08 de abril de 2018 – Tempo de Páscoa 2º Domingo Ano B

Tempo de Páscoa 2º Domingo Ano B

1ª Leitura: At 4,32-37

Lucas, o autor dos At, nos apresenta um segundo retrato ideal da comunidade (o primeiro em 2,41-47), desta vez destaca a comunhão dos bens (cf. Lc 12,33; 18,22; Jr 12,6).

A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava como próprias as coisas que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum. Com grandes sinais de poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E os fiéis eram estimados por todos. Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas, vendiam-nas, levavam o dinheiro, e o colocavam aos pés dos apóstolos. Depois, era distribuído conforme a necessidade de cada um (vv. 32-35).

“A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma” (v. 32). Eles tinham em comum a fé no ressuscitado, as orações, a alegria e também os bens. Quando há unanimidade tal, o ideal da partilha dos bens é possível.

“Ninguém considerava como próprias as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum… Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas vendiam-nas, levaram o dinheiro e o colocaram aos pés dos apóstolos” (vv. 32.34.35a).

O ideal correspondia a sonhos ou utopias de filósofos pagãos, bem divulgadas na época. Quanto à finalidade, “que não haja pobres na comunidade”, responde ao ideal da legislação deuteronomista (Dt 15,1-11). É coerente a atitude de Lucas com respeito a riquezas e bens (Lc 6,24; 9,3; 10,4; 12,16-21; 16,19-31). Segue o exemplo de Jesus, vivido também pelos discípulos.

Na execução real, Jesus não tinha exigido o desprendimento total de todos (cf. Lc 19,1-10, Zaqueu). Na comunidade, o desprendimento parcial ou total é livre; a venda de posses é feita ocasionalmente. Grupos limitados e de forma livre têm perpetuado na Igreja o ideal da comunhão de bens (mosteiros, conventos, novas comunidades eclesiais). A experiência da comunidade em Jerusalém não deu resultado e, por outros motivos, tiveram de recorrer a coletas em outras igrejas (1Cor 16,1-3; 2Cor 8-9).

A continuação do texto (que nossa leitura omite) narra dois exemplos contrapostos, um bom e um mal, ilustrando o princípio: Barnabé vendeu um campo e “foi depositar o dinheiro aos pés dos apóstolos” (vv. 36-37). Depois o exemplo sombrio da desonestidade e morte do casal Ananias e Safira (5,1-11) mostra a realidade: Nem tudo na comunidade primitiva era ideal, mas a tentação (satanás) entrou lá também, como no jardim Éden e entre os doze apóstolos.

2ª Leitura: 1Jo 5,1-6

As leituras dos domingos pascais do Ano B são tiradas da primeira carta de João (cf. as leituras de 27 de dezembro até o sábado após epifania). A leitura de hoje conclui o tema do amor fraterno (cf. 2,7-11; 3,14-18.23; 4,7-21) relacionando-o com a fé e o amor a Deus.

Todo o que crê que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus, e quem ama aquele que gerou alguém, amará também aquele que dele nasceu. Podemos saber que amamos os filhos de Deus, quando amamos a Deus e guardamos os seus mandamentos (5,1-2).

Nosso amor por Deus é mera ilusão, se não for por uma participação em seu amor e não se exprimir no serviço aos seres humanos (cf. Mt 25,40,45). Pela fé em Jesus Cristo, Filho de Deus (v. 15), o homem “nasceu de Deus“, tornou-se filho de Deus (3,1; cf. Jo 1,12-13) e, portanto, irmão de todos. O amor a Deus (dimensão vertical) e o amor aos irmãos (dimensão horizontal) estão vinculados (v. 2; cf. Cl 3,14; 1Cor 13; Mt 22,34-40p). O amor aos irmãos decorre do amor a Deus e está enraizado na fé.

Pois isto é amar a Deus: observar os seus mandamentos. E os seus mandamentos não são pesados, pois todo o que nasceu de Deus vence o mundo. E esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé (5,3-4).

