07 de Novembro de 2018, Quarta-feira: Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!” (v. 33)

Leitura: Fl 2,12-18

Após ter apresentado o esvaziamento de Jesus Cristo (vv. 6-11), Paulo convida a comunidade a fazer o mesmo. Mas, para isso, é preciso comportar-se de maneira condizente, tornando-se íntegros e puros, sem defeito algum.

Meus queridos, como sempre fostes obedientes, não só em minha presença, mas ainda mais agora na minha ausência, trabalhai para a vossa salvação, com temor e tremor. Pois é Deus que realiza em vós tanto o querer como o fazer, conforme o seu desígnio benevolente (vv. 12-13).

Paulo começa a tirar as consequências: uma imediata, a obediência a ele, ainda que ausente, e outra mais geral, esforçar-se para salvação

Cristo deu o supremo exemplo da obediência a Deus (v. 8). A obediência associa-se à fé (Rm 1,5; 16,16). A fé vem de ouvir a palavra e acolhê-la, obedecê-la. Paulo mesmo vive na obediência, cumprindo a sua missão (cf. 3,17; 4,9).

Outra consequência, mais geral, enuncia e resume o mistério da revelação entra a ação do homem e a de Deus. A “salvação” começada não está consumada: por isso, os fiéis deverão trabalhá-la escrupulosamente, ou seja, “com temor e tremor”, par de termos conhecido na Bíblia (Is 19,16; Sl 2,11s) e no judaísmo, que exprime a fraqueza experimentada diante do Deus vivo e santo que manifesta a sua exigência pela obediência de Cristo (1Cor 2,3; 2Cor 7,15; Ef 6,5). Não es trata de uma ameaça, mas da consciência de que a salvação integral não é algo que se consegue de passagem, mas com atenção e cautela para não falhar.

Contudo, é Deus quem atua no e pelo homem (cf. Is 26,12: “Todos os nossos empreendimentos tu os realizas para nós”; Sl 90,17: “Consolida a obra de nossas mãos”, e o princípio formulado em Jo 15,5). O encadeamento das duas frases é paradoxal: agi (“trabalhai”), já que é Deus quem age (“realiza”). A vontade e a atividade dos cristãos incorporam-se na obra de Deus (1,6; cf. 1Cor 15,58), comandada por seu plano de salvação em Cristo, “conforme o seu desígnio benevolente” ou: à medida da vossa vontade.

Fazei tudo sem reclamar ou murmurar para que sejais livres de repreensão e ambiguidade, filhos de Deus sem defeito, no meio desta geração depravada e pervertida, na qual brilhais como os astros no universo (vv. 14-15).

Aqui combina ideias, expressões ou reminiscências do AT: “murmurar” (alusão provável à falta de fé dos hebreus no deserto: Ex 15,24; 16,2 etc., cf. 1Cor 10,10; 1Pd 4,9), “geração depravada e pervertida” (Dt 32,5; cf. Mt 12,39; At 2,40) “brilhais como os astros” (Dn 12,3; cf. Mt 13,43) salientando o contraste entre luz e trevas (cf. Gn 1,14-16; Mt 5,14). Essas três qualidades da vida cristã no mundo têm uma ressonância escatológica, no dia da vinda do Senhor (parusia, cf. 1,10; 2,16; cf. 1Ts 3,13; 5,23).

 

Conservai com firmeza a palavra da vida. Assim, no dia de Cristo, terei a glória de não ter corrido em vão, nem trabalhado inutilmente (v. 16).

“A palavra da vida”, cf. a profissão de fé por Pedro em Jo 6,68. Para o Paulo, o testemunho da comunidade é um motivo de glória. Em 1,26 ele disse que a sua presença faria crescer a glória da comunidade (cf. 1Ts 2,19). O helenista Paulo gosta de metáforas esportivas: “a glória de não ter corrido em vão”. O “trabalho” apostólico é comparado ao esforço do atleta no estádio (Gl 2,2; 1Cor 9,24-26; 2Tm 4,7; At 20,24). Paulo conserva uma inquietação estimulante porque sabe que a sua obra será finalmente submetida ao juízo de Deus. Mas adiante ele aplicará a imagem da corrida à vida do cristão (3,12-16).

E ainda que eu seja oferecido em libação, no sacrifício que é o sagrado serviço de vossa fé, fico feliz e alegro-me com todos vós. Vós também, alegrai-vos pelo mesmo motivo e congratulai-vos comigo (vv. 17-18).

