05 de janeiro de 2018 – Sexta-feira, Natal (antes da Epifania)

Leitura: 1Jo 3,11-21

Na leitura de hoje, o tema “praticar a justiça e não pecar” (vv. 7-10, leitura de ontem) concretiza-se para “amar e não odiar o irmão”.

Esta é a mensagem que ouvistes desde o início: que nos amemos uns aos outros, não como Caim, que, sendo do Maligno, matou o seu irmão. E por que o matou? Porque as suas obras eram más, ao passo que as do seu irmão eram justas. Não vos admireis, irmãos, se o mundo vos odeia (vv. 11-13).

Amar é o mandamento novo de Cristo (Jo 13,34), não tal novo porque é o que a comunidade anuncia “desde o início” (v. 11; 2,7). A única referência ao AT nesta carta é o de Caim que matou seu irmão (Gn 4,1-8) porque este protótipo (primeiro “homicida”) ilustra bem as oposições entre trevas e luz (2,8-10), entre o mundo mau e os crentes, entre o ódio homicida e o amor fraterno (vv. 13-15). O ser humano é arrastado pelo poder a que se entrega (cf. Gn 4,6s). O mundo não só não entende, mas também odeia.

Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte. Todo aquele que odeia o seu irmão é um homicida. E vós sabeis que nenhum homicida conserva a vida eterna dentro de si (vv. 14-15).

O ódio é uma forma incipiente de homicídio (cf. Mt 5,21; Jo 8,44) e pode conduzir ao homicídio consumado. Ao ser inimigo da vida alheia, confina a este mundo a própria, não vai à vida eterna, mas “permanece na morte”. Enquanto no Ev de Jo a “vida eterna” é prometida a quem crê (cf. Jo 5,24), na carta, o critério é a fé vivida, ou seja, a prática do amor.

Nisto conhecemos o amor: Jesus deu a sua vida por nós. Portanto, também nós devemos dar a vida pelos irmãos. Se alguém possui riquezas neste mundo e vê o seu irmão passar necessidade, mas, diante dele fecha o seu coração, como pode o amor de Deus permanecer nele? (vv. 16-17).

Conhecemos o amor porque “Jesus deu sua vida (lit. alma, quer dizer voluntariamente) por nós”, portanto devemos amar também e “dar a vida pelos irmãos” (cf. Jo 15,12-13; 10,11.15.17-18). O amor para ser autêntico deve traduzir-se em atos concretos e sociais (cf. Mc 10,21-30p; Lc 10,33; Tg 2,14-17), mas só será verdadeiro se prolongar nas vidas o amor de Deus em Cristo (v. 16; cf. Mt 6,1-4). Os profetas do AT criticavam duramente um culto sem compromisso social (Am 2,6-8; 3,13-4,6; 5,21-27; 8,4-8 etc.). Lc salienta a misericórdia para com os pobres (cf. Lc 1,52s; 6,20-26; 16,19-31; cf. At 2,44s; 4,32.34-37)

Filhinhos, não amemos só com palavras e de boca, mas com ações e de verdade! Aí está o critério para saber que somos da verdade e para sossegar diante dele o nosso coração, pois, se o nosso coração nos acusa, Deus é maior que o nosso coração e conhece todas as coisas. Caríssimos, se o nosso coração não nos acusa, temos confiança diante de Deus (vv. 18-21).

Tal amor ao próximo e necessitado é, portanto, expressão da fé, da verdade no homem (cf. 2 Jo 1-2). Amar assim é “ser da verdade” (v. 19; cf. Jo 18,37).

Quem quer amar como Cristo nos amou, percebe que nem sempre o consegue igual a Cristo, e sua consciência acusa: “Pois, se nosso coração nos acusa, Deus é maior que nosso coração e conhece todas as coisas” (v. 20; cf. Jo 16,13; 1Cor 4,4; Ef 1,18). Muitos exegetas antigos e Calvino veem nisso a severidade do soberano juiz, que conhece nossos pecados melhor que nós. Mas como poderá tal certeza “sossegar diante dele nosso coração” (v. 19)? Para Lutero e muitos biblistas modernos, Deus é maior que nosso coração por sua misericórdia (cf. Lc 1,49-50). Se praticarmos verdadeiramente o amor, Deus, apesar de nossos pecados, saberá discerni-los em nosso coração (Jo 21,17); cf 1Pd 4,8: “O amor cobre uma multidão de pecados” (cf. Lc 7,47).

 

Evangelho: Jo 1,43-51

O início do evangelho de hoje, ”no dia seguinte” foi mudado para “naquele tempo”. Este costume litúrgico desfez o esquema de uma semana, que o evangelista construiu com anotações cronológicas de uma semana que se conclui no casamento de Caná (cf. vv. 29.35.42; 2,1). Começa outro dia na atividade vocacional de Jesus.

Os primeiros três discípulos foram chamados por outras pessoas para encontrar/seguir Jesus (cf. vv. 33-42, evangelho de ontem):  João Batista indicou Jesus “Cordeiro” a dois de seus discípulos, um ficou anônimo (o autor do evangelho, o “discípulo amado” (21,20-24; cf. 13,23-25; 18,15; 19,26s; 20,2-8; 21,7), outro, André, avisou seu irmão Simão a quem Jesus logo mudou o nome para Cefas (Pedro).

(Naquele tempo) Jesus decidiu partir para a Galiléia. Encontrou Filipe e disse: “Segue-me”. Filipe era de Betsaida, cidade de André e de Pedro (vv. 43-44).

Jesus decide partir para a Galileia (nos outros evangelhos só voltou para lá depois que João Batista foi preso, cf. Mc 1,14p). Lá ele mesmo chama agora um homem com uma única palavra: “Segue-me” (21,19; cf. Mc 1,17; 2,14). Esta vocação é semelhante nos outros evangelhos (Mc 1,16-20p; 2,13s), porém mais breve ainda: Jesus toma iniciativa quando “encontrou Filipe” e só diz: “Segue-me”. Em vez de falar ainda da profissão de Filipe (pescador ou cobrador de impostos?), o quarto evangelista informa sobre a origem dele. Era da mesma cidade de Pedro e André, “Betsaida”, onde o rio Jordão emboca no mar da Galileia.

Talvez por seu nome grego (Filipos quer dizer quem gosta de cavalos), Filipe é ligado aos gregos; reaparecerá em 6,5-7 (alimentar a multidão na Decápole); 12,21s e 14,8s (“ver” Jesus e o Pai)

Filipe encontrou-se com Natanael e lhe disse: “Encontramos aquele de quem Moisés escreveu na Lei, e também os profetas: Jesus de Nazaré, o filho de José” (v. 45).

Filipe, por sua vez chama Natanael que era de Caná (v. 45; 21,2), onde acontecerá o próximo episódio (2,1-12). Parece que Jesus foi convidado ir aos lugares de origem dos discípulos (a Betsaida por Pedro e André; e depois a Caná por Natanael em 2,1).

Na lista dos apóstolos nos evangelhos sinóticos (Mt 10,3; Mc 3,18; Lc 6,14) não encontra-se o nome Natanael, mas Filipe é o quinto nome, Bartolomeu é o sexto. Provavelmente devido a esta sequência, a tradição da Igreja identificou Bartolomeu com Natanael.

Como André em v. 41 (“encontramos o messias”), também Filipe convida logo com uma profissão de fé: “Encontramos aquele de quem Moises escreveu na lei e também os profetas, Jesus de Nazaré, o filho de José” (cf. Dt 18,15-18; Is 7,14; 9,6; 53; Jr 23,5; Ez 34,23).

Diferente de Mc 1,9, o quarto evangelista fala de Jesus histórico só aos poucos (porque está interessado mais na origem divina de Jesus): o nome (“Jesus Cristo”) é mencionado apenas no final do hino em v. 17; aqui em v. 45, a cidadezinha “Nazaré” (que aparecerá no título da cruz em 19,19) e o nome completo “filho de José” (cf. 6,41). Falará da “mãe” de Jesus em 2,1-12 e 19,25-27, mas sem dizer o nome dela “Maria”. Mc falou de Maria, mas não de José (Mc 6,3). João falou da região “Galileia” em v. 43, mas só em 8,41 dirá que Jesus veio de lá. O lugar de nascimento “Belém” aparece apenas num questionamento em 7,41.

Natanael disse: “De Nazaré pode sair coisa boa?” Filipe respondeu: “Vem ver!” (v. 46).

O preconceito de Natanael a respeito do povo da roça de Nazaré é geral (cf. Jo 7,40-52; Lc 4,15-29): “De Nazaré pode sair coisa boa?” Filipe convida: “Vem ver” (v. 46; como Jesus convidou no v. 39). O conhecimento de Jesus nasce do encontro com ele e da escuta da sua palavra. Natanael parece desconfiado, mas sério na procura; como Tomé diante da ressurreição (20,24-29).

Jesus viu Natanael que vinha para ele e comentou: “Aí vem um israelita de verdade, um homem sem falsidade”. Natanael perguntou: “De onde me conheces?” Jesus respondeu: “Antes que Filipe te chamasse, enquanto estavas debaixo da figueira, eu te vi” (vv. 47-48).

Jesus conhece misteriosamente todos que dele se aproximam (v. 48; 2,24-25; 4,15-19). O significado da figueira pode ser uma alusão rabínica ao estudo das Escrituras (cf. Os 9,10; 1Rs 5,5).

Natanael respondeu: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel”. Jesus disse: “Tu crês porque te disse: Eu te vi debaixo da figueira? Coisas maiores que esta verás!” E Jesus continuou: “Em verdade, em verdade, eu vos digo: Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem” (vv. 49-51).

A figura de Natanael deve ser entendida sobre o pano de fundo do patriarca Jacó-Israel (cf. Gn 28; 32; Os 12): o nome de “Jacó” soa ao ouvido hebreu popular como “falso, traiçoeiro”; ele viveu fiel ao seu nome armando ciladas para seu irmão (Gn 27,36; Os 12,4) e por isso tinha de fugir. A caminho, numa visão noturna contemplou uma escada ou rampa, que uniu terra e céu e pela qual subiam e desciam mensageiros divinos (Gn 28,10-22). Voltando para se reconciliar com seu irmão, em nova visão noturna ele lutou com Deus, que lhe mudou o nome para “Israel” (Gn 32,29). Natanael é “israelita de verdade, um homem sem falsidade” (v. 47).

Logo ele reconhece Jesus como messias (rei), “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és rei de Israel” (v. 49; cf. 2Sm 5,1-3; 7,14; Sl 2,7; Mc 1,1.10 etc.; Mt 3,17; 4,2 etc.), depois de André (v. 41) e Filipe (v. 45) e bem antes da confissão de fé de Pedro e de Marta (6,69; 11,27; cf. Mt 14,33;16,16p), mas supera as anteriores porque Natanael usa o termo chave em João: “Filho de Deus” (cf. vv. 12.18.34 etc.).

No v. 51, Jesus responde com uma revelação dirigida ao grupo: “vereis o céu aberto”. O próprio Jesus é a verdadeira rampa que une o céu e a terra (“Filho de Deus”, “Filho do Homem”, cf. Dn 7,13s), o mediador das mensagens celestes e orações humanas, “a palavra que se fez carne” (1,14).

Natanael deve “ver” o Pai agir e habitar no Filho (cf. 14,9). Natanael-Bartolomeu será unido a ele inclusive na paixão, será humilhado, exaltado na cruz e introduzido na glória de Deus (segunda a tradição sofreu o martírio na Armênia). “Vem ver”; quem vem a Jesus, “verá coisas maiores”, verá o céu aberto e subirá com aquele que desceu do céu, o Filho enviado do Pai (cf. 3,13-15; 6,37-38; 14,1-9; cf. At 7,56; Mc 14,62p).

Há um canto de Pe. Marcelo Rossi que lembra este trecho bíblico: “… anjos subindo e descendo sobre o altar.”

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