O critério do amor autêntico a Deus é o cumprimento da sua vontade, ou seja, a observância dos seus “mandamentos” os quais prescrevem o amor fraterno (3,23; Jo 13,34s; 14,15.21; 15,10.12s.17; Mt 22,40p; Rm 13,9; Gl 5,14). Estes mandamentos “não são pesados” (cf. Dt 30,11; Mt 11,30), sobretudo porque além da razão humana que deve reger a ética e as leis, temos a motivação da fé que nos dá a força adicional para “vencer o mundo” (as tentações, o anticristo, cf. 2,13-14; 4,4; Jo 16,33; Mt 4,1-11; 12,31; 14,30; 16,33; 2Tm 3,12; Rm 8,37; Ap 2,7-11.14.26; 3,5.12.21; 12,11; 21,7).

Depois da linha do crer, amar, cumprir (vv. 1-3) e da linha do amor (ao Pai, ao Filho de Deus, aos filhos de Deus, vv. 1-2), lemos agora o processo: o mundo se vence com fé (vv. 4-5), a fé se apoia no testemunho (vv. 6-11), o testemunho promete vida (vv. 11-13).

Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus? (v. 5).

Já em v. 4, a fé foi declarada “a vitória que venceu o mundo” (cf. Jo 16,33). A fé é confiança e adesão a Deus que é maior do que mundo e maior do que o Maligno no mundo (cf. 2,14; 4,4; Mt 4,1-11; 12,31; 14,30; 16,33; 2Tm 3,12; Rm 8,37; Ap 2,7-11.14.26; 3,5.12.21; 12,11; 21,7).

Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo. (Não veio somente com a água, mas com a água e o sangue). E o Espírito é que dá testemunho, porque o Espírito é a Verdade (v. 6).

Qual fé vence o mundo (cf. 4,1: “não acreditais em qualquer espírito, mas examinai”)? O autor da carta especifica a fé certa recordando o batismo de Jesus e sua morte na cruz (do seu lado aberto pela lança do soldado “saiu sangue e água”, Jo 19,34), escrevendo contra uma heresia (doutrina errada), que dissociava um Cristo glorioso e espiritual (que se revelou na água do rio Jordão e no Espírito) do homem Jesus, histórico, nascido na carne e sofrido no sangue da cruz (cf. 4,1-6; 2,18-22). Esta heresia chegou a afirmar que Cristo não sofreu, mas só estava parecendo para as pessoas (hoje, os muçulmanos acreditam assim a respeito de Jesus; talvez seu profeta Maomé tenha conhecido o cristianismo através desta seita herética).

A fé que vence o mundo (a realidade sem Deus; os falsos profetas e os anticristos, cf. 4,1-6) não é uma espiritualidade desencarnada. É a fé em Deus que se encarnou em Jesus Cristo (Jo 1,14; cf. 1Cor 12,3). No batismo de Jesus, Deus declarou este homem “Filho de Deus” (Jo 1,32-34; cf. Mc 1,11p). O Espírito dá testemunho disso (em forma de pomba na hora do batismo, mas durante toda atividade de Jesus, porque “permaneceu” sobre ele (cf. Jo 1,33). Na cruz, Jesus entregou o seu Espírito, morreu de fato (não só pela aparência, mas confirmado pela lança do soldado) e do seu lado saiu “sangue e água” (Jo 19,30.34). Na sua ressurreição, mostrou suas chagas e deu o Espírito Santo aos apóstolos (evangelho de hoje), este mesmo Espírito que Jesus prometeu na última ceia chamando-o paráclito (defensor, advogado, consolador) ou “Espírito da Verdade”, porque dará continuidade com sua presença e obra (Jo 14,16s.26; 15,26; 16,7-15). “O Espirito é verdade”, como também o Pai é a verdade que Jesus releva e testemunha (Jo 8,32; 18,37). O próprio Jesus também é a verdade (Jo14,6; cf. 4,23), enquanto Pilatos (representante do mundo) não tem nem ideia da verdade (Jo 18,38). A verdade é divina e dá vida, a mentira é diabólica e tira a vida (cf. 4,1-6; Jo 8,44; Gn 3,1-5).

Não só o Espírito, o Pai também “dá testemunho” em favor de Jesus (vv. 9-10; Jo 5,32.37). Nos vv. seguintes (omitidos pela nossa leitura de hoje), as três testemunhas (segundo o princípio de Dt 19,15; Nm 35,30), “o Espírito, a água e o sangue” dão um único testemunho (v. 7), o de que Deus nos revela sua vida divina e a comunica (v. 11), na palavra e nos sacramentos. A Bíblia latina (Vulgata) a partir do século IV acrescentou entre os v. 7 e v. 8 o seguinte: “Três são os que dão testemunho no céu, o Pai, a Palavra e o Espírito, e os três estão de acordo;” certamente um reflexo do dogma da Trindade debatido naquele século.

