09 de janeiro de 2018 – Terça-feira,1ª semana

Leitura: 1Sm 1,9-20

Ouvimos nestas semanas a narrativa de 1-2Sm (cf. introdução no comentário ontem). Hoje continuamos no relato do nascimento de Samuel na categoria do nascimento de heróis, como os de Isaac ou Sansão. O nascituro será filho da promessa e da oração, mais que simples filho da carne. O Senhor da vida demonstra o seu poder precisamente na fraqueza, outorgando com sua palavra explícita uma fecundidade que o homem ia considerar natural. Por isso a oração de Ana ocupa na narração um lugar primordial (v. 11); e ela e ao seu cumprimento se subordina o resto da narração, a peregrinação, o papel do sacerdote, as reprovações. Seu marido a repreende carinhosamente, ela não responde (v. 8), dirige-se a Deus; o sacerdote a censura duramente, e ela se explica. Uma romaria no princípio (v. 3) e outra no final (v. 24) compõem o capitulo.

Ana levantou-se, depois de ter comido e bebido em Silo. Ora, o sacerdote Eli estava sentado em sua cadeira à porta do templo do Senhor (v. 9).

A tradução da frase foi corrigida segundo a versão grego; o texto hebraico tem: “depois que ela comeu em Silo e depois de terem bebido”.

Silo foi durante bom tempo a cidade central do culto onde foi instalada a arca da aliança (cf. Jz 18,1; Jz 21 a apresenta como centro de uma romaria celebrada com danças). Sua situação é geograficamente central. A arca, que tinha sido paládio durante as campanhas militares, tem agora morada estável; aparentemente não mais em forma de tenda, segundo a tradição do deserto, mas num edifício (cf. v. 7), num “templo” com pátio e anexos, no estilo cananeu (não é ainda o templo construído por Salomão em Jerusalém por volta de 960 a.C., cf. 1Rs 6-8). Em todo caso, dispõe de altar e de um sacerdote levítico, Eli. Sentar-se numa cadeira é gesto de dignidade. Da porta do edifício ou recinto onde se guarda a arca, é possível ver o que acontece no átrio onde o povo se reúne.

Ana, com o coração cheio de amargura, orou ao Senhor, derramando copiosas lágrimas. E fez a seguinte promessa, dizendo: “Senhor Todo-poderoso, se olhares para a aflição de tua serva e te lembrares de mim, se não te esqueceres da tua escrava e lhe deres um filho homem, eu o oferecerei a ti por todos os dias de sua vida, e não passará navalha sobre a sua cabeça” (vv. 10-11).

Ana chora porque é humilhada por não ter filhos (vv. 5-6); era costume considerar o fato como castigo de Deus por alguma culpa. No culto de Israel era comum fazer promessas (Sl 54,3-4.8). Incomum é o conteúdo desta promessa: Em vez de um sacrifício no altar, Ana promete entregar ao Senhor o filho que dele receber, renunciando ao direito de resgate (Ex 12,13; 22,28; 34,19; Nm 3,45-48).

Samuel será o filho concebido por Deus a uma mãe estéril, como Isaac, Sansão, João Batista. O menino que vai nascer é consagrado pela mãe ao Senhor (Javé), para o serviço do seu santuário. Os cabelos longos serão o sinal dessa consagração, como o foram para Sansão. Mas não é dito expressamente a respeito de Samuel que ele será nazireu (cf. Nm 6,1-21), como foi dito de Sansão (Jz 13,5; 16,17 cabelos longos; cf. Lc 1,15; Mt 2,23; 11,18-19p: João Batista não bebe vinho; Jesus bebe, mas é de Nazaré).

Ana invoca o “Senhor dos Exércitos” (v. 3, hebr. Yhwh [=Javé] Sebaot, aqui traduzido por “Senhor Todo-poderoso”). O exército pode se referir a tropas militares de Israel ou aos exércitos celestes, astros, anjos, ou de todas as forças cósmicas. O titulo aparece pela primeira vez aqui em v. 3 (cf. comentário de ontem) e está ligada ao culto de Silo; a expressão “Senhor dos Exércitos entronizado entre os querubins” voltará a aparecer em 4,4, a propósito da Arca da Aliança trazida de Silo. Esse título permanece ligado ao ritual da Arca e entra com ela em Jerusalém (no tempo de Davi: 2Sm 6,2.18; 7,8.27). É retomado pelos grandes profetas (salvo Ezequiel), pelos profetas pós-exílicos (principalmente Zacarias) e nos Salmos.