Paulo transpõe a linguagem do culto à vida cristã e à missão apostólica. Já antes convidou a comunidade comportar-se de maneira condizente, tornando-se íntegros e puros, “sem defeito” (v. 15). É uma alusão ao “sacrífico” do cordeiro no AT, que devia ser puro e sem mancha (Ex 12,5; Lv 1,3.10 etc.). A mesma metáfora do sacrífico é mantida aqui na comparação sobre a possível condenação de Paulo que está preso e encara a morte como gesto litúrgico de participação na oferta do próprio Cristo (4,18; Rm 1,9). “Libação” seria derramar o sangue por Cristo (2Tm 4,6).

Paulo faz do uso das libações derramadas sobre as vítimas nos sacrifícios, uma aplicação metafórica ao culto espiritual dos novos tempos; o sangue derramado na sua condenação à morte viria juntar-se ao sacrifício que entre os cristãos é constituído pelo “serviço da fé” (cf. 3,3; 4,18; Rm 1,9).

“O serviço da (vossa) fé”: A tradução da nossa liturgia optou pela a própria fé dos filipenses com todos os seus eleitos, mas pode significar também a vida de Paulo consagrada ao serviço deles (ou ambas as coisas juntamente?). Este serviço é assimilado a um “sacrifício” ao qual se acrescenta em oferenda, segundo um rito comum tanto entre os judeus como entre os pagãos, a “libação” do sangue derramado da vítima, aqui pelo apóstolo, que pensa em sua condenação à morte (cf. 2Tm 4,6). O vocabulário cultual é espiritualizado: ao anunciar o Evangelho, Paulo realiza um dos atos do culto em espírito (Rm 12,1; cf. Jo 4,23), que é o da nova Aliança (cf. 3,3; 4,18).

“Fico feliz e alegro-me” Mesmo pensando na possiblidade da sua morte próxima como mártir (cf. 1,20-23), Paulo não perde a “alegria” porque confia na sua união com Cristo após a morte (cf. Rm 8,35-39), e convida a comunidade a mesma alegria que caracteriza esta carta (1,4.18.25; 2,2.17-18.28-29; 3,1; 4,1.4.10).

 

Evangelho: Lc 14,25-33

Depois das parábolas sobre convites a banquetes (cf. vv. 1-24), Lc escreve sobre a renúncia no chamado, sobre umas exigências de vocação que se pode juntar com as três frases de 9,57-62. Jesus caminha para Jerusalém a fim de padecer e morrer na cruz. Nesse contexto soam as condições radicais para o seguimento.

Grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-se, ele lhes disse: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo (v. 26).

Depois do banquete na casa do fariseu, “grandes multidões acompanhavam” de novo Jesus. Jesus dirige-se a elas, ou seja, a todos os discípulos, presentes e futuros. Muitos querem fazer parte do banquete do reino, mas as exigências do seguimento não são pequenas (cf. 13,22-24). O acesso ao banquete do Reino de Deus, do qual se falava antes (vv. 15-24, evangelho de ontem), está condicionado ao seguimento de Jesus. Ele não é só o fim da lei judaica (Rm 10,4), mas questiona também os laços naturais da família.

“Desapegar”, lit. “odiar” seu pai e sua mãe, é um exagero do estilo hebraico (cf. 9,60; Mt 5,29s). Como a língua do AT não tem comparativo, este verbo significa aqui “amar menos” (cf. Gn 29,30s.33; Dt 21,15s; Jz 14,16; Is 60,15; Ml 1,3; Lc 16,13). Jesus não exige ódio, mas “desapego” completo e imediato (cf. 9,57-62).

A Bíblia do Peregrino (p. 2506) comenta: Os vínculos puramente humanos de família e o interesse pessoal interferem muitas vezes e contrastam com o chamado de Jesus. Por isso os seguidores ou discípulos de Jesus têm que rejeitar, “odiar” esses impedimentos (cf. Dt 33,9). Se não está disposto a isso, não reúne as condições para rematar o projeto.

Na bênção a Levi, Moisés declarou: “Disse a seus pais: Não faço caso de vós; a seus irmãos: Não vos reconheço; a seus filhos: Não vos conheço”, porque antepuseram o mandamento de Deus (Dt 33,9, referindo-se aos idólatras do bezerro de ouro em Ex 32,26-29).

