08 de março de 2017 – Quarta-feira, Quaresma 1ª semana

 

Leitura: Jn 3,1-10

O livro de Jonas é uma narração; é considerado “profético” só porque em 2Rs 14,25 se menciona um profeta com o mesmo nome. Mas o seu estilo e tema diferem muito dos livros proféticos que, em geral, são escritos em versos. Os profetas costumavam ameaçar as nações pagãs. Mas o livro de Jonas relata a conversão dos ninivitas e anuncia a misericórdia para com esse povo que foi um dos mais odiados por Israel. Nínive era a capital dos assírios que guerrearam contra Israel muitas vezes e acabaram com o reino do Norte em 722 a.C. (cf. 2 Rs 17).

Diferente dos outros profetas, Jonas não está enraizado na situação político-social contemporânea. Na verdade, trata-se de um livro sapiencial. Não pertence ao gênero histórico, mas ao gênero parabólico, uma espécie de “mini-novela” para ilustrar o tema da misericórdia de Javé, que não é um Deus nacional, mas o Deus de toda a humanidade. Ele quer que todos se convertam, para que tenham a vida, porque é um “Deus compassivo e clemente, lento para ira e cheio de amor” (4,2; cf. Ex 34,6).

A data do livro pode ser o tempo do pós-exílio, entre 400 e 350 a.C., quando o povo judeu estava se fechando num nacionalismo exclusivista (cf. Esd 4,1-3; 9-10; Ne 13,3), bem refletido na mesquinhez do “justo” Jonas. Todavia os caminhos de Deus são diferentes dos caminhos dos homens (cf. Is 55,8s). Nínive, capital da Assíria, foi destruída pelos exércitos dos babilônios e medos em 612 a. C., não era mais de uma lembrança longínqua, mas tornou-se modelo de crueldade e opressão contra o povo de Israel. Deus, porém, quer salvar também os inimigos, os pagãos (cf. Mt 5,43-48). Deus não quer que suas criaturas se percam (cf. Sb 1,12ss); para ele, ninguém está irremediavelmente perdido (cf. Ez 18,23.32; Lc 15). Com este universalismo, o livro aponta para o Novo Testamento (cf. Evangelho de hoje).

A palavra do Senhor foi dirigida a Jonas, pela segunda vez: ”Levanta-te  e põe-te a caminho da grande cidade de Nínive e anuncia-lhe a mensagem que eu te vou confiar”. Jonas pôs-se a caminho de Nínive, conforme a ordem do Senhor (vv. 1-3a).

Jonas não é um profeta típico, é um anti-herói. É um profeta desobediente que queria se furtar à sua missão. Já na primeira vez, Deus o enviou para Nínive (ao leste de Israel), mas Jonas embarcou ao oeste, na direção oposta (Jn 1). Deus, porém, o traz de volta através de uma tempestade e uma baleia que o engole e, depois de três dias, o vomita em terra firme (Jn 2). Na leitura de hoje, se repete a ordem inicial de Javé (1,1s) “pela segunda vez”, e desta vez Jonas obedece, pois aprendeu que é inútil tentar escapar de Deus (cf. Sl 139).

Ora, Nínive era uma cidade muito grande; eram necessários três dias para ser atravessada. Jonas entrou na cidade, percorrendo o caminho de um dia; pregava ao povo, dizendo: “Ainda quarenta dias, e Nínive será destruída” (vv. 3b-4).

Nínive é símbolo do mundo pagão, por isso é apresentada com dimensões incrivelmente vastas: “cidade que se tornou grande até para Deus” (v. 3, lit.). Com todas as periferias, “eram necessários três dias para ser atravessada”. Jonas percorreu a cidade só por um dia, pronunciando apenas quatro palavras em hebraico: “Ainda 40 dias, e Nínive será destruída” (v. 4; cf. Na 3,7). A Tradução Ecumênica da Bíblia traduz: “Nínive ficará de pernas para o ar”. O verbo hebraico é ambíguo, é o verbo das cidades malditas (Gn 19,21.25,29; Is 1,7; Jr 20,16) e o verbo da mudança radical de atitude ou situação (Dt 29,22; Os 11,8; Sl 105,25). Os “quarenta dias” lembram os 40 dias do dilúvio (Gn 7,12.17), de Moisés e Elias no monte Sinai/Horeb (Ex 24,18; 1Rs 19,8) e os 40 anos do êxodo (Nm 14,33s); são um prazo não para antecipar a angustia diante do inevitável, mas para provocar uma reação que o evite.

Os ninivitas acreditaram em Deus; aceitaram fazer jejum, e vestiram sacos, desde o superior ao inferior (v. 5).

“Os ninivitas acreditaram em Deus”. A Bíblia do Peregrino (p. 2231) comenta: A reação é sensacional: é Nínive, a arqui-inimiga de Israel, modelo de crueldade (Na 3,1.4). “Creram em Deus:  Não diz em Yhwh [Javé], mas tampouco menciona seus deuses pagãos que são “ídolos vazios”. O que então creem? – Que o grito do estrangeiro é palavra de Deus, creem na ameaça merecida e no prazo para penitência.

A pregação chegara aos ouvidos do rei de Nínive; ele levantou-se do trono e pôs de lado o manto real, vestiu-se de saco e sentou-se em cima de cinza. Em seguida, fez proclamar, em Nínive, como decreto do rei e dos príncipes: “Homens e animais bovinos e ovinos não provarão nada! Não comerão e não beberão água. Homens e animais se cobrirão de sacos, e os homens rezarão a Deus com força; cada um deve afastar-se do mau caminho e de suas práticas perversas. Deus talvez volte atrás, para perdoar-nos e aplacar sua ira, e assim não venhamos a perecer” (vv. 6-9).

Cumprem os ritos de penitência e de luto, pelas quais antecipam o julgamento traduzindo a Deus a sua conversão que compreende o jejum, a cinza, a invocação de Deus e a reforma moral (vv. 7-9). É surpreendente ver os animais convocados ao jejum, mas a mentalidade bíblica gosta de associar os animais à salvação dos homens (cf. Sl 36,7). Aqui são convidados a praticar o rito de penitência como os homens.

Não comer nada e nem beber água, isto é jejum parecido à prática dos muçulmanos no mês de ramadã, em que não comem nem bebem durante o dia (mas à noite, repõem sim). A reação dos ninivitas e do seu rei é o contrário da reação negativa da elite de Jerusalém à profecia de Jeremias (cf. Jr 36). O rei põe uma pitada de dúvida, “Deus talvez volte atrás” (v. 9), respeitando a liberdade divina.

Vendo Deus as suas obras de conversão e que os ninivitas se afastavam do mau caminho, compadeceu-se e suspendeu o mal, que tinha ameaçado fazer-lhes, e não o fez (v. 10).

Nos vv. 8-10, o verbo da conversão é repetido quatro vezes. Deus está disposto a mudar, se o homem muda. Esta mudança foi oferecida a Israel (Ex 32,14; Jr 26,13; 36,7), deve valer também para os pagãos representados por Nínive e seu rei; é o princípio formulado por Jeremias: “Ora, eu falo sobre uma nação ou contra um reino, para arrancar, para arrasar, para destruir, mas se esta nação, contra quem eu falei, se converte de sua perversidade, então eu me arrependo do mal que jurara fazer-lhe” (Jr 18,7-8).

O que Deus quer é a conversão, e a missão do profeta, portanto, atinge perfeitamente seu objetivo. Só para o próprio Jonas vai custar a compreender esta misericórdia de Deus (Jn 4).

Vemos aqui em Nínive o que nenhum profeta conseguiu em Israel: os pagãos se arrependeram e se converteram participando da penitência inclusive os animais. Como é que Deus poderia negar o perdão a essa gente mais sensata que o povo de Israel? O Deus dos judeus é também o Deus dos pagãos (Rm 3,29). O livro de Jonas é um livro ecumênico, ou seja, nos convida a superar preconceitos e reconhecer o bem nas religiões diferentes, valorizando mais o que nos une do que nos separa.

 

Evangelho: Lc 11,29-32

Os ouvintes de Jesus lhe pediram um “sinal de céu” (v. 16). O “céu” é para os judeus contemporâneos uma maneira de designar Deus sem pronunciar o seu nome inefável (Dn 4,23; 1Mc 3,18 etc.; cf. Lc 15,18.21; 20,4; Mt 3,2 etc.). “Os judeus pedem sinais” (1Cor 1,22), prodígios que exprimam e justifiquem a autoridade que Jesus reivindica (cf. Is 7,11-12; Lc 1,18; Jo 2,11). Os milagres que Jesus realizou não bastam, alguns atribuem suas curas até ao chefe dos demônios (v. 15), querem um sinal do céu à semelhança dos prodígios do êxodo (Ex 7-14; 19) ou de Elias (1Rs 18).

Em Lc, os incrédulos aqui não são os adversários (fariseus, saduceus, escribas que querem tentá-lo, cf. Mc 8,11; Mt 12,38; 16,1), mas são “outros” (cf. vv. 15-16) ou o povo em geral, as “multidões” reunidas (cf. vv. 24.27; 8,4.40; 9,11.37 etc.).

Quando as multidões se reuniram em grande quantidade, Jesus começou a dizer: ”Esta geração é uma geração má. Ela busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, a não ser o sinal de Jonas (v. 29).

Jesus se queixa de seus contemporâneos que são “uma geração má” (e adúltera, cf. Mt 12,39), que reclama sinais, mas recusa os que lhe são dados. Já em Mc 8,12, Jesus afirma que esta geração não terá “nenhum sinal” após ele ter realizado milagres que já apresentou como sinais (Lc 7,22; 11,20). Outra fonte (além de Mc) que Mt e Lc têm em comum (chamada fonte Q), apresenta “a não ser o sinal de Jonas” e em seguida a “rainha do sul” (v. 31; Mt 12,39-42). Aos seus contemporâneos que não querem acolhê-lo, Jesus opõe os pagãos de outrora que aceitaram a sabedora do rei Salomão e a palavra do profeta Jonas.

Com efeito, assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim também será o Filho do Homem para esta geração (v. 30).

O profeta israelita Jonas não fez milagres em Nínive, mas suas poucas palavras converteram esta grande cidade pagã (cf. Jn 3, leitura de hoje). Seu anúncio do juízo provocou o arrependimento dos pagãos e o perdão de Deus. É da mesma maneira que deve ser concebida a função e o sinal quanto ao “Filho do Homem”. Ora, o sinal é esse: a pessoa de Jesus, os seus ensinamentos e milagres; mas, como esta geração não quer acolhê-lo, em lugar de sinal se convocarão duas testemunhas de acusação que no final das contas deporão num juízo de comparativo de agravantes (cf. Ez 16,46-52).

Jesus ressuscitado é o “Filho do Homem” que virá para julgar as nações (17,22-29; 21,27; Mt 25,31s; cf. Dn 7,13s). Antes da ressurreição, os ensinamentos e curas de Jesus devem ser sinais suficientes para crer. Mas quando Lc escreve 50 anos depois da ressurreição, percebe-se nesta o sinal de Jesus por excelência (cf. o futuro: “será um sinal”). Mt 12,40 avançou ainda mais, explicando que Jonas foi sinal pelos três dias passados escondido no ventre da baleia (Jn 2,1), “assim ficará o Filho do Homem três dias e três noites no seio da terra.”

No dia do julgamento, a rainha do Sul se levantará juntamente com os homens desta geração, e os condenará. Porque ela veio de uma terra distante para ouvir a sabedoria de Salomão. E aqui está quem é maior do que Salomão (v. 31).

A rainha do Sul veio de Sabá (provavelmente do sul da Arábia, hoje o Yêmen) para admirar a sabedoria do rei Salomão (1Rs 10,1-10), na Bíblia o sábio por excelência (1Rs 3; 5,9-14). Mas Jesus é mais sábio do que ele. Lc gosta de notar esta sabedoria de Jesus (2,40.52; 21,15) e evoca a sagração de Salomão na entrada messiânica de Jesus em Jerusalém (19,35-38; cf. 1Rs 1,38-40). Lc escreve para leitores do mundo greco-romano, onde a sabedoria é um valor supremo (filosofia).

No dia do julgamento, os ninivitas se levantarão juntamente com esta geração e a condenarão. Porque eles se converteram quando ouviram a pregação de Jonas. E aqui está quem é maior do que Jonas” (v. 32).

Em Mt, este v. vem antes daquele da rainha do sul, mas Lc quer terminar com a conversão dos pagãos, grande meta das viagens de Paulo no segundo volume de Lucas, os Atos dos Apóstolos. Os pagãos são representados pela “cidade muito grande” de Nínive (Jn 3,3b), mas Lc pode sonhar com a conversão de outra grande cidade, Roma, onde terminam os Atos (cf. 23,11; 28,16-31).

Já João Batista era “mais que um profeta”, pelo seu papel escatológico (7,22-26p); Jesus mais ainda. Ele supera a profecia e a sabedoria dos antigos (o AT e a filosofia; cf. 1Cor 1,22s: “Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em procura de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo e para os gentios é loucura”).

Jesus é mais do que o rei mais sábio, é mais do que o profeta Jonas, converterá mais povos pagãos através da sua palavra e do seu exemplo (morte e ressurreição).

O site da CNBB comenta: Ainda hoje, para muitas pessoas, Deus deve manifestar-se constantemente para todos, pois somente assim o mundo poderá crer. Na verdade, essas pessoas querem uma demonstração evidente da existência de Deus e da sua presença no nosso dia a dia, porém, o Evangelho de hoje nos mostra que assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, Jesus é um sinal para nós por sua palavra e é nela que devemos crer e não ficar exigindo que ele fique realizando “milagres” para que fundamentemos a nossa fé.

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