os pagãos buscavam o Senhor; aqui buscam o sucessor de Davi. “Morada” pode ser: para o povo, a terra prometida (Dt 12,9; 1Rs 8,56); para o Senhor, o templo (Sl 132,8), genericamente, a situação de paz e descanso (Is 28,12). Aqui pode se situar a corte e a capital de Jerusalém e o reino de Judá, mas o profeta foi além em seu poema que ficou como esperança messiânica, esperança de um salvador definitivo para o porvir.

2ª Leitura: Rm 15,4-9

Entendemos melhor se olharmos para a situação e o contexto geral da carta aos Romanos que foi escrito por Paulo no inverno de 57/58, quando estava outra vez em Corinto. Os primeiros colaboradores de Paulo em Corinto, Áquila e Priscila, haviam sido expulsos de Roma pelo imperador Claudio em 49 d.C. como os outros judeus (At 18,2). Agora, os judeu-cristãos, autorizados a voltar, retornavam para Roma e para as suas comunidades (cf. 16,3-5). Seriam bem recebidos pelos irmãos que não eram judeus?

Tudo o que outrora foi escrito, foi escrito para nossa instrução, para que, pela nossa constância e pelo conforto espiritual das Escrituras, tenhamos firme esperança (v. 4).

Aqui, já na parte parenética ou nas recomendações finais, Paulo diz que é tempo de esperança, esperança fundamentada na palavra de Deus, nas Escrituras. Nelas encontramos encorajamento e firmeza, palavras frequentemente traduzidas por “paciência” e “consolação”.

Confortar ou consolar era oficio do arauto ou “evangelista” (Is 40,1); a Escritura, como palavra inspirada, pode consolar eficazmente (cf. 1Mc 12,9: “os livros santos”).

O Deus que dá constância e conforto vos dê a graça da harmonia e concórdia, uns com os outros, como ensina Cristo Jesus.  Assim, tendo como que um só coração e a uma só voz, glorificareis o Deus e Pai do Senhor nosso, Jesus Cristo (vv. 5-6).

Parecem opostos e são complementares: paciência (constância no sofrimento) e consolo, ou perseverança e consolação (cf. Is 40,1).

“Harmonia e concórdia, uns com os outros”. Paulo não pede aos seus leitores que renunciem ás suas divergências de opinião, mas repete a exortação do v. 2 (cf. Rm 12,7: ”de agradar seu próximo). Outras traduções: “(vos conceda) viver em bom entendimento”, “estar de acordo entre vós”.

“Como ensina Cristo Jesus (lit. segundo Jesus Cristo)”. “Tendo como que um só coração e a uma só voz (lit. com uma só boca), glorificareis…”; cf. o prefácio na nossa liturgia (antes do canto de Santo).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1384) comenta os vv. 1-6: O critério da opção pelos mais fracos é reafirmado, na procura de mais amar do que ser amado. O exemplo para a vida cristã é o próprio Jesus, que veio para servir e dar vida. Ter entre nós os mesmos sentimentos de Jesus Cristo é o ideal, para podermos glorificar a Deus unidos num só coração e numa só voz (Fl 2,2-4).

José Luiz Gonzaga do Prado (na revista Vida Pastoral nov./dez. 2016): O Deus do encorajamento e da firmeza é que deve levar os cristãos a ter um mesmo pensar, seguindo o Cristo Jesus. Só assim se podem superar as dificuldades de relacionamento entre os cristãos judeus que voltam e os cristãos gentios que ficaram. Só assim poderão participar unidos numa mesma celebração para louvar a Deus.

Por isso, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo vos acolheu, para a glória de Deus. Pois eu digo: Cristo tornou-se servo dos que praticam a circuncisão, para honrar a veracidade de Deus, confirmando as promessas feitas aos pais. Quanto aos pagãos, eles glorificam a Deus, em razão da sua misericórdia, como está escrito: “Por isso, eu vos glorificarei entre os pagãos e cantarei louvores ao vosso nome” (vv. 7-9)

“Acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo vos acolheu (variante bem atestado: nos) para a glória de Deus”. A glória é a meta final da obra do Cristo, como da vida cristã, pessoal e comunitária (cf. v. 6). José Luiz Gonzaga do Prado (na revista Vida Pastoral nov./dez. 2016): A prática é esta mesma, saberem acolher uns aos outros, sem discriminação e sem preconceitos. Assim é que o Cristo nos acolhe. Ele se pôs a serviço dos judeus para realizar as esperanças consubstanciadas nas promessas contidas em suas Escrituras Sagradas. Nem por isso os não judeus, “gentios” ou “nações”, são esquecidos, pois as mesmas Escrituras os convidam também a louvar o Senhor.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2198) comenta: Os vv. 8 e 12 explicitam o v. 7: é por pura misericórdia (v. 9) que Cristo se fez acolhedor para com os pagãos que éreis, vós, cristãos de Roma. Em vossas relações mútuas, imitai, portanto, a atitude de Cristo… A mesma palavra (ethné), traduzida aqui por nações pagãs, é traduzida por nações nos vv. seguintes. Com efeito, esta palavra significa ao mesmo tempo pagãos, por oposição aos judeus adoradores do verdadeiro Deus, e nações, por oposição ao povo judaico.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2143) comenta: Acolhendo os gentios, Cristo buscou a glória de Deus, mas limitando-se durante a sua vida mortal à evangelização de Israel (cf. Mt 15,24), testemunhou sobretudo a fidelidade de Deus às suas promessas, deixando, por assim dizer, os gentios convertidos serem testemunhas vivas da misericórdia divina. Que eles, por sua vez, sejam misericordiosos para com seus irmãos (cf. 12,1…).

Os vv. 7-12 (nossa liturgia omite os vv. 10-12) parecem uma recapitulação ou conclusão dos caps. 9-11 sobre o destino de Israel e dos pagãos. A chave do sentido está na distinção entre fidelidade e misericórdia. Com toda probabilidade, as duas palavras em grego, alétheia (verdade, fidelidade, aqui traduzido por “veracidade”) e éleos “misericórdia”, correspondem ao binômio hebraico hésed w’émet que Yhwh (Javé, em grego kyrios, Senhor) pronuncia na sua auto-apresentação em Ex 34,6: “cheio de amor (misericórdia) e fidelidade (veracidade”); repetida como fórmula litúrgica e em muitos contextos.

A Bíblia do Peregrino (p. 2732s) comenta: Paulo interpreta a primeira como fidelidade ou lealdade ao compromisso contraído por própria iniciativa; em outros termos, fidelidade às promessas feitas aos patriarcas. Deus deve a si mesmo essa fidelidade à palavra dada. A segunda iniciativa é pura, ato livre de misericórdia em favor dos pagãos, que não eram beneficiários de uma promessa. Logicamente, prometer é ato de misericórdia, cumpri-lo é ato de fidelidade. A iniciativa de Deus é única, bifurca-se na realização histórica e volta a unir-se na realidade da igreja.

Em seguida, Paulo comenta a vocação e inclusão dos pagãos com quatro citações da Bíblia Hebraica: a primeira foi Ex 34,6 (amor/misericórdia) e fidelidade /veracidade); a segunda em v. 9b é do Sl 18,50 (= 2Sm 22,50), posta na boca de Davi, é um grande salmo de ação de graças. As outras duas em vv. 10-12 (Dt 32,43; Sl 117,1) foram omitidas pela nossa liturgia.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1384) resume: Prossegue a recomendação de acolher as pessoas diferentes, a exemplo de Jesus, que atuou junto ao seu povo judeu e acolher os gentios. Isso demonstra a fidelidade de Deus para com os judeus e sua misericórdia para com as demais nações. Fidelidade, porque ele mantém a promessa aos patriarcas (v. 8). Misericórdia, porque ele inclui todos os povos no seu projeto de justiça (v. 9).

 

Evangelho: Mt 3,1-12

Neste e noutro domingo, apresenta-se a figura que nos prepara para a vinda de Cristo. Não é Papai Noël que motiva para comprar presentes, mas João Batista que anuncia a vinda do Senhor. Os dois formam um contraste: de um lado, o consumismo pelo garoto de propaganda barbudo e gordo, e do outro lado, o grito à conversão pelo profeta austero.

Vale lembrar a origem do Papai Noël: o bispo São Nicolau de Mira, que viveu no séc. IV e participou do Concílio de Niceia em 325, era um pastor muito caridoso e generoso na Ásia Menor (atual Turquia). Depois da sua morte, o povo começou dar presente às crianças no dia dele (06 de dezembro); ainda hoje, na Alemanha e na Áustria, um homem vestido de bispo visita as crianças e traz presentes que os pais preparam sem os filhos saberem. Em outros países, a influência do protestantismo eliminou a veneração aos santos, assim o bispo histórico virou uma figura mitológica de conta de fadas (com gorro, em vez da mitra) que traz presentes de Natal. Na Inglaterra, é “Santa Claus”, na França, “Papai Noël”, e nos EUA, começou sua carreira com a propaganda da Coca-Cola (com a mesma cor vermelha).

João Batista, porém, tem um aspecto de profeta e asceta (como Elias, 2Rs 1,8) e exige do povo o arrependimento (Jr 8,6), a confissão pública (Ne 9) e a conversão como fruto (Sl 50,23; 51,15). O batismo como purificação é sinal desta mudança de mentalidade.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1188) comenta o texto de hoje: A pregação de João Batista prepara a ação de Jesus, convocando a uma mudança radical de vida. Suas palavras incomodam principalmente os fariseus e saduceus, grupos dominantes tanto no plano religioso como político. Com Jesus não será diferente, pois ele vai levar a níveis ainda mais profundo as exigências para se viver de acordo com os princípios do Reino.

O evangelista Mt copiou de fontes mais antigas: os vv. 1.3-6.11-12 do evangelista Mc e os vv. 7-12 de outra fonte comum com Lc (chamada Q; ou: Mt e Lc usam uma segunda edição ampliada de Mc), com pequenas modificações (em Mt, João prega a “fariseus e saduceus” em tom profético, embora sem explicitar pecados, e Lc “às multidões”). Por conta própria, Mt acrescentou os v. 2.

Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judéia: (v. 1).

Enquanto Lc coloca a pregação de João Batista dentro do tempo de governos da época (César, Pilatos, Caifás …) para chamar atenção dos seu leitores gregos e romanos, Mt usa apenas uma fórmula temporal genérica, “naqueles dias”, que Mc 1,9 usou para a chegada de Jesus. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta “Naqueles dias”: No grego, esta expressão introduz habitualmente, como aqui, um novo episódio sem ligação cronológica com o que precede. – A narração da vida pública de Jesus é introduzida, bem como em Mc e Lc, por um tríptico: pregação de João (3,1-12), batismo de Jesus (3,13-17), tentação de Jesus (4,1-11).

Como Mc, Mt usa logo o título próprio “o Batista” (um termo novo em grego). O gesto de batizar (cf. v. 6) tornou-se característica deste profeta de modo que se tornasse quase nome próprio (como acontece depois com o título Cristo para Jesus). João Batista é a ligação entre os profetas e o Cristo Jesus: o que os profetas viram e entreviram como futuro, João o mostra presente.

Mt apresenta o Batista logo como profeta “pregando” (ou proclamando), como depois Jesus e a Igreja.  A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta: Em grego “Keryssein”, donde deriva “kerigma” (querigma). Do uso profano (proclamação do arauto em nome do rei: cf. Gn 41,43), o verbo passou para domínio religioso (proclamação em nome de Deus: cf. Jl 2,1). Usando aqui para a pregação de João Batista, ainda o será para o de Jesus (4,17), dos seus discípulos (10,7,27), da Igreja primitiva (At 8,5). Em Mt (exceto em 11,1), o conteúdo da proclamação é brevemente lembrado (3,2-3; 4,17; 10,7) ou condensado nas expressões “o Evangelho do Reino” (4,23; 9,35; 24,14) ou “o Evangelho” (26,13); note-se que os verbos “proclamar” e “evangelizar” (= anunciar uma boa nova) podiam ser mais ou menos sinônimos no grego da Septuaginta (cf. 2Sm 1,20; Is 40,9).

“Judéia” é uma expressão peculiar de Mt, que só aparece aqui e designa uma região montanhosa e deserta que se estende entre a cadeia central da Palestina e a depressão do Jordão e do mar Morto. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta: Região mal definida, situada entre a cadeia de montanhas que corre de Jerusalém a Hebron, e o Mar Morto ou o Jordão inferior (cf. 3,6, onde a atividade de João é localizada de modo mais preciso). Conforme mostra o v. 3, Mt se interessa menos pela exatidão topográfica do que pelo significado bíblico do “deserto” (cf. 4,1; 11,7; 14,13; 24,26). Nesta região, então pouco povoada, mas não desértica no sentido moderno da palavra, é que foram descobertos, a partir de 1947, os vestígios das instalações e dos escritos chamados “do mar Morto”. Cf. já 1Mc 2,29: “Muitos homens que buscavam a justiça e o direito desceram ao deserto para aí se estabelecerem”.

”Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo” (v. 2).

Mt pegou o resumo da pregação da Jesus em Mc 1,15 e o colocou também na boca do Batista para mostrar a unidade do seu conteúdo com Jesus (4,17) que será anunciado também pela Igreja (10,7): chamar à conversão e orientar sua vida pela proximidade do reino.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta “Convertei-vos”: Este verbo e o substantivo correspondente aparecem, em Mt, em contextos que lhe conferem grande importância (3,2; 4,17; 11,20-21; 12,41). De preferência ao sentido inculcado pela etimologia grega (mudança de mentalidade), é preciso reconhecer nele o tema, capital no AT, sobretudo desde de Jeremias, da mudança de orientação, da volta incondicional ao Deus da aliança. Mt equipara as pregações do Batista de Jesus (3,2; 4,17), embora distinga seus ministérios quanto a finalidade do batismo (3,11); a conversão comprovada por atos (3,8 nota) ou recusa dos judeus de se converterem (11,20.21; cf. Lc 5,32; 15,7).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1841) traduz ”Arrependei-vos” e comenta: A “metanoia”, etim., mudança de sentimentos designa a renúncia ao pecado, o “arrependimento”. Esse pesar, que se refere ao passado, vem normalmente acompanhado de uma “conversão” (verbo grego “epistrephein”), pela qual o homem se volta para Deus e empreende uma vida nova. Esses dois aspectos complementares de um mesmo impulso da alma não se distinguem sempre no vocabulário (cf. At 2,38; 3,19). Arrependimento e conversão constituem a condição necessária para receber a salvação trazida pelo Reino de Deus. O apelo do arrependimento, proclamado por João Batista (cf. ainda At 13,24; 19,4), foi retomado por Jesus (4,17p; Lc 5,32; 13,3.5), pelos seus discípulos (Mc 6,12; Lc 24,47) e por Paulo (At 20,21; 26,20).

José Luiz Gonzaga do Prado (na revista Vida Pastoral nov./dez. 2016) comenta: A palavra grega “metanoia”, que, nos três primeiros Evangelhos, resume a pregação de João e também a de Jesus, é fácil de entender. “Meta”, o mesmo prefixo grego que encontramos em “metamorfose”, indica mudança, significando aqui “mudança de forma”. “Noia” nós conhecemos de “paranoia” e refere-se à cabeça. Metanoia é, então, “mudança de cabeça”, mudança de mentalidade, de maneira de pensar e agir. Assim, a nossa preparação para a vinda do Senhor – não apenas para a celebração do nascimento de Jesus – vai remar contra a corrente do capitalismo, que governa o nosso mundo. E essa corrente não é um filete de água, mas um caudal imenso, que vai arrastando tudo com sua força avassaladora. É contra essa corrente que remamos.

Diferente dos outros evangelistas, Mt quase sempre usa o termo “Reino dos Céus” em vez de “Reino de Deus” (em Mt, só 12,28; 19,24; 21,31,43). Os leitores da sua comunidade são judeu-cristãos e seguem o costume da sinagoga de evitar pronunciar Deus e substituir o Nome terrível por uma metáfora. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta: As palavras “dos céus” não designam um reino celeste, mas que Aquele que está no céus (5,48; 6,9; 7,21) e reina sobre o mundo. Instruído pelo AT, Mt sabe que o reino sempre “pertenceu ao Senhor” (Sl 22,29; 103,19; 145,11-13 etc.); mas ele entende anunciar que este Reinado de sempre “se aproximou” dos homens na pessoa de Jesus. A rigor, só se deveria traduzir por “reino” quando se quer designar o âmbito (p. ex., “entrar no …”: 5,20; 7,21;18,3; 19,23), nos outros casos, convém traduzir por “reinado”.

A realeza permanente de Deus sobre o mundo expressa-se em Sl 93,1s; 95,3; 99,1-4 etc.; os salmos 96 e 98 anunciam a vinda do Senhor como juiz e rei “para governar o mundo”. O reinado do mundo celeste se apresentará na pessoa de Jesus e com ele “está (chegou) próximo”, ou “tornou-se próximo”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta: Mesma expressão em 4,17 e 10,7 (mesmo verbo, traduzido também por chegar, em 21,1.34; 26,45-46). Hoje em dia, ela se interpreta: 1) O Reinado está próximo, ou muito próximo (Jesus anuncia a vinda ou irrupção iminente e universal deste reino); 2) o Reinado está presente (cf. 12,28, com um outro verbo: “já chegou até vós”), sendo que está presença se pode compreender de modos diversos: ou o reinado já está plenamente realizado, ou está secretamente inaugurado na pessoa e atividade de Jesus, mas em breve será manifestado a todos. De qualquer forma, a vinda do Reinado exige a conversão.

João foi anunciado pelo profeta Isaías, que disse: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas!” (v. 3)

Mt cita muitas vezes profecias do AT que em Jesus se cumprem (cf. 1,23; 2,6.15.18.23 etc.). Aqui Mt copia já a citação de Mc que se refere a João Batista (Is 40,3), tirada do profeta do retorno do exílio: ou seja, do segundo êxodo, que se atualiza agora no definitivo. O “deserto” recorda a viagem dos israelitas no tempo de Moisés e simboliza a nova peregrinação. A passagem pela água (batismo, vv. 5.11) recorda a passagem do mar Vermelho (Moisés) e do Jordão (Josué; cf. 1Cor 10,2 sobre a passagem do mar como batismo).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta: Ao citarem Is 40,3, os sinóticos seguem o grego, que põem “no deserto” em conexão com voz e não com ”preparai”, como faz o texto hebraico. Substituem “uma estrada para nosso Deus (=YHWH)” por “suas veredas”, tornando com isso possível a aplicação do texto ao próprio Jesus, proclamados pelos cristãos como “Senhor”.

João usava uma roupa feita de pelos de camelo e um cinturão de couro em torno dos rins; comia gafanhotos e mel do campo. Os moradores de Jerusalém, de toda a Judéia e de todos os lugares em volta do rio Jordão vinham ao encontro de João (vv. 4-5).

João usa os trajes típicos dos profetas (Zc 13,4), em particular de Elias (2Rs 1,8), identificado por Mt explicitamente na pessoa de João Batista (cf. Mt 11,14; 17,9-13; Ml 3,23). Sua austeridade torna-se modelo para muitos ascetas e monges no cristianismo primitivo.

Na geografia do AT (cf. Sl 63,1; Jz 1,16), o lugar do batismo no “rio Jordão” não pertence ao “deserto” de Judá, mas fazia parte da administração romana da Judeia (cf. v. 1). O Batista é enviado a Israel todo: pessoas vão a seu encontro de todos os lugares, também saem de Jerusalém, como se o culto no templo não satisfizesse o exercício da penitencia e a preparação para a chegada do reinado anunciado (cf. 2,1.5s).

Confessavam os seus pecados e João os batizava no rio Jordão (v. 6). 

“Confessavam os seus pecados”; o verbo indica que se confessavam com palavras e não só com o gesto praticado da mergulhar no rio. Os judeus da época praticavam a confissão em certas ocasiões (cf. liturgia de expiação em Lv 5,5s; 26,40; 2Cr 6,37; Ne 1,6; Dn 9,20; ou a renovação da aliança em Esd 10,1; Ne 9,2). Ela expressa a volta para Deus em vista de conseguir seu perdão (cf. Sl 32,5; Pr 28,13; Lc 18,13s; Tg 4,10; 1Jo 1,9)

Como nos outros evangelistas sinóticos (Mc e Lc), o batismo está ligado à confissão dos pecados (cf. At 19,18 em relação ao batismo cristão), mas Mt omite “para o perdão dos pecados” (Mc 1,4). Ele quer fazer diferença entre o batismo de João como sinal de conversão apenas e o efeito do perdão conseguido definitivamente pelo sangue de Jesus (cf. Mt 26,28; 28,19)?