Na anunciação a Maria (Lc 1,37s; cf. Gn 18,14), destaca-se o poder de Deus para realizar coisas impossíveis e a humildade da sua “serva-escrava”.

Como ela se demorasse nas preces diante do Senhor, Eli observava o movimento de seus lábios. Ana, porém, apenas murmurava; os seus lábios se moviam, mas não se podia ouvir palavra alguma. Eli julgou que ela estivesse embriagada, por isso lhe disse: “Até quando estarás bêbada? Vai tirar essa bebedeira!” (vv. 12-14).

Orava-se normalmente em voz alta (cf. Sl 77,2; 142,2); ou murmurando. Ana está concentrada em seu interior, onde o Senhor escuta. Alguns supõem que a festa anual correspondia ao tempo da vindima (cf. o costume pagão de Jz 9); se no templo se passava o cálice (Sl 23), isto não bastava para embriagar. Mas festas, às vezes, dão ocasiões a excessos de bebida (Is 22,13; Am 2,8); donde o engano de Eli que reage de maneira bruta e insensível.

Ana, porém, respondeu: “Não é isso, meu senhor!  Sou apenas uma mulher muito infeliz; não bebi vinho, nem outra coisa que possa embebedar, mas desafoguei a minha alma na presença do Senhor. Não julgues a tua serva como uma mulher perdida, pois foi pelo excesso da minha dor e da minha aflição que falei até agora” (vv. 15-16).

“Desafoguei a minha alma”; desabafar é em hebraico “derramar a alma”, e é o mesmo verbo usado para a libação (Ex 29,38-42; Nm 29,6.11); com a menção do vinho, a resposta torna-se engenhosa. Ana não se vê como “mulher perdida”, lit. filha de Belial (cf. 2,12); Beliar ou Belial tornou-se mais tarde o nome próprio do espírito das trevas (cf. 2Cor 5,16).

Eli então lhe disse: “Vai em paz, e que o Deus de Israel te conceda o que lhe pediste” (v. 17).

As palavras de Eli poderiam ser entendidas também como desejo (“te conceda”) ou afirmação “te concederá” (cf. Sl 16,10; 29,11; 37,4; 85,13 etc.). A mulher toma essas palavras como oráculo sacerdotal que responde à sua prece, e se sente segura e consolada.

Ela respondeu: “Que tua serva encontre graça diante dos teus olhos”. E a mulher foi embora, comeu e o seu semblante não era mais o mesmo.

Outro jogo de Ana consiste em aludir a seu próprio nome: Ana, em hebr. Hana, significa “favor, graça, misericórdia”, pedindo o favor de Eli. O nome João tem a mesma raiz (Yo-Hanan: Javé é misericórdia, graça) e significado (cf. Lc 1,58-60).

Na manhã seguinte, ela e seu marido levantaram-se muito cedo e, depois de terem adorado o Senhor, voltaram para sua casa em Ramá. Elcana uniu-se a Ana, sua mulher, e o Senhor lembrou-se dela (vv. 18-19).

No momento em que o marido a possui, o Senhor se lembra dela, assim o autor expressa a benção da fecundidade.

Ana concebeu e, no devido tempo, deu à luz um filho e chamou-o Samuel, porque – disse ela – ”eu o pedi ao Senhor” (v. 20).

Aqui é a mulher que dá o nome (cf. Lc 1,31; 2,21) e o explica (cf. Gn 29,31-30,24), porém, a etimologia não convence, não passa de assonância; porque conviria melhor a Saul que significa “pedido”. Por isso, alguns pensam que este relato de nascimento originalmente fazia parte da lenda de Saul. Samuel poderia significar “nome de Deus” (Shem-El), seu componente divino não é Javé (J).

A leitura de hoje não no conta mais como Ana cumpriu sua promessa depois de desmamar o menino (vv. 24-28), mas a liturgia de hoje apresenta como Salmo de resposta o cântico de Ana que serviu de modelo para o canto de Maria (“Magnificat” em Lc 1,46-55).