 

Evangelho: Jo 20,19-31

O evangelho de hoje apresenta a aparição de Jesus ressuscitado diante dos discípulos “no primeiro dia da semana”, e depois diante de Tomé “oito dias depois”, ou seja, novamente num dia de domingo.

Nos dois domingos, Jesus apresenta as marcas da crucificação nas mãos e no lado. Uma irmã polonesa, Faustina Kowalska (1905-1938), teve uma visão de Jesus mostrando o mesmo gesto e incentivando-a a divulgar a misericórdia divina. Por isso, o seu conterrâneo, o santo papa João Paulo II, canonizou em 2000 a irmã e declarou este domingo o da “Divina misericórdia”.

O quarto evangelho narra que “no primeiro dia da semana”, Maria Madalena “viu” o túmulo vazio (vv. 1-2; cf. Mc 16,1-7); Pedro e o outro discípulo, que Jesus amava, verificaram o túmulo (vv. 3-10; em Lc 24,12, Pedro sozinho); o discípulo amado (suposto autor do evangelho, cf. 21,24) “viu e acreditou”. Em seguida, o próprio Jesus ressuscitado apareceu a Madalena (vv. 11-18). Ela foi anunciar aos discípulos: “Vi o Senhor” (v. 18). Como os discípulos reagiram a este anúncio pela mulher? Jo nos diz nada a respeito (cf. Lc 24,11).

Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: “A paz esteja convosco” (v. 19).

Como em Lc 24, a aparição diante dos discípulos acontece em Jerusalém e é a segunda no mesmo dia, “o primeiro da semana” (futuramente chamado pelos os cristãos: “domingo”, dies dominicus = dia do Senhor).

Os discípulos tinham fechados “as portas do lugar onde se encontravam” (pela tradição era o lugar da última ceia, o cenáculo no andar superior, cf. Lc 22,11s; At 1,13) “por medo dos judeus”, quer dizer, das autoridades judaicas que condenaram Jesus, não do povo em geral (os próprios discípulos eram judeus). Mas o Ev de Jo generaliza, sua comunidade estava sendo perseguida pelos “judeus” que excluíram os cristãos da sinagoga no ano 90 d.C. (9,22; 16,2).

Mas o Cristo ressuscitado acabou de vencer a morte; o seu corpo não pode ser barrado pelas barreiras deste mundo, nem por uma pedra no túmulo, nem por portas fechadas que aqui servem para demonstrar mais o poder sobrenatural do corpo do ressuscitado.

Como em Lc 24,36, Jesus pronuncia a saudação costumeira da paz (“shalôm alehem”) que só na boca do ressuscitado ganha sentido pleno (vv. 19.26; cf. 14,27): ele venceu o mundo com todos seus inimigos e medos (16,33; cf. 1Jo 5,4s).

Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor (v. 20).

O relato em Lc 24,36-42 parece ter servido de modelo: a aparição de Jesus diante dos discípulos no mesmo dia e a saudação de paz; como primeira prova mostra as mãos (em Jo também o lado, cf. 19,34), para não ser uma ilusão, alucinação, fantasma ou espírito desencarnado. Como segunda prova, come um pedaço de peixe assado (Lc 24,42s); em Jo, a segunda prova será o convite a Tomé de tocar nas marcas dos pregos, vv. 24-29 (e o peixe assado encontramos no anexo de Jo 21,9-14).

Jesus identifica-se com as marcas da cruz. O ressuscitado é o crucificado, não é outra pessoa nem outro corpo, nem apenas a alma. Como ressuscitado, Jesus levou suas chagas para eternidade, fazem parte da sua identidade, como a cruz é seu símbolo que virou a bandeira da vitória (cf. 1Cor 1,23s).

A reação dos discípulos é a alegria “por verem o Senhor”; agora eles sabem que é o próprio Senhor. Como ele havia prometido em 16,16-20, agora voltou depois de uma breve separação e dá a alegria. O medo e a tristeza dão lugar a alegria (cf. Mc 16,8; Mt 28,8), mas ainda continuam portas fechadas na comunidade da Igreja que Jesus vai superar (cf. v. 26).

Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. E depois de ter dito isto, soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos” (vv. 21-23).

No Ev de Jo, Jesus é o Enviado (missionário) do Pai (3,34; 5,23s etc.; cf. 9,7), agora o Filho envia os discípulos no mesmo movimento (o Filho fez o que viu do Pai, os discípulos devem fazer o que viram e ouviram de Jesus, cf. 5,19).

Em Jo acontece tudo de vez: sua Páscoa já é Pentecostes. Nos outros evangelistas, acontece mais em etapas: a aparição (“ver Jesus”, testemunho ocular), o envio (missão da Igreja) e o dom do Espírito (capacidade para esta missão; cf. At 1-2). Como o Pai enviou seu Filho, Jesus ressuscitado envia os apóstolos e dá o mesmo Espírito de Deus, o Espírito Santo.

Dando o Espírito, Jesus atua como o Pai na criação do ser humano (Adão), formado de barro: “Soprou nas narinas, e Adão tornou-se um ser vivo” (Gn 2,7). O Espirito vivificante renova a Igreja, a ressurreição equivale uma nova criação (cf. Ez 37,1-14; 2Cor 5,17; Rm 8,11; cf. o significado do “primeiro dia da semana”, aludindo ao início da criação, da luz: Mt 28,1p e Gn 1,3-5).

Assim será a missão dos apóstolos igual a de Jesus: não condenar, mas perdoar, salvar (3,17). Em Mt 28,19 é para batizar e ensinar (com o batismo, os pecados são perdoados, cf. At 2,38; Lc 24,27). Perdoar pecados é privilégio divino (Mc 2,7p), mas como enviados de Jesus e com o Espírito divino, os apóstolos têm poder para isso. E quando não perdoarem, não haverá perdão sem eles? Deus é sempre maior, mas eles devem se empenhar para transmitir e viver este perdão e a reconciliação de maneira radical como fez Jesus, até entregar sua própria vida como Cordeiro que tira o pecado do mundo (1,29).

Podemos comparar estes vv. com a terceira parte dos credos da missa: o Espírito Santo e suas obras: Igreja e comunhão, batismo e remissão dos pecados, ressurreição e nova vida (eterna). O Espírito de Deus e de Jesus simboliza paz (a pomba em Mc 1,10p; cf. Is 42,1-4). Paz e nova vida só haverá, se tiver o perdão e não continuar a vingança (cf. a dificuldade de reconciliar famílias desunidas ou nações inteiras em guerra, p. ex. no Oriente Médio).

Tomé, chamado Dídimo, que era um dos doze, não estava com eles quando Jesus veio (v. 24).

“Tomé, chamado Dídimo”, era um dos doze apóstolos. Dídimo é tradução grega do nome hebraico Tomás (=Tomé) e significa “gêmeo”. Como os outros apóstolos, deve ser natural da Galileia, provavelmente pescador (21,2), embora sua dúvida no evangelho de hoje o faça parecer com o cético moderno que só quer acreditar em evidências e provas científicas. No evangelho de Jo, além de crítico, Tomé é sincero, espontâneo, com caráter impulsivo, como o de Pedro, com o qual tem certas semelhanças. Mateus, Marcos e Lucas, os três primeiros evangelistas, apenas o recordam na lista geral dos doze apóstolos (Mt 10,3; Mc 3,18; Lc 6,15 e At 1,13). O evangelho de João, porém, refere-se a Tomé em quatro episódios (11,16; 14,15; 20,24-28; 21,2). O Evangelho de hoje apresenta o terceiro e mais extenso episódio. Ele está na mesma situação que nós hoje: ouve a mensagem da ressurreição, mas não viu Jesus.

Os outros discípulos contaram-lhe depois: “Vimos o Senhor!”. Mas Tomé disse-lhes: “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (v. 25).

Como antes Maria Madalena (v. 18), agora os discípulos afirmam: “Vimos o Senhor” (cf. 14,19; 16,16; 21,7). Tomé, porém, não acredita na palavra deles (cf. Lc 24,11), quer ver para crer. Tomé quer identificar Jesus pelas marcas corporais da crucificação que os outros devem ter mencionado no seu relato (cf. 20,20).