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta: Por ser oferecido a todos, conferido por João e recebido uma só vez, este batismo difere profundamente das abluções rituais dos Essênios (que eram cotidianas) e do batismo dos prosélitos (que os “purificava” para permitir-lhes entrar em contato com os judeus): cf. Mc 1,4 nota. Graças à conversão a qual está ligado, ele prepara para o batismo trazido por Jesus (Mt 3,11).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1841) comenta: O rito da imersão, símbolo de purificação e de renovação, era conhecido das religiões antigas e do judaísmo (batismo dos prosélitos e dos essênios). Embora se inspirasse nesses precedentes, o batismo de João distinguia-se por três traços importantes: tinha um objetivo já não um ritual, mas moral (3,2.6.8.11; Lc 3,10-14); não se repita, o que lhe dava o caráter de iniciação; finalmente, tinha caráter escatológico, introduzindo o batizado no grupo dos que professavam uma espera diligente do Messias, que estava para vir, e que constituíam, por antecipação, a sua comunidade (3,2.11; Jo 1,19-34). A sua eficácia era real, mas não sacramental, pois que dependia do julgamento de Deus, que ainda estava por vir na pessoa do Messias, cujo fogo havia de purificar ou de consumir, segundo atitude de acolhimento ou de resistência de cada um, e que seria o único a batizar “com o Espírito Santo” (3,7.10-12; Jo 1,33). O batismo de João foi também praticado pelos discípulos de Cristo (Jo 4,1-2) até o dia em que foi absorvido no novo rito instituído por Jesus (Mt 28,19; At 1,5; Rm 6,4).

Quando viu muitos fariseus e saduceus vindo para o batismo, João disse-lhes: “Raça de cobras venenosas, quem vos ensinou a fugir da ira que vai chegar? Produzi frutos que provem a vossa conversão (vv. 7-8).

Mt diferencia aqui o povo simples que acredita em João (v. 5) dos seus líderes hostis da época (cf. 21,23-27p). Deste povo surgirá a primeira comunidade cristã, a Igreja. Mas o povo, que se identifica com seus líderes corruptos (27,25), perde sua pertença a “Israel“ e torna-se os apenas “judeus” (28,15).

Nos próximos versículos, Mt segue a fonte Q (junto com Lc), mas introduz dois grupos de adversários: “fariseus e saduceus”. No relato paralelo de Lc 3,7-9 só aparecem às “multidões”. Tais diferenças explicam-se pelos ambientes diferentes aos quais os evangelistas se dirigem: Mt aos cristãos que vieram do judaísmo, Lc aos que vieram do paganismo.

É costume de Mt, descrever os adversários em dois grupos. Aqui aproxima fariseus e saduceus como em 16,1.6.11.12 e, em outro sentido, 22,34. Em outro lugar, aproxima os fariseus dos escribas (c. 23).

Os saduceus eram os sacerdotes responsáveis depois pela morte de Jesus (junto com os anciãos do sinédrio, cf. 26,3 etc.), mas na época de Mt, cerca de 10 anos depois da destruição do templo em 70 d.C., já não existiram mais. Os fariseus eram o grupo rival e muito influentes, os adversários principais da comunidade de Mt depois de 70 d.C. (cf. cap. 23). Talvez por isso aparecem aqui em primeiro lugar.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1841) descreve os dois grupos:

[Fariseus] Seita judaica constituída por observantes zelosos da Lei, muito apegados à tradição oral dos seus doutores, o que levava a uma casuística cheia de excessos e afetação. A liberdade de Jesus no que diz respeito à Lei e a sua convivência com os pecadores não podiam deixar de despertar entre eles uma oposição de que os evangelhos, sobretudo Mt, conservam muitos vestígios (cf. Mt 9,11p; 12,2p. 14p.24; 15,1p; 16,1p; 19,3p; 21,45; 22,15p. 34.41; 23p; Lc 5,21; 6,7; 15,2; 16,14s; 18,10s; Jo 7,32; 8,13; 9,13s; 11,47s). Jesus teve, contudo, relações amistosas com certos fariseus (Lc 7,36; Jo 3,1), e os discípulos encontraram neles aliados contra os saduceus (At 23,6-10). Não se pode negar o seu zelo (cf. Rm 10,2) e mesmo a sua integridade (At 5,34s). O próprio Paulo se gloriava do seu passado como fariseu (At 23,6; 26,5; Fl 3,5).

[Saduceus] Estes, em contraposição aos fariseus, rejeitavam toda a tradição, exceto a Lei escrita (cf. At 23,8). Menos piedosos do que aqueles e mais preocupados com a política, recrutavam-se principalmente dentre as grandes famílias sacerdotais; também eles entraram em choque com Jesus (Mt 16,1.6; 22,23p) e com os seus discípulos (At 4,1; 5,17).

“Raça de cobras venenosas (lit. víboras)” (12,34; 23,33 (cf. Is 14,29). João suspeita que os fariseus e os saduceus não acorriam com sinceridade ao batismo, com boa disposição (cf. Is 1,10) que supõe a conversão, fruto do arrependimento.

José Luiz Gonzaga do Prado (na revista Vida Pastoral nov./dez. 2016) comenta: João os aborda sem meios-termos: bando de cobras venenosas! A metanoia tem de ser efetiva, produzir resultados práticos; não é mero ritual, o batismo, para tentar enganar os outros, a si mesmo e a Deus! O título de filho de Abraão (ou de cristão) não dá isenção a ninguém, todos têm de mudar de mentalidade.

“Produzi frutos que provem a vossa conversão” (lit. um fruto “digno” da vossa conversão); a Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta: O mesmo adjetivo em Mt 10,10,11,13,37,38; 22,8. A palavra fruto, no singular, designa aqui todo o comportamento do homem, não uma particular manifestação de piedade, ou de moral. A conversão requerida é fruto da pregação do Batista. Ou João exige que a conversão real se manifeste no comportamento, ou denuncia a conversão de seus ouvintes como ilusória, já que destituída de alcance real. A segunda interpretação é recomendada por 3,9.10.

A condenação (“ira”) é a sentença de separação definitiva no julgamento escatológico (v. 12). A ira divina (cf. Nm 11,1) faz parte do Dia de Javé (Am 5,18), que devia inaugurar a era messiânica. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1860) comenta: Neste anúncio do julgamento que se aproxima, a cólera designa a reação do Deus santo diante do pecado (cf. Is 30,27-33). João anuncia a chegada iminente do juiz escatológico, mas Jesus apresenta-se como servo manso e humilde (12,18-21), aquele que, segundo Paulo, salva da ira (1Ts 1,10).

Não penseis que basta dizer: ‘Abraão é nosso pai’, porque eu vos digo: até mesmo destas pedras Deus pode fazer nascer filhos de Abraão. O machado já está na raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada e jogada no fogo (vv. 9-10).

João questiona a pertença visível ao povo de Deus, Israel (cf. Rm 9,6-13: “nem todos que descendem e Israel são Israel…”). A Bíblia do Peregrino (p. 2322) comenta: Invocar os patriarcas era recurso na intercessão (p. ex. Ex 32,13; cf. Jo 8,33). No contexto hebraico se poderia jogar com a aliteração de “filhos” e “pedras” (banim ’abanim). Is 51,1-2 apresenta Abraão e Sara como “rocha e pedreira”.

A queimada pelo fogo é destino de plantas inúteis (cf. v. 12; Is 27,11; Ez 15,4-7). O fogo é palavra chave dos vv. 10-12 e lembra também o profeta Elias (cf. Eclo 48,1).

Eu vos batizo com água para a conversão, mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu. Eu nem sou digno de carregar suas sandálias. Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo (v. 11).

Este v. se encontrava nas duas fontes: em Mc (Mc 1,8: só “com Espírito Santo”) e em Q (Lc 3,16 “e com fogo”), lit. na agua, no Espírito, no fogo (a preposição em não tem necessariamente sentido locativo, mas pode ter um valor instrumental (cf. Ap 6,8; 19,21; compare Mc 5,25 e Mt 9,20).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta “o mais forte do que eu”: Ao contrário do que sucede habitualmente nos cortejos oficiais, a personagem mais importante vem aqui em segundo lugar. Só aqui e em 12,29, Jesus é designado o “Forte”, qualificativo que, no AT (Dn 9,4; Jr 32,18), caracteriza a Deus e, por volta dos tempos de Jesus, o Messias esperado (cf. Salmos de Salomão). Ao termo “força” Mt prefere “autoridade” (7,29; 9,6; 28,18).

“Nem sou digno de carregar suas sandálias”. Não calçar suas sandálias, mas tirar-lhas: gesto característico do escravo. José Luiz Gonzaga do Prado (na revista Vida Pastoral nov./dez. 2016) comenta: Depois, João fala de Jesus. “Não sou digno de carregar suas sandálias” pode significar também: não mereço ficar no lugar dele, assumir a função dele. Como em Rt 4,7ss: o que desiste da tarefa e a passa a outro tira e lhe entrega a sandália.

A Bíblia do Peregrino (p. 2322) comenta: A alusão às sandálias parece referir-se ao símbolo matrimonial do levirato (segundo Dt 25,5-10 e Rt 4). Os quatro evangelistas e At 13 as mencionam; o símbolo se esclarece na versão do evangelho de João. Uma longa tradição transmite essa interpretação teológica das sandálias, ao passo que outra tradição, também antiga, reduz o tema a uma expressão ética da humildade.

Como Mt não transmite o relato de Pentecostes com o fogo do Espirito Santo (Lc sim, em At 2,3s), podemos entender o fogo como símbolo do julgamento, muito presente em Mt (cf. 7,19; 13,40.42.50; 18,9; 25,41). Já no AT, o fogo simbolizava a intervenção soberana de Deus e do Espírito, que purifica as consciências (cf. Is 1,25; Zc 13,9; Ml 3,2.3; Eclo 2,5; etc.; cf. o julgamento divino em Dn 7,9s).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta: Por isso, poder-se-ia compreender: “O Espírito Santo que depura como fogo” (a conjunção e seria explicativa). Mas parece preferível admitir que o fogo não muda de sentido do v. 11 para o v.12, onde se trata realmente de um castigo, o fogo representa pois, de preferência, a “cólera” (cf. 3,7…), correlativo necessário (cf. Rm 1,16-18) da participação na “santidade” de Deus (a conjunção e acrescentaria então um matiz especial).

José Luiz Gonzaga do Prado (na revista Vida Pastoral nov./dez. 2016) comenta: “O Espírito Santo e o fogo”, no contexto da comparação com o lavrador que abana o seu cereal, poderia significar “o vento e o fogo”, o vento que carrega a palha e o fogo que vai queimá-la. Jesus, que vem, é o último juiz da humanidade; ele separa o grão da palha, ele guarda o grão no seu celeiro e joga ao fogo a palha, o que não tem serventia. No final do capítulo 25 do mesmo Evangelho, ele vai dizer: “Vinde, benditos” e “ide, malditos”.

Ele está com a pá na mão; ele vai limpar sua eira e recolher seu trigo no celeiro; mas a palha ele a queimará num fogo que não se apaga” (v. 12).

O v. 12 combina bem com a teologia de Mt e é outra alerta para conversão necessária: A comunidade, que já foi mencionada indiretamente pelo batismo (v. 11), é misturada de membros bons e ruins, ou seja de trigo e joio que serão separados no juízo final (13,40-43; 22,11-14). “O fogo que não se apaga” (Is 66,24) é o fogo da geena (inferno; cf. 18,9), que consome para sempre o que não pode ser purificado (cf.  Jt 16,17; Eclo 7,17; Sf 1,18; Sl 21,10; etc.).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1859) comenta: No AT e no NT, a messe é a imagem do juízo final, da consumação dos tempos, por ser a ocasião em que o bom grão (ou a parte sadia do trigo) é separado do ruim (Jl 4,12-13; Is 27,12-13; Ap 14,14-16…)

 

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