Obs.: O Salmo responsorial de hoje é o Cântico de Ana (1Sm 2,1-10) que serviu de modelo para o Magnificat de Maria (Lc 1,46-55). Segundo o Protoevangelho de Tiago (livro apócrifo, séc. II), o nome da mãe de Jesus era Ana.

Evangelho: Mc 1,21b-28

O evangelho de Mc é como um filme de ação em que Jesus realiza muitos milagres na primeira parte do evangelho. O primeiro acontece na sinagoga de Cafarnaum, cidade onde moram os primeiros discípulos que Jesus acabou de chamar (v. 29; cf. 2,1; 3,1; Mt 4,13; 6,59).

Estando com seus discípulos em Cafarnaum, Jesus, num dia de sábado, entrou na sinagoga e começou a ensinar. Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei (vv. 21b-22).

Num dia de sábado, começou a ensinar na sinagoga onde os judeus costumavam celebrar um culto da palavra lendo da lei de Moisés e dos profetas, cantando os salmos e fazendo orações.

Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau. Ele gritou: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir?  Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus” (vv. 23-24).

Mas dentro da sinagoga onde os mestres da lei judaica ensinam como o povo deve cumprir a lei e se manter afastado dos pecadores impuros (“fariseu” quer dizer separado dos pecadores) encontra-se “um homem possuído por um espírito mau”. A medicina precária da época atribuía doenças com causas desconhecidas ou psíquicas a espíritos impuros e maus (demônios).

Como espíritos sabem mais do que os homens, sabem que Jesus é “o Santo de Deus” (v. 24). Só Deus é santo, e sua santidade se comunica ao que lhe pertence ou lhe é consagrado (cf. Lv 19,2; Is 6,3 etc.). Jesus é “Santo de Deus” por excelência, por ser o Messias-Cristo (consagrado com a unção; não parece que os judeus tenham aplicado esse título ao Messias, cf. Lc 1,35; 4,34; Jo 6,69; At 2,27; 3,14; 4,27.30; Ap 3,7).

Jesus o intimou: “Cala-te e sai dele!” Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu (vv. 25-26).

Como Jesus venceu a tentação de satanás no deserto (vv. 12-13), ele tem o poder para vencer também os espíritos maus. Os relatos de exorcismo eram comuns na época e seguiam certo esquema (cf. 5,1-13; 9,15-27). O possuído mostra seu desequilíbrio, gritando com seu conhecimento sobrenatural sobre Jesus (cf. v. 34; 5,7). Jesus ordena “cala-te e sai dele” (v. 25; cf. 9,25). O espírito sai com gritos sacudindo o homem (v. 26; 9,26; cf.5,10-13). O homem fica curado (cf. 5,15; 9,27) e as pessoas que assistiram ficam espantadas e admiradas (v. 27; 5,15; 9,26c).

E todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: “O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galileia (vv. 27-28).

Para Mc, a palavra de Jesus tem autoridade divina e é eficaz: fala e assim se faz (cf. Gn 1; Is 55,8-11). Como os discípulos imediatamente atenderam seu convite a segui-lo (vv. 16-20), assim também os espíritos maus o obedecem (v. 27). O “ensinamento novo” de Jesus (1,27; cf. 12,28-34; Jo 13,32; Mt 5,21ss) é diferente dos mestres da lei na sinagoga (vv. 22.27). Estes oprimem, desprezam e exploram as pessoas (cf. 12,38-40; Mt 23). Resumidamente pode-se concluir: o ensinamento dos mestres da lei na sinagoga deixa o homem louco, mas a palavra de Jesus o liberta.

O site da CNBB comenta: Jesus tem como costume ensinar nas sinagogas e o conhecimento da fé é a maior arma que o cristão tem para vencer o mal e o pecado, pois não só nos mostra o caminho para chegarmos até Deus e o valor da verdade para nós, além de nos revelar o amor que Deus tem por nós e a necessidade que temos de corresponder a esse amor por uma vida santa para que possamos vencer toda sorte de mal que venha a acontecer em nossas vidas e sentirmos o poder amoroso de Deus que se faz presente na vida de todas as pessoas que acolhem o que Jesus veio revelar a respeito de Deus e do seu Reino.

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