Diferentemente de Mt 10,37, Lc menciona aqui o amor da “mulher” que também deve ceder a prioridade ao amor do Cristo; assim o evangelista exprime sua tendência ascética (cf. v. 20; 18,29; cf. 20,35s; 1Cor 7).

Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo (v. 27).

Este desapego à família significa renúncia e sacrifício; faz parte do sofrimento “por causa de mim” e de carregar a cruz “cada dia” (9,23-24p). O discípulo deve estar disposto a seguir Jesus até a morte em Jerusalém. Esta renúncia do discípulo inclui também os bens materiais (v. 33). O apego à família é emocional, para superá-lo precisa usar também a razão como mostram as duas parábolas da torre e da guerra, ambas próprias de Lc.

Com efeito: qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário, ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: ‘Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!’ (vv. 28-30).

Os inícios interrogativos “qual de vós” são frequentes nas parábolas de Lc (cf. 11,5; 14,28.31; 15,4.8; 17,7; cf. 11,11; 12,25s; 14,5). Aqui pode se tratar de uma dessas torres que se construíam nos pomares para vigiar ou como abrigo contra o mau tempo (Is 5,2), mais sólidas e cômodas que uma cabana (Is 1,8). O seguimento de Jesus não é coisa fácil, é preciso pensar, refletir e planejar bem, se pode assumi-lo para não fracassar e tornar-se ridículo depois.

Ou ainda: Qual rei que, ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar as condições de paz (vv. 31-32).

Em 2Sm 8,9s, temos um caso concreto de um rei prudente que procura negociar a paz.

A Bíblia do Peregrino (p. 2507) comenta: As duas parábolas insistem no conhecimento das condições e na plena consciência com que se deve tomar a decisão de seguir Jesus. Diferente parece o caso dos pescadores e de Levi, a quem uma palavra soberana de Jesus ilumina e move (5,1-11.27-28); ou o caso de Paulo, cegado e iluminado (At 9). Talvez se inspirem nas normas de prudência que a sabedoria ordena: “Com sensatez constrói-se uma casa… Com estratagemas ganha-se a guerra” (Pr 24,3.6).

Lc gosta de pares de parábolas (cf. 5,36-38; 13,18-21; 14,28-32; 15,4-10; cf. 13,1-5; talvez 11,5-8 estava junto com 18,2-5). Aqui, as duas são um exemplo de refletir antes de um empreendimento importante, sem dúvida o de engajar-se no seguimento de Jesus. Representam uma parte dos destinatários greco-romanos de Lc: empresários, funcionários públicos, soldados (cf. as categorias em 3,10-14; 8,3; 19,1-10 etc.).

Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!” (v. 33)

Lc não parece estabelecer distinção entre os discípulos: “qualquer um de vós”. A advertência vale para todos.

Este v. retoma a conclusão dos vv. 26-27 e dá uma aplicação nova às duas parábolas precedentes. Faz delas um apelo a “renunciar” a todos os bens próprios. É um ensinamento predileto de Lc (12,13-34; 16,1-13; 18,24-30; cf. 5,11.28; 18,22).

Esta conclusão contém um paradoxo na aplicação: Para construir ou fazer guerra é preciso contar com meios, mas, para seguir Jesus, o essencial é não possuí-los. Os discípulos não precisam de meios materiais, mas de espirituais (cf. a missão deles em 9,1-3; 10,4). O rei “mais forte” é Deus ou Jesus que vem ao nosso encontro (parusia); é preciso “reconciliar-se” com ele (cf. 3,16s; 2Cor 5,19-20). Sem Deus, o nosso projeto humano não haverá êxito (cf. a torre de Babel em Gn 11).

O que vale como moral das parábolas vale também para o seguimento de Jesus e para a formação vocacional nos seminários. É preciso discernir a própria vocação e usar a razão para a maior glória de Deus.

O site da CNBB comenta: O nome de cristão é motivo de orgulho para muita gente e muitos usam esse nome e fazem propaganda do fato de serem cristãos. Mas muitos são cristãos de apenas de nome e de conversa, porque quando surgem as exigências da vivência coerente com o evangelho, são os primeiros a recuarem e a ficarem teorizando formas de religião que justifiquem a sua incoerência evangélica e outros valores nada cristãos que marcam as suas vidas. A exigência de Jesus é clara: renunciar a todos os valores que são contrários ao evangelho e fazer do seu seguimento o centro da própria vida. O resto é conversa fiada de quem quer usar do discurso para legitimar os próprios erros.

 

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