04 de março de 2018 – Quaresma 3º Domingo Ano B

1ª Leitura: Ex 20,1-17

Nas 1ª leituras dos domingos da quaresma passamos pelas etapas da história da salvação; depois de Noé e Abraão chegamos hoje a Moisés, figura principal do judaísmo. Através dele, Deus libertou Israel da escravidão e deu a Lei no monte Sinai. “Moisés” é um nome egípcio (apesar da interpretação hebraica de Ex 1,10), cujos consoantes (não se escrevia os vocais) aparecem nos nomes de vários faraós (por ex. Tut-MoiSéS ou o próprio Ra-MSéS). O fato de que os israelitas se dizem descendentes de um povo escravo e usam um nome egípcio para designar seu libertador, dá a história do Êxodo (grego; “saída”) certa credibilidade.

Ouvimos hoje a declaração do Decálogo (grego: “dez palavras”, ou seja, dez mandamentos; cf. v. 1; 34,28; Dt 4,13; 10,4), o “documento da aliança”, que foi guardado no lugar santíssimo do templo, na arca da aliança (Ex 25,16).

Na versão de Ex, o povo de Israel acabou de chegar ao monte Sinai/Horeb “no terceiro mês” (19,1) após a libertação da escravidão do Egito (a narrativa a situa cerca de 1250 a.C., mencionado a construção da cidade do Faraó “Ramsés” II, cf. Ex 1,11). A festa judaica de Pentecostes era a festa da ceifa ou “festa das (sete) semanas” (após a páscoa) que foi relacionada com o dom da Lei no Sinai e tornou-se a festa da aliança (Ex 23,16; 34,22; Dt 16,9; Nm 28,26; Tb 2,1; 2Mc 12,32; cf. At 2: entrega do Espírito, no lugar da Lei).

No pé deste monte, através de uma sarça ardente (Ex 3), Deus já tinha chamado Moisés para sua missão libertadora. Agora Deus desceu à mesma montanha em forma de fogo, fumaça/nuvem e som de trombeta. A experiência de uma tempestade (ou vulcão? cf. Ex 19; Dt 4,11; diferente Elias em 1Rs 19,11-13).) é algo “fascinante e terrível” (atributos do “sagrado, segundo R. Otto) e impressionou os povos antigos; o deus cananeu Baal (concorrente de Javé, cf. 1Rs 18) era o deus da tempestade e da fertilidade. O relato do Sinai, cuja última redação foi realizada por sacerdotes no pós-exílio, é influenciado pelo culto (trombetas, incenso) e foi descrita como liturgia.

A chegada do povo de Israel no Sinai e a descida de Deus no monte em forma de fogo, terremoto e tempestade eram apenas a preparação para a peça central de todo Antigo Testamento (AT), a promulgação dos “dez mandamentos”.

Os biblistas concordam majoritariamente que historicamente Deus não entregou a Moisés as tábuas da lei com todas as letras no monte Sinai, mas que se trata de uma reflexão longa, na maior parte no exílio babilônico (séc. VI a.C.), sobre a questão: qual a essência da identidade do povo de Israel constituída por Javé? Não é mais o rei, nem a terra pátria com o templo (tudo destruído no exílio), mas é a Torá (Lei) representada e encabeçada pelo decálogo, projetado numa história de origem idealizada.

O decálogo existe em duas versões, Ex 20 e Dt 5, que são quase idênticas (apenas três modificações; a de Dt é considerada provavelmente mais antiga). Depois das duas versões se seguem outras leis, que se pode interpretar como interpretações e aplicações do decálogo: em Ex 20,22-23,29 o código da aliança, em Dt 12-26 o código deuteronômio. Assim o decálogo representa a lei básica, ou seja, a constituição para o povo de Deus que acabou de ser libertado da escravidão e agora representa um sujeito coletivo livre.

Deus pronunciou todas estas palavras: “Eu sou o Senhor teu Deus que te tirou do Egito, da casa da escravidão (vv. 1-2).

Depois de mandar a Moisés reunir o povo ao pé da montanha, o próprio Deus declara pessoalmente os dez mandamentos (depois o povo pede a Moisés para intermediar as outras leis, vv. 18-21). Sua primeira frase, porém, não é um imperativo, mas uma auto-apresentação do próprio Deus: ele não é um deus estranho, mas conhecido, o libertador. Outra recordação histórica se encontra no terceiro mandamento lembrando Deus criador (vv. 8-11; o paralelo Dt 5,12-15 recorda a novamente a escravidão).

Luiz Alexandre Solano Rossi (na Vida Pastoral, 2015) comenta:

A primeira leitura nos traz à mente a importância de meditarmos os dez mandamentos como se fossem os pilares básicos da construção da vida. No entanto, antes mesmo de apresentar os mandamentos, há como que uma introdução que estabelece o terreno teológico onde os mandamentos estão edificados. É justamente para esse terreno que devemos voltar nossos olhos, pois nele se percebe a experiência de Deus como presença libertadora e protetora da vida: “Eu sou Javé seu Deus, que tirou você da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2).

O terreno que alimenta os mandamentos é a liberdade. Pode-se dizer, por consequência, que a sociedade que se espera construir à luz dos mandamentos é baseada em relações de libertação, fraternidade e solidariedade; uma sociedade onde caibam todos.

A autoridade do decálogo vem de Javé Deus que o fala diretamente ao povo, enquanto as outras leis são transmitidas por intermédio de Moisés. O povo não aguentava o “trovão da voz” (Dt 4,12) e pediu a Moisés para intermediar (Ex 20,19). O decálogo se destaca porque é fala de Deus imediata, e ainda foi escrito pelo próprio Deus e proclamado duas vezes (Ex 20 e Dt 5). As dez palavras são escritas ora por Moisés (Ex 24,3s), ora por Deus em duas tábuas de pedra (24,12; 31,18; 32,15s; 34,1), cuja primeira edição Moisés destruiu quando viu o bezerro do ouro (32,19); tinha que lavrar outras tábuas nas quais Deus escreveu a segunda edição (34,1.3.29).

No texto, Deus entrega as tábuas só depois das outras leis no Sinai (20,22-31,17; 34,10-28; cf. Dt 9,11), porque o decálogo representa também elas. O decálogo e as demais leis devem ser considerados juntos. O escriba judaico Saadja Gaon especulou que as 613 letras do decálogo correspondem às 613 leis da Torá (lei de Moisés, ou seja, os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados também de pentateuco).

Leis são essenciais para a convivência de um povo. Na Babilônia, o código do rei Hamurabi (1750 a.C.) apresentou um progresso na humanidade (por ex. a lei do talião “olho por olho, …” que proporcionou pela primeira vez delito e pena, cf. Ex 21,22-25). O decálogo apresenta princípios de lei (lei apodítica), mas ainda sem a punição (diferente das leis seguintes, cf. 21,17; 31,15). Na sua origem provavelmente continha leis breves (vv. 13-16).

Todo direito no Antigo Oriente é direito do rei que é instrumento dos deuses (na Mesopotâmia) ou considerado divino (no Egito). Não se concebia justiça independente do rei. Só na crise do séc. VII a.C., a crítica da ideologia dos reis da Assíria levou em Israel ao conceito de um direito independente do rei. A justiça em Israel não se faz mais presente onde se apresentam os símbolos reais de dominação nacional, mas onde se cumpre a vontade de Deus através dos mandamentos. Assim o decálogo, como constituição e estatuto de fundação do povo de Israel, torna-se uma alternativa e abre espaço para pensar em liberdade política (cf. direitos humanos etc.). A abertura do decálogo com a auto-apresentação de Deus libertador (v.2) é contrária à fundamentação do direito babilônico sobre o mandato místico do rei (cf. a imagem na estela de Hamurabi).

O decálogo se divide em duas tabuas (de pedras, escritas por Deus: cf. 24,12; 31,18; 32,15-19; 34,1-4), a primeira se refere a Deus, a segunda aos seres humanos. Mas a contagem dos 10 difere: Os rabinos (mestres judaicos) contam como primeiro mandamento/palavra a apresentação de Deus (v. 2), mas entendem a proibição de fazer imagens como parte de não ter outros deuses (1º mandamento, igual nos católicos e luteranos). Os demais evangélicos (reformados etc.) e os ortodoxos separam isso em dois mandamentos (não ter outros deuses, não fazer imagens). Os católicos e luteranos dividem o último mandamento em dois, seguindo Dt 5.

Comentarei em seguida só o 5º mandamento (por causa da CF 2018) e as diferenças da catequese. Um comentário detalhado dos demais mandamentos encontra-se no Tempo Comum 16ª semana, 6ª feira, ano ímpar.

Não terás outros deuses além de mim (v. 3).

Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, ou embaixo, na terra, ou do que existe nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante destes deuses nem lhes prestarás culto, pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento. Castigo a culpa dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas uso da misericórdia por mil gerações com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos (vv. 4-6).

Não pronunciarás o nome do Senhor teu Deus em vão, porque o Senhor não deixará sem castigo quem pronunciar seu nome em vão (v. 7).

Lembra-te de santificar o dia de sábado. Trabalharás durante seis dias e farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é sábado dedicado ao Senhor teu Deus. Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu gado, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades. Porque o Senhor fez em seis dias o céu e a terra, o mar e tudo o que eles contêm; mas no sétimo dia descansou. Por isso o Senhor abençoou o dia do sábado e o santificou (vv. 8-11).

Honra teu pai e tua mãe, para que vivas longos anos na terra que o Senhor teu Deus te dará (v. 12).

Não matarás (v. 13).

Este e os próximos mandamentos são os mais curtos e tratam dos temas: vida, convivência (sexual) e bens (propriedade). Os três vv. 13-15 não têm objeto (só o verbo), enquanto os vv. 16-17 tratam dos mesmos temas, mas tem como objeto o “próximo”.

A Bíblia do Peregrino (p. 145) comenta: À luz de outras leis e da prática constante, que admitem e prescrevem a pena capital, seria preciso entender esta proibição em sentido restrito: não cometerás assassínio, não matarás ilegalmente. Gn 9,5 parece atribuir a competência a Deus: “pedirei contas”. Paralelos: Ex 21,12; Dt 27,24.

Como as leis do Antigo Oriente, a Bíblia (AT) declara a pena de morte para um assassino (Ex 21,12.14; cf. lei do talião: 21,23-25; Lv 24,19s; Dt 19,21) e faz uma diferença entre assassinato e lesão (briga) com consequência letal (21,12-14), autodefesa ou guerra. Davi é elogiado porque “matou 10.000” (1Sm 18,7) dos inimigos, mas é censurado pela ordem de assassinar Urias (2Sm 11-12).

O Catecismo da Igreja Católica apresenta uma reflexão mais aprofundada sobre os temas relacionados ao quinto mandamento (CIC 2258-2330) como respeito à vida humana, legítima defesa, homicídio voluntário, aborto, eutanásia, suicídio; o respeito à dignidade das pessoas: à alma do outro, o escândalo, a saúde, pesquisa científica, integridade corporal, respeito aos mortos, a paz e evitar a guerra.

Não cometerás adultério (v. 14).

Não furtarás (v. 15).

Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo (v. 16).

Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença” (v. 17).

A segunda versão (atualização) do decálogo em Dt 5,6-21 tem as mesmas “10 palavras”, com duas modificações: Em Ex 20, o “sábado” justifica-se pelo descanso de Deus depois da criação (motivo cultual), em Dt 5 pela lembrança da escravidão (motivo social). Em Ex 20, a mulher parece fazer parte das propriedades do homem, as quais não se deve desejar do próximo (10º mandamento: casa, mulher, boi, jumento…; ou se entende “casa” no sentido de família). Em Dt 5, a mulher destaca-se numa palavra/frase própria (9º mandamento).

No NT, a interpretação de Jesus é interessante. Ele cita os mandamentos (a segunda tábua em Mc 7,10; 10,18s; não cita a proibição das imagens, mas relativiza o sábado em Mc 2,27s e Jo 5,17). Perguntado sobre o maior mandamento (Mc 12,28-31 par), cita outros preceitos: Dt 6,4-5 e Lv 19,18, assim resumindo e superando as duas tábuas do decálogo (não fala de proibições, mas do “amor” a Deus e ao próximo; cf. 1Jo 4,7-21; Jo 13,34s; 15,12s).

Quem guarda os dez mandamentos ainda não é um bom cristão, é um bom judeu. O bom cristão deve guardar o novo mandamento de Jesus, ou seja, amar com Ele nos amou (Jo 13,34s)

A Catequese crista modificou bastante o decálogo do AT:

O primeiro mandamento que as crianças aprendem é: “amar (palavra de Jesus, cf. Mc 12,30s; Dt 6,5) a Deus sobre todas as coisas” porque na sociedade cristã não se acreditava mais em outros deuses, mas o perigo da idolatria continua: “adorar” tanta outra coisa que não é Deus.

Fazer imagens ou “ídolos” continua um assunto polêmico: Nos tempos de Moisés, os povos pagãos erravam, imaginando e representando deuses com cabeças de animais (Egito, Babilônia). Mas Deus é invisível (Ex 33,20-23; Eclo 43,31; dif. Ex 24,10; Nm 12,8; cf. Jo 1,18; 6,46; 1Jo 4,12), por isso não se podia fazer imagens de Deus. Em Jesus, porém, nasceu a “imagem de Deus invisível” (Cl 1,15). “A palavra (de Deus) se fez carne” e podia ser vista e tocada (e se tivesse maquina, fotografada e filmada; cf. Jo 20,25-28). “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). Aos poucos a Igreja Católica e também a Ortodoxa aceitou imagens artísticas de Jesus e dos santos (não para adorar, mas para lembrar a presença do representado). Pela influência do islamismo surgiu uma briga por causa das imagens que foi resolvida pelo II Concílio de Nicéia no século VIII: por causa da encarnação é licito venerar imagens de Jesus e dos santos. É um ato de fé acreditar que Deus sé tornou visível em Jesus, cujo amor maior (cf. Jo 15,12s) pode ser representado num crucifixo, por exemplo,

O terceiro mandamento cristão mudou o dia sagrado de “sábado” para o domingo, sem dizer o motivo: A ressurreição de Jesus no 1º dia da semana representa uma nova criação e tornou-se o dia da reunião dos apóstolos para celebrar a presença do Ressuscitado (Lc, 24,1.13; Jo 20,1.19. 26; At 20,7). Todas as igrejas cristãs fizeram esta mudança, somente no século 19 os adventistas e testemunhas de Jeová voltaram atrás para o sábado.

O quinto e o sexto mandamento se radicalizaram pela influência do sermão da montanha, no qual Mt apresenta Jesus como novo Moisés ensinando cumprir a lei em vez de aboli-la (Mt 5,17): “Não assassinar” virou “não matar” questionando a defesa legítima e a guerra justa (cf. Mt 5,21-26.38-48; 26,51s), e “não cometer adultério” tornou-se “não pecar contra castidade” referindo-se a qualquer atividade sexual fora do casamento, qualquer desvio e abuso sexuais (cf. Mt 5,27-31; 18,6-9).

Os mandamentos na versão catequética são uma versão atualizada do decálogo, mas perdeu-se a motivação que se tinha antes, principalmente a frase introdutora: “Eu sou Javé seu Deus, que fiz você sair do Egito, da casa a escravidão” (v. 2). Deus quer a nossa liberdade, por isso deu estas orientações para continuarmos vivendo em liberdade (Torá: “Lei” em hebraico, quer dizer orientação, como sinais de transito para encontrar o caminho certo). Sem motivação e justificativa resta uma série de proibições, colocada em cheque por uma ideologia sem Deus (sem Deus e sem a igreja, o ser humano estaria mais livre para pensar e fazer o que quiser? Ou criam-se outras dependências?). É preciso ensinar e mostrar o contexto, a transformação e a motivação do decálogo, e saber defender-se com argumentos, contra filosofias ateias ou práticas supersticiosas ou o fundamentalismo evangélico.

 

2ª leitura: 1Cor 1,22-25

A 2ª leitura nos prepara para a cruz de Cristo. Desde a escolha do casal idoso e estéril Abraão e Sará e a libertação dos escravos hebreus, Deus fez uma opção pelos mais fracos, contrariando projetos humanos baseados em poder, sucesso e vitória como o do faraó.

Ouvimos hoje uma teologia da cruz que Paulo escreve aos coríntios.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1388) comenta a situação: Paulo havia partido de Atenas após uma experiência fracassada com os filósofos gregos (At 17,16-34). Agora, em Corinto, ele trabalha com uma comunidade pobre da periferia da cidade. Dessa dupla experiência, cresce a convicção de que Deus escolheu preferencialmente as pessoas pobres, simples e marginalizadas, pois é na fraqueza que se manifesta a força de Deus (2Cor 12,9). A partir daí, segue a argumentação através de um jogo de contrários ou antíteses. Significa que há uma contradição entre o projeto de Deus e o projeto humano. A cruz parece loucura, sinal de fraqueza e caminho de perdição. Mas Deus a transformou em sabedoria, sinal de força e caminho de salvação. No final, Paulo aplica suas considerações ao caso concreto da comunidade de Corinto, onde essa realidade pode ser constatada (2Cor 10,17).

Os judeus pedem sinais milagrosos, os gregos procuram sabedoria (v. 22).

“Os judeus pedem sinais”, cf. Mc 8,11p e Jo 2,18 (evangelho de hoje) onde não lhes é dado por Jesus.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2148) comenta: Judeus e gregos estão à procura de seguranças humanas: milagres que garantem a veracidade da mensagem (cf. 4,48); sabedoria ou doutrina satisfatória para a inteligência ávida de conhecer. Essa procura não é condenável em si mesma; paradoxalmente, a cruz de Cristo há de lhe responder (v. 24). Caso, porém, o homem faça dessa procura a condição previa e indispensável para dar a sua adesão a Cristo, ela se torna inadmissível.

Nós, porém, pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e insensatez para os pagãos. Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, esse Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus (vv. 23-24).

“Pregamos Cristo crucificado”, pode se entender “um Cristo”, ou seja, um messias crucificado que para os que abraçaram a fé, é “o Cristo”. “Os que são chamados”: retorna à designação do prólogo da carta (v. 2).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2148) comenta: Humanamente, a Cruz aparece como no contrário do que judeus e gregos esperava: derrota, em vez de manifestação gloriosa; loucura, em vez de sabedoria. Mas, numa visão de fé, a Cruz se apresenta como algo que preenche e ultrapassa as expectativas: poder e sabedoria de Deus.

A imagem mais antiga de Jesus crucificado é um grafite pagão no monte Palatino em Roma que data entre os séculos I e III. Representa um homem diante de uma pessoa com cabeça de burro que está sendo crucificado, com a inscrição: “Alexámenos adora a Deus”. Acredita-se que com este grafite caçoavam da fé de um cristão de nome Alexámenos. Adorando um crucificado como deus parece burrice (loucura, absurdo) para os pagãos.

Pois o que é dito insensatez de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é dito fraqueza de Deus é mais forte do que os homens (v. 25). 

Este caráter paradoxal da ação de Deus (1,18-25) verifica-se tanto no chamamento dos coríntios (comunidade de pessoas humildes, cf. 1,26-30), como na pregação de Paulo (sem muita oratória, cf. 2,1-5).

A Bíblia do Peregrino (p. 2739) comenta nossa leitura: Judeus e gregos, cada um a seu modo, enfrentam o problema do saber. O AT inclui um grupo de livros que chamamos “sapienciais”, cujo tema é a “hokmá” (sabedoria, prudência, habilidade): os gregos cultivam o “amor ao saber” ou “philo-sophia”. Em ambos os casos busca-se um saber também pratico, não puramente intelectual: conhecer o sentido da vida e dar sentido à vida. Vários textos tardios do AT identificam “hokmá” com “torá”, sabedoria da lei (p. ex. Eclo 24; Br3); sábio ou doutor é estudioso e intérprete a lei (Eclo 39,1-11). Paulo identifica a sabedoria com o projeto paradoxal do Pai e sua realização por meio de Jesus Cristo.

Os judeus esperam um Messias triunfador (não o Servo de Is 53): para eles, um Messias executado é mensagem escandalosa. Para os gregos (que cultivam o saber, filo-sofia) um salvador sentenciado é absurdo: quem não se salvou a si, mal poderá salvar os outros. A cruz denuncia a mal-empregada sabedoria humana e demonstra um poder e saber de Deus paradoxais, que o homem descobre pela fé. A frase “só um é sábio” (Eclo 1,8) adquire ressonância nova.

O parágrafo distingue dois campos, judeus e gregos (pagãos), e trabalha com antíteses elementares. A primeira é sabedoria/loucura (ou razão e absurdo): é típica dos pagãos (cf. Br 3,22-23) e dos gregos que investigam e discutem; mas também entram nessa categoria os “letrados” que se ocupam da lei (Jo 5,39). A segunda é poder/fraqueza: poder de Deus que se manifesta nos sinais ou milagres, do qual o futuro Messias participará (Mt 12,38). Como desfecho, entra a terceira antítese: perdição/salvação. A cruz de Cristo quebra os sistemas em que se encastelam judeus e pagãos e revela, de modo inesperado e difícil, a sabedoria e o poder de Deus.

Com eloquência oratória, S. João Cristóstomo (347-407) comentou o v. 25: Por meio de homens ignorantes a cruz persuadiu a terra inteira… Sucedeu exatamente o contrário do pretendiam aqueles que tentavam apagar o nome do Crucificado… Doze homens, sem instrução que se lançam a tal grande empresa? … preso o Cristo depois de tantos milagres feitos, uns fugiram, o principal deles o negou. Donde lhes veio que durante a vida de Cristo, não resistiram a fúria dos judeus, mas uma vez ele morto … entraram em luta contra o mundo inteiro? Não teriam dito, ao contrário: “Que é isso? Não pôde salvar-se, vai proteger-nos agora? Ainda vivo, não socorreu a si mesmo, e morto, nos estenderá a mão? Vivo, não sujeitou povo algum, e nós iremos convencer o mundo inteiro, só com dizer seu nome? Como não será insensato não só fazer, mas até pensar tal coisa?” Por este motivo é evidente que, se não o tivessem visto ressuscitado e recebido assim a grande prova do seu poder, jamais se teriam lançado em tamanha aventura (Hom. 4,3.4: PG 61,34-36; 2ª leitura do ofício de S. Bartolomeu, dia 24 de agosto).

 

Evangelho: Jo 2,13-25

Com relação aos evangelistas sinóticos (Mt, Mc, Lc), João antecipa o episódio da purificação do templo, carregando-o de sentido simbólico referindo-se à morte (cf. 1,29.36: “Eis o cordeiro de Deus”) e ressurreição de Jesus (2,19-22). Uma moldura abre e apresenta o evangelho de hoje: a festa da Páscoa comparece no início e quase ao final do relato (vv. 13.23). Na Páscoa, os judeus comemoram sua libertação da escravidão; na época, todo judeu adulto devia celebrá-la em Jerusalém (cf. Lc 2,41; Dt 16,16). Os romanos reforçaram a segurança durante esta festa em Jerusalém porque temiam possíveis revoltas e atos de violência.

Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados (vv. 13-14).

A denominação “Páscoa dos judeus” (cf. 6,4) pode indicar que os leitores não são mais judeu-cristãos da Palestina, mas pagãos que se converteram (provavelmente em Éfeso, onde o grupo joanino emigrou depois da guerra judaica).

O quarto evangelista colocou esta ação de Jesus já no segundo capítulo (após o primeiro milagre em Caná, vv. 1-12). Nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc), Jesus começa sua pregação na Galileia e termina na Páscoa em Jerusalém, tudo no período de apenas um ano. Em João, Jesus atua três anos viajando várias vezes a Jerusalém, na ocasião das grandes festas.

No plano realista, João é generoso em detalhes. A celebração da Páscoa consumia grande quantidade de reses, bois, ovelhas e pombas; com licença das autoridades do templo, um átrio (soreg) se convertia praticamente em estábulo ou mercado. Além disso, para o tributo do templo ou para oferendas voluntárias, o povo que vinha de outros países tinha de trocar dinheiro. Os cambistas prestavam esse serviço e faziam seus negócios.

Luiz Alexandre Solano Rossi (na revista Vida Pastoral, 2015) comenta:  A cidade de Jerusalém está fervilhando de gente. Pessoas vindas das mais diferentes regiões se aproximam para a celebração da Páscoa. Um momento sublime para a história do povo de Deus que, no entanto, estava sendo manipulado tanto pelos religiosos quanto pelos políticos. Manipulava-se a religião e se oprimia o povo em nome de Deus. Naquela época, todo judeu maior de idade devia ir à festa e pagar ao templo os impostos prescritos. Eram pagos em moedas tírias (cunhadas numa cidade conhecida por Tiro). Por ser uma cidade pagã, as moedas não podiam entrar no templo e, por conta disso, havia os cambistas sempre prontos a fazer o câmbio (quando cobravam uma taxa de 8%).

Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas. E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!” (vv. 15-16).

Contra o abuso, Jesus executa uma ação simbólica (gesto profético; cf. Jr 13; 18; Is 20; Ez 4; 12; 24,15s etc.), que explica e amplia numa ordem decisiva: “Tirai isto daqui”. Jesus se revela como messias na ação e na palavra designando o templo “a casa do meu Pai” (cf. Lc 2,49).

A “casa de comércio” (mercado) alude ao final de Zacarias: “e já não haverá mercadores no Templo do Senhor dos exércitos, naquele dia” (14,21). Segundo um pensamento rabínico, o messias viria com um flagelo na mão para instaurar um novo tempo.

Danilo César dos Santos Lima (na Vida Pastoral, 2018) comenta em relação à CF e a 2ª leitura:

A Campanha da Fraternidade aborda neste ano o tema da violência. A superação da violência pela via da fraternidade é requisito indispensável da vivência da fé cristã. O ato de Jesus no Templo deve ser considerado como indignação contra outro tipo de violência que se pratica ao destituir e explorar os pobres com argumentos religiosos, mas distantes de Deus. O novo caminho instaurado por Jesus supõe o enfrentamento da violência com a Palavra da cruz, que vence com base naquilo que é aparentemente loucura e fraqueza.

Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa me consumirá” (v. 17).

Em lugar de Is 56 e Jr 7 (citados pelos evangelistas), João alega um versículo de um salmo bastante usado, de um inocente perseguido (Sl 69,10). Ao fazê-lo, Jesus demonstra interesse pela instituição do Templo de Jerusalém. Se no início o templo foi construção e responsabilidade do rei (1Rs 7-8 par.), no tempo de Jesus era o centro espiritual de todos os judeus da Palestina e da diáspora (judeus dispersos em outros países). O modo de alegar o versículo é exemplar, porque apresenta a compreensão que os discípulos adquirem depois da ressurreição. A Igreja primitiva percebeu o caráter messiânico desse gesto e vê aqui um anúncio da paixão (como sugerem o verbo posto no futuro e o contexto).

Então os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?” Ele respondeu: “Destruí este Templo, e em três dias o levantarei”. Os judeus disseram: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?” (vv. 18-20).

Muitas vezes, João destaca a polêmica entre “judeus” (aqui designa seus representantes, a elite da época) e Jesus. O próprio Jesus e os discípulos eram judeus, mas na época do evangelista (90 d.C.), os rabinos excluíram os cristãos da sinagoga (cf. 9,22; 16,2), não são mais judeus.

Uma reconstrução do Templo, na verdade uma grande reforma, havia começado por Herodes Grande no ano 19 a.C., o que situa a cena com Jesus na Páscoa do ano 28 (“quarenta e seis anos”). Sua ação um tanto violenta provoca a reação das autoridades; quem age dessa maneira tem de comprovar sua autoridade com algum sinal atestador, um ato prodigioso (cf. Mc 8,11; Mt 12,38; 16,1; Lc 11,16.29-30; 1Cor 1,22).

O sinal que Jesus oferece, condicional, tem por objeto o próprio Templo que acaba de purificar. Aqui, Jesus utiliza uma palavra em grego que se diferencia do edifício Templo, naós, isto é, santuário, o lugar onde o Santo habita.

Da frase sobre o destruição e reedificação do Templo temos várias versões: a das falsas testemunhas no julgamento do sinédrio (Mc 14,58; Mt 26,61), as zombarias na crucifixão (Mc 15,29; Mt 27,40): “Eu destruirei… edificarei outro”, e a presente de Jo, que é como um desafio: “Destruí (destruam vocês) … eu reconstruirei”. Na verdade, são os próprios judeus que vão causar a destruição do templo por sua revolta contra os romanos na guerra Judaica de 66 a 73. Os romanos destroem a cidade de Jerusalém e saqueiam e incendiam o Templo em 70 d.C. Jesus teria a capacidade de reerguê-lo num curto espaço de tempo?

Os judeus tomam a resposta de Jesus ao pé da letra, por falta de penetração, um recurso favorito de João. A Bíblia de Jerusalém (p. 1989) comenta: O Cristo joanino costuma usar palavras que, além do seu sentido natural (o único compreendido por seus interlocutores) são capazes de manifestar, um outro, sobrenatural ou figurado: cf. 2,21 (Templo); 3,4 (renascimento); 4,5 (água viva); 6,34 (pão vivo); 7,35 (partir); 8,33 (escravidão), 11,11s (acordar); 12,34 (elevar); 13,9 (lavar); 13,36s (partir); 14,22 (manifestar-se). Surge daí um mal-entendido, que dá a Cristo a oportunidade de desenvolver o seu ensinamento (cf. 3,11).

Mas Jesus estava falando do Templo do seu corpo. Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra dele (vv. 21-22).

O narrador dá a interpretação correta (cf. 1 Cor 6,19; 3,16; Ap 21,22) e apela de novo para a compreensão do fato à luz da ressurreição. Os leitores do evangelho de João conheciam a ressurreição de Jesus e a destruição do Templo pelos romanos (em 70 d.C.; o quarto evangelho foi concluído por volta de 90 a 100 d. C.).

O corpo de Cristo ressuscitado será o centro do culto “em espírito e verdade” (4,21s), o lugar da presença divina (1,14), o templo espiritual de onde mana a fonte de “água viva” (4,10-14; 7,37-39; 19,34; cf. Ez 47,1-12). Trata-se de um dos principais símbolos joaninos (cf. Ap 21,22 e Paulo em 1Cor 12,12; Rm 12,5; Ef 1,22; 4,12-16; Cl 1,18). É em função da ressurreição de Jesus e do dom do Espírito que os discípulos compreendem plenamente os acontecimentos e as palavras da vida terrena de Jesus (12,16; 14,26; 15,26).

A presença de Deus não está mais num lugar único, fixado e escolhido em Jerusalém (cf. Dt 12), mas em Jesus ressuscitado, onipresente e em seu Corpo que é a Igreja, ou seja, “onde dois ou três se reúnem em seu nome” para celebrar a Eucaristia (Mt 18,20; cf. Lc 24,13-35) e praticam a “caridade” (cf. Mt 25,31-46; 1Cor 13; Jo 6,56; 13,34; 14,21-23).

Jesus estava em Jerusalém durante a festa da Páscoa. Vendo os sinais que realizava, muitos creram no seu nome. Mas Jesus não lhes dava crédito, pois ele conhecia a todos; e não precisava do testemunho de ninguém acerca do ser humano, porque ele conhecia o homem por dentro (vv. 23-25).

Novamente aparece a palavra “sinais”. A primeira etapa na redação do evangelho era um livro de sete sinais (milagre, curas; cf. v. 11; 4,54 etc.). O conhecimento sobrenatural de Jesus sobre as pessoas destaca-se em João (1,47s; 4,17-19.29; 6,61.64.71; 13,1.11.27s; 16,19.30; 18,4; 21,17).

Luiz Alexandre Solano Rossi (na Vida Pastoral, 2015) comenta:

Há no texto de João uma insistência na novidade escandalosa da mensagem e da pessoa de Jesus. João, diferentemente dos sinóticos, insere o episódio dos comerciantes do templo no começo do ministério de Jesus, durante sua primeira subida pascal a Jerusalém. Certamente o relato indica a ideia de que o culto espiritual da Igreja, o Corpo de Cristo, pôs fim ao culto sacrifical do templo. A partir desse momento, a incorporação ao novo povo da nova aliança acontece necessariamente pela fé. A confiança na identidade étnica ou na circuncisão já não é considerada como chave de pertença à nova realidade que se apresenta. “Muitos creram em seu nome, vendo os sinais que fazia” (v. 23). A mediação acontece unicamente por meio de Jesus. Nisso podemos ver a novidade significativa do evangelho, ou seja, lugares e objetos sagrados são substituídos por uma pessoa. Em Jesus a dignidade de todo ser humano é resgatada. Nele a humanidade se vê com outros olhos e pode se pensar como participante de um novo projeto no qual a morte dá lugar à vida e a prisão à liberdade.

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