Na narração, Tomé ainda estava sob o impacto da Sexta-feira Santa: a prisão de Jesus, os golpes dos soldados, a flagelação, a crucificação e o furo com a lança do soldado que verificou a morte (19,34). Tomé quer certificar-se com os próprios dedos e as próprias mãos, apalpando as chagas das mãos e do peito. Não exige um milagre para acreditar. O papa Bento XIV (séc. 18) disse quem determina se é milagre ou não, é a ciência. Se ela chegar à conclusão que algo não pode ser explicado por nenhuma causa natural, física, humana, então é milagre.

Todos os evangelhos apresentam narrações que querem mostrar a realidade da ressurreição. Contudo, como a ressurreição é meta-história, é impossível prová-la (como é impossível provar a existência de Deus, porque ele é metafísico; provar só se pode coisas deste mundo). É uma questão de fé, não de ciência. Mas a ressurreição de Jesus também não está totalmente fora deste mundo (no fim do mundo), porque se situa a partir de certo momento da história e de certas pessoas que a testemunham e anunciam.

Em defesa (apologia) da ressurreição, Mc apresentou o túmulo vazio; Mt acrescentou o suborno de soldados que vigiavam o túmulo lacrado; em Lc, Pedro verificou o túmulo vazio e o ressuscitado come um peixe para mostrar aos discípulos que não era um fantasma. Em Jo, Pedro verificou os panos de linho dentro do túmulo e Tomé quer uma prova empírica de que os apóstolos não sonharam nem alucinaram nem se enganaram nem mentiram. Ele representa a dúvida de qualquer pessoa de fora, daquela época e de hoje, “que não estava presente quando Jesus veio” (v. 24).

Agora Jesus será identificado pela cruz (cf. Mc 16,6p). Já em Lc 24,39, o próprio ressuscitado convida para tocar suas mãos e seus pés para os discípulos verificarem que não é um fantasma. Em Jo 20,20.27 trata-se da continuidade entre o Jesus que sofreu e o Jesus que está sempre com eles (cf. Hb 2,18). Tomé conhecia bem o rosto de Jesus, mas pede somente tocar nas chagas que são sinais de um infinito amor (15,13) e foram gloriosamente conservados.

“Jesus pode agora ser reconhecido mais por suas feridas do que por sua face. Os sinais que confirmam a sua identidade são acima de tudo as suas chagas, nas quais ele revela o quanto nos amou. Nisso o Apóstolo não está errado” (Bento XVI).

Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco” (v. 26).

Importante é a data “oito dias depois”, quer dizer, é domingo novamente, o “primeiro dia da semana” em que os discípulos (e a comunidade dos leitores) se reúnem e Jesus ressuscitado se faz novamente presente na fração do pão, i.é. na celebração da eucaristia (At 20,7). A maneira como o evangelista colocou esta data, já é um reflexo do costume dos primeiros cristãos de se reunirem e celebrarem o domingo, mais do que o sábado (cf. Mc 2,27s; 3,4; Jo 5,17 etc.). “Domingo” (do latim dies dómini) significa: “dia do Senhor” (cf. Ap 1,10) por causa da ressurreição do Senhor. Hoje em dia, todas as igrejas cristãs celebram o domingo como dia sagrado (exceto os Adventistas do sétimo dia que voltaram ao costume judaico de celebrar o sábado).

Como antes no v. 19, “as portas estavam fechadas”, mas já não se menciona o medo dos judeus. Novamente, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse (pela terceira vez): “A paz esteja convosco”.

Depois disse a Tomé: “Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel” (v. 27).

Jesus se apresentou no meio de todos, exatamente como no domingo anterior. Não dedica a Tomé uma aparição a sós: é no meio da comunidade que poderá ver Jesus e professar a fé. Também na aparição de Mt 28,16s, “alguns duvidaram”, e Jesus veio “aproximando-se deles”

Diferente de Maria Madalena (v. 17), Jesus concede a Tomé de tocar nele. Como que desafiando, Jesus aceita submeter-se à prova exigida, mas exige fé: “Põe o teu dedo aqui … e não sejas incrédulo, mas fiel”. O ressuscitado não foge da prova empírica, mas necessária não seria para fé, porque Tomé podia ter chegado à fé antes dela, como? Acreditando nos outros apóstolos.

O evangelho não diz se Tomé verificou ainda com o tato ou se contentou com o ver. Importante é que as chagas do crucificado estão em destaque outra vez. O corpo torturado do homem Jesus permanece o templo de Deus (cf. 2,19-22). A unidade entre o verbo divino (logos, 1,1s) e o homem de Nazaré, iniciada pela encarnação (1,14) não foi suspensa, nem pela morte. O verbo não volta ao céu deixando o corpo atrás como embalagem vazia.

Em Jo, o sofrimento na cruz é chamado de (início da) glorificação (cf. 12,23; 17,1), portanto o ressuscitado na sua glória não pode ser outro do que o homem sofrido. Sobre o lado aberto pela lança (19,34), Pedro Canísio diz: “Abrindo-me o teu corpo, deu-me de beber a água da fonte, agora estou salvo!” No quadro pintado a mando da Ir. Faustina, do lado aberto do ressuscitado saem dois raios, um azul-branco (água) e outro vermelho (sangue).

Tomé respondeu: “Meu Senhor e meu Deus!” (v. 28).

Agora Tomé pode pronunciar a profissão mais sublime em todo este evangelho: “Meu Senhor e meu Deus!” (v. 28). A profissão de fé em Tomé é plena. No judaísmo depois do exílio, “meu Senhor” (adonai) substituia o nome não pronunciado de Javé (Yhwh). “Meu/nosso Deus” é título clássico da aliança. Os dois títulos estão unidos em Sl 35,23: “Desperta, levanta-te em minha defesa, meu Deus e meu Senhor, em minha causa” (os dois verbos, “despertar, levantar”, aludem à ressurreição). Com esta profissão de Tomé chegam ao cume todas as afirmações do caráter divino de Jesus ao longo do evangelho (cf. 1,34; 3,35; 6,69; 9,33; 10,30.36.38; 14,7.9ff; 16,27; 17,11.21).

Jesus não substitui o Deus de Israel, mas ele é Deus no sentido de 1,1-18: Sendo o verbo divino, o encarnado participa da divindade e representa Deus no mundo. Neste sentido, no judaísmo helenista, também Moisés podia ser chamado “deus para Israel” (cf. Ex 14,31; Nm 12,6-8; Jo 1,18). O ressuscitado é para Tomé e para todos quantos desdobrem no crucificado a presença divina, o “seu Deus”.

A fórmula usada por Tomé pode demonstrar uma crítica à ideologia dos imperadores romanos que se deixavam chamar “senhor e deus” (p. ex. Domiciano, a besta-fera do Ap 13) para se apresentarem como representantes dos deuses. Para um cristão, porém, o poder divino não pode ser representado por nenhum rei ou imperador, mas somente por Cristo.

“Mais nos serviu a incredulidade de Tomé do que a fé dos discípulos fiéis” (S. Gregório Magno). A dúvida do cético dá lugar à fé em Jesus, Senhor e Deus (cf. 1,1.14; 8,24.27.57; 10,30; 13,19; 18,6). Tomé tornou-se testemunha ocular também. Da realidade do ressuscitado, Tomé podia ter se verificado com seus olhos e suas mãos, e hoje poderia ainda fazer exames com aparelhos científicos. Tomé era incrédulo pedindo provas palpáveis, somente crê nos milagres indubitáveis; que ironicamente, pela sua teimosia, acaba sendo testemunha excepcional. Serve de aviso para todos os que no futuro terão de crer por sua palavra, pela mediação do testemunho apostólico dos que “viram”, ou seja, conviveram com Jesus (cf. 1Jo 1,1-3: “o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos e nossas mãos tocaram…”).

Jesus lhe disse: “Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” (v. 29).

Jesus não repreendeu a Tomé, também os outros discípulos “viram” Jesus oito dias antes. O “ver” devia levar a “crer” (cf. 1,14; 1,39.50s; 2,11; 4,48; 6,2; 11,45), O evangelista não dispensa sinais que ajudam acreditar (cf. 20,8: o discípulo amado diante dos lençóis no túmulo vazio, “viu e creu”), mas muitos dos que viram Jesus (não como ressuscitado), não creram (6,26.36; 15,24). Tomé está agora junto com os outros discípulos que viram e acreditaram (1,34; 9,37f; 19,35; 20,8).

Ao mesmo tempo, Jesus fala indiretamente que o tempo dos testemunhos oculares acabou. Felicita aqueles que não poderão mais vê-lo, mas acreditarão (cf. a definição da fé em Hb 11,1). A atuação visível de Jesus chegou ao fim, afora poderia terminar o livro do evangelho em 20,30s.

A profissão de fé feita por Tomé e a declaração final de Jesus finalizam a versão original do evangelho de João (cap. 21 é um acréscimo evidente, cf. o final do evangelho em vv. 30-31 e outro em 21,25). Igual aos finais dos outros evangelhos, dirige-se o olhar ao futuro (como em 17,20). Os apóstolos têm tido uma função especial, a de testemunhas oculares para dar testemunho do ressuscitado. Os futuros terão de aceitar esse testemunho e crer. Para eles há uma bem-aventurança especial (1Pd 1,8). Tomé representa o leitor que não participou da aparição. Na dúvida de Tomé, os leitores devem reconhecer a sua própria; através desta narração devem desistir a exigir provas palpáveis que não são mais possíveis (como para Tomé foram concedidas), mas chegar a mesma conclusão de fé como Tomé.

O nome de Tomé aparece outra vez no anexo de João numa lista de sete apóstolos a caminho da pesca milagrosa (21,2). Seu nome está em segundo lugar, depois de Simão Pedro! O cap. 21 foi acrescentado para esclarecer melhor o papel de Pedro como primeiro dos apóstolos (21,15-19), porque na versão original do evangelho se falava pouco dele, mencionava mais outros apóstolos. Pedro aparece mais vezes só no relato da paixão (e não muito favorável, cf. 13,6.8.36-37; 18,10.15-18.25-27; 20,2-10); antes, só fala uma única vez professando sua fé em 6,68, enquanto os outros também a professam, antes e depois: André já em 1,41; Natanael em 1,49; os samaritanos em 4,42; o cego curado em 9,38; Marta em 11,27 e Tomé em 20,28.

Tomé, desligado do grupo dos “doze”, representa um papel importante. Fora da comunidade, estamos em perigo de duvidar, dentro da comunidade reencontramos o ressuscitado e a fé. De certo modo, devemos ser críticos e não acreditar em qualquer coisa, em qualquer pessoa, em qualquer religião. No testemunho dos apóstolos, porém, há de se acreditar, porque antes eram fracos na fé, mas depois da ressurreição de Jesus deram sua própria vida pela sua fé. S. Tomé também era “mártir” (palavra grega que significa simplesmente “testemunha”, mas no sentido atual é alguém que deu testemunho com seu sangue, com sua vida). A tradição afirma que Tomé foi para o oriente (Síria, Iraque, Pérsia e Índia), onde foi martirizado. Os cristãos caldeus no Iraque (hoje tal perseguidos) e os de rito malabar no sul da Índia se consideram “discípulos de São Tomé”.

Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome (vv. 30-31).

Estes dois vv. são o primeiro final do evangelho (mais tarde, uma redação eclesial acrescentou mais um capítulo com outro final: 21,24s). O termo “sinais” se refere no contexto próximo às aparições do ressuscitado, mas também à toda atividade anterior de Jesus (cf. At 1,1-3). A seleção desses sinais “neste livro” não é negativa, mas serve para promover a fé em Cristo (não é uma pesquisa histórica sobre Jesus no sentido moderno, mas um livro sobre seu significado). Quem crer em Jesus, se abre àquele que tem vida divina em si (5,21.26), ou seja, quem é a vida em pessoa (11,25).

A Bíblia do Peregrino (p. 2619) comenta: O epílogo descreve o livro como antologia ou seleção e declara sua finalidade. O evangelho mostrou sete sinais milagrosos, em várias ocasiões falou de “sinais” no plural (ver 11,47; 12,18) feitos diante dos discípulos como testemunhas. A finalidade do escrito é suscitar a fé (não satisfazer a curiosidade). Na forma absoluta, com dativo ou acusativo, com partículas, o verbo “crer” se repete sem cessar no evangelho, sendo uma das palavras dominantes. Pela fé se alcança a vida autêntica e perdurável que Jesus dá. Também “vida” é palavra-chave do evangelho. 

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2092) comenta: Trata-se sobretudo do progresso na fé dos que já pertencem à comunidade dos crentes; mas não exclui uma intenção missionária. A fé se refere essencialmente a Jesus, e reconhecido em sua condição de Filho de Deus e em sua missão de Messias, ele dá aos que creem verdadeiramente a vida eterna em comunhão com ele (cf. 1,12-16; 3,16 etc.).

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