10 de dezembro de 2017 – Advento 2º Domingo Ano B

1ª Leitura: Is 40,1-5.9-11

A 1ª leitura combina com o evangelho de hoje em vários aspectos: a voz que grita para preparar o caminho (v. 3) é citado em Mc 1,3; fala-se da “boa nova” (grego: “evangelho” em v. 9 e Mc 1,1), e que o “Senhor Deus vem com poder” (v. 10; cf. o “mais forte” em Mc 1,7).

Consolai o meu povo, consolai-o! – diz o vosso Deus -. Falai ao coração de Jerusalém e dizei em alta voz que sua servidão acabou e a expiação de suas culpas foi cumprida; ela recebeu das mãos do Senhor o dobro por todos os seus pecados (vv. 1-2).

O livro do Segundo Isaías (caps. 40-55) é chamado “livro da consolação”, porque começa com estas palavras. O autor escreveu durante o exílio da Babilônia considerado um castigo pela “culpa” do povo que praticava idolatria (adorar outros deuses) e injustiça, além de firmar alianças políticas erradas. O rei Nabucodonosor destruiu a cidade e o templo de Jerusalém em 587 a.C. e levou boa parte do povo judeu à “servidão” na Babilônia. Jeremias e Ezequiel já previam isso. O Segundo (Deutero-)Isaías é um profeta anônimo que escreve na Babilônia e prevê o fim do exílio e a libertação pelo rei persa Ciro II. De fato, este rei ocupará Babilônia e deixará os judeus voltarem a sua terra em 538 (cf. o edito em 2Cr 26,22s; Esd 1,1-4). Será um novo êxodo conduzido por Deus, como antigamente a saída da escravidão no Egito pelo deserto à terra prometida de Israel. O tema do novo êxodo percorre o livro todo e será retomado na conclusão (cf. 55,12s). O profeta exorta os exilados desanimados à confiança, pois é preciso acreditar na palavra de Javé, o pastor que caminha junto com seu povo (v. 11; cf. Sl 23).

O primeiro oráculo do livro da consolação tem algo de abertura, com vários temas principais: consolo de Jerusalém em figura feminina (vv. 1-2); um novo êxodo (vv. 3-5); a palavra se cumprirá (vv. 6-8); o Senhor chega como pastor (vv. 9-11). Vozes não identificadas criam a impressão de algo misterioso e repentino.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 666) comenta: “Consolai” ou confortai” (lit. permitir soltar um profundo suspiro de alivio). Este termo … voltará 16 vezes: 9 vezes nos caps. 40-55. 7 vezes nos caps. 56-66, como para responder os gemidos das Lm (Lm 1,2,9, 16-21; 2,13). Onze primeiros vv. do cap. 40 constituem um prólogo de várias vozes: voz do profeta a seus irmãos (vv. 1-2); voz de um arauto (vv. 3-5); voz de outros mensageiros (vv. 6-8); voz de Jerusalém, que recebe a mensagem deles e a transmite às cidades de Judá (vv. 9-11).

“Falai ao coração”, cantada de modo persuasivo ou cortejando (Gn 34,2; 50,21; Jz 19,3; Rt 2,13; Os 2,16). “Falar ao coração” volta 8 vezes no AT, sendo 2 vezes com o verbo “consolar”: (Gn 50,21; Rt 2,13, cf. Os 2,16). Este apelo ao coração não se dirige somente ao “sentimento”, mas também à razão e à vontade (=faculdades interiores).

Jerusalém esteve submetida a “servidão” de um mercenário ou de um escravo; foi um trabalho forçado, consequência de um crime que agora está pago, inclusive com juros, porque o carrasco se excedeu. Ela pagou sua falta em dobro, como um ladrão (cf. Ex 22). A palavra traduzida por “culpa” designa: 1) o ato perverso; 2) a pena que resulta dele. Mesma formula em Lv 26,41,43.

Grita uma voz: “Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas: a glória do Senhor então se manifestará, e todos os homens verão juntamente o que a boca do Senhor falou” (vv. 3-5).

O profeta deixa anônima e misteriosa esta voz, que obedece à ordem do v. 2. Os evangelistas (Mt 3,3; Mc 1,3; Jo 1,23), citando esse texto na versão grega da LXX (“voz do que clama no deserto”), aplicaram-no a João Batista, que anuncia a próxima chegada do Messias. A seita de Qumran leu aqui uma ordem de retirada para o deserto (Regra da Comunidade 8,14; 9,19s),

O tema do novo Êxodo, já anunciado por Jr e Ez, começa aqui a afirmar-se explicitamente. Aqui o caminho de volta do exílio para a pátria não terá obstáculos nem tropeços, porque a terra se dobra com docilidade cósmica. “Aplainai na solidão a estrada de nosso Deus”; talvez o autor pense numa avenida processional como a de Babilônia (com o portão de Ishtar, atualmente no museu de Berlim). A Bíblia de Jerusalém (p. 1421) comenta: Textos babilônicos falam em termos análogos dos caminhos processionais ou triunfais preparados para o deus ou para o rei vitorioso. Trata-se aqui do caminho pelo qual Iahweh conduzirá seu povo através do deserto, em um novo Êxodo. Já Is 10,25-27 evocara os prodígios do Êxodo com o penhor da proteção divina. Os profetas do Exilio desenvolvem o tema. Como outrora, Deus virá salvar o seu povo (Ir 16,14-15; 31,2; Is 46,3-4 e 63,9 – que retomam Ex 19,4). O primeiro Êxodo, com seus prodígios (Mq 7,14-15), a passagem do mar Vermelho (Is 11,15-16; 43,16-21; 51,10; 63,11-13), a água miraculosa (48,21), a nuvem luminosa (52 ,12; cf. 4,5-6) e a marcha pelo deserto (neste passo, vv. 3s; cf. Br 5,7-9), torna-se, ao mesmo tempo, o tipo e o penhor do novo Êxodo, da Babilônia, para Jerusalém. – Sobre o tema do Êxodo, ver ainda Os 2,16+.

A palavra hebraica traduzida por “glória” significa originalmente “peso” (43,4; 47,6); aqui Deus vai fazer sentir o peso da sua intervenção liberando Israel. A “glória do Senhor” se manifestou no êxodo (Ex 14,17; 16,10; 19,16-20; 24,16s). “Juntamente”, advérbio caro ao autor, que o repete 19 vezes para evocar os movimentos maciços ou ações simultâneas. “Boca do Senhor” é o próprio profeta: 1,20; 30,2; Jr 9,11; Mq 4,4 etc.

Nossa liturgia omite os vv. 5-8 onde uma voz celeste, esclarecendo a vocação profética sublinha a transcendência divina: “Toda carne é erva, … murcha-se a flor, … mas a palavra do Senhor subsiste para sempre”. Deus abrasa ou vivifica com sua palavra que se cumpre.

Sobe a um alto monte, tu, que trazes a boa nova a Sião; levanta com força a tua voz, tu, que trazes a boa nova a Jerusalém, ergue a voz, não temas; dize às cidades de Judá: “Eis o vosso Deus, eis que o Senhor Deus vem com poder, seu braço tudo domina: eis, com ele, sua conquista, eis à sua frente a vitória. Como um pastor, ele apascenta o rebanho, reúne, com a força dos braços, os cordeiros e carrega-os ao colo; ele mesmo tange as ovelhas-mães” (vv. 9-11).

“Tu, que trazes a boa nova a Sião”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 666) comenta: Poder-se-ia traduzir: “alegre embaixada para Sião”, lendo a palavra como um coletivo. Em gr., o termo é traduzido por “evangelista”, portador do evangelho, isto é, da boa noticia por excelência. Cf. 41,27; 52,7; 60,6; 61,1.

A Bíblia do Peregrino (p. 1775) comenta: O arauto vem pelo deserto anunciando a chegada próxima do Senhor, que ostenta o título da aliança. O salário de Jacó ao regressar eram enormes rebanhos (Gn 31,32). A imagem do pastor pode recordar Davi (Sl 78,81s).

“Como um pastor…”, como um pastor de rebanho (Jacó, Gn 33,12-14), como um pastor de homens, como um rei perfeito (Davi), como desde sempre o Deus Pastor (Sl 23; Ez 34). O tema do bom pastor foi enunciado por Jr 23,1-6, desenvolvido por Ez 34 e será retomado por Jesus (Mt 18,12-14; Lc 15,4-7; Jo 10,11-18).

2ª Leitura: 2Pd 3,8-14

As segundas leituras dos domingos do Advento continuam com o tempo da vinda (parusia) do Senhor no fim dos tempos. A segunda carta de Pedro é considerada por muitos exegetas o documento mais novo de todo Novo Testamento (NT). Como o apóstolo Pedro morreu na perseguição do César Nero (64 ou 67), foi um discípulo anônimo que escreveu esta carta em nome de Pedro. A Novo Bíblia Pastoral a introduz: A presente carta quer ser “o testamento” do grande apóstolo Pedro, que aparece próximo da morte (1,14). As recomendações se referem aos inícios do século II, quando efetivamente a carta foi escrita … Também se dirige aos cristãos decepcionados com a demora da vinda do Senhor, algo que tanto animou algumas comunidades do início. O fato de Deus não agir com os calendários humano não deve conduzir à acomodação nem a autossuficiência: o sonho, a espera por um novo céu e uma nova terra já devem ser ensaiados aqui, numa vida pautada pela justiça.

Uma coisa vós não podeis desconhecer, caríssimos: para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que demora. Ele está usando de paciência para convosco. Pois não deseja que alguém se perca. Ao contrário, quer que todos venham a converter-se (vv. 8-9).

O autor da carta apresenta duas explicações pela demora da vinda (parusia) de Cristo: Primeiro cita Sl 90,4 para dizer que o tempo de Deus eterno é outro, não pode ser medido por nós seres humanos. Outra explicação dos pretendidos atrasos da parusia é a misericórdia divina (cf. Sb 11,23s; 12,8). Em Mc 13,10, antes do fim do mundo “é necessário que primeiro o evangelho seja proclamado a todas as nações”.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1495) comenta: O autor discute um problema que deve ter afetado muitas comunidades do seu tempo. A demora na vinda do Senhor certamente foi motivo da decepção para quem a estava aguardando, e da zombaria para quem não apostava nela. Não se pode condicionar a ação de Deus àquilo que nós julgamos que deva ser ou acontecer. É preciso descobrir o sentido mais profundo do que parece ser o não-agir de Deus: tempo mais longo é oportunidade para a conversão de todos. Não é o caso de fazer cálculos quanto ao fim dos tempos.

O dia do Senhor chegará como um ladrão, e então os céus acabarão com barulho espantoso; os elementos, devorados pelas chamas, se dissolverão, e a terra será consumida com tudo o que nela se fez. Se deste modo tudo se vai desintegrar, qual não deve ser o vosso empenho numa vida santa e piedosa, enquanto esperais com anseio a vinda do Dia de Deus, quando os céus em chama se vão derreter, e os elementos, consumidos pelo fogo, se fundirão? (vv. 10-12).

“O dia do Senhor chegará como um ladrão”. A mesma frase encontra-se no documento mais antigo do NT: 1Ts 5,1. Esta vinda do Senhor de maneira surpreendente era ideia comum desde os primeiros cristãos (cf. 1Ts 5,1-9; 1Cor 1,8).

“O dia do Senhor” é uma imagem profética do AT (Am 5,18; Jl 2,1; Sf 1,7) usada também no NT (At 2,20; 1Cor 5,5). Enquanto na tradição se referia a Deus (kyrios – “Senhor” é tradução grega do hebraico Yhwh – Javé), Paulo o identifica depois com “o dia do Senhor Jesus” (1Cor 1,8; Fl 1,6.10). A especulação sobre a vinda do fim do mundo é típico do gênero apocalíptico (Dn 9,2.24-27), mas “o dia do Senhor virá como ladrão” (cf. Mt 24,43; Lc 12,39s; Ap 3,3), de noite”, quando as pessoas dormirem (cf. vv. 4-6) ou disserem: “Paz e segurança” (cf. Jr 6,14; Ez 13,10.16), mas “não poderão escapar” (cf. Am 2,14s).

Saber com precisão a data da vinda (parusia) de Cristo é desejo muito humano, porém fadado à frustração. Conforme a tradição cristã, só Deus Pai conhece o momento exato: “Quanto a esse dia e hora, ninguém sabe nada, nem os anjos do céu, nem o Filho. Somente o Pai é quem sabe” (Mc 13,32p).

A Bíblia de Jerusalém comenta (p. 2281): A destruição do mundo pelo fogo era um dos temas correntes entre os filósofos da época greco-romana, como nos apocalipses judaicos e nos documentos de Qumrã. Aqui todo esse vocabulário tradicional é posto a serviço da mensagem cristã sobre o Dia (cf. 1Cor 1,8).

Nos vv. anteriores 5-7, o autor se refere ao dilúvio (Gn 6-8) e afirma que os céus e a terra de agora são reservados para o fogo” (v. 7). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2396) comenta (cf. vv. 5-7): O dilúvio pelo fogo pertence ao imaginário apocalíptico judaico. Há aqui uma correspondência com o primeiro diluvio, o dilúvio de água dos tempos de Noé. Assim com o mundo ímpio de outrora tinha sido submerso pelas águas, o mundo ímpio de hoje está destinado ao julgamento pelo fogo, que aniquilará os ímpios. Como outrora, os justos escaparão do cataclismo (cf. 2,5) e habitarão o mundo novo, no qual reinara a justiça.

A expressão “a terra será consumida com tudo o que nela se fez” é leitura corrigida; lit. “a terra e suas obras se tornarão manifestas (descobertas)” diante do julgamento de Deus.

O que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra, onde habitará a justiça. Caríssimos, vivendo nesta esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre numa vida pura e sem mancha e em paz (vv. 13-14).

A expressão “novos céus e uma nova terra” já aparece no terceiro Isaías (Is 65,17; 66,22), uma nova criação de Deus com sua presença igual ao paraíso (Ap 21,1).

A Novo Bíblia Pastoral (p. 1495) comenta: Já que havia pessoas especulando sobre quando se daria a vinda do Senhor, o autor propõem um desafio: que tal nos aplicarmos a uma vida santa e à piedade? Que tal fixar o olhar e o agir do novo céu e na nova terra, habitação da justiça? Quem sabe assim chegue logo a dia da vinda de Deus!

 

Evangelho: Mc 1,1-8

No ano litúrgico B é lido o Evangelho de Marcos (Mc). Por muitos séculos, a tradição deu mais valor aos outros evangelhos, porque Mc tem um estilo mais primitivo e menos conteúdo, apenas 16 caps., por isso, no ano B acrescenta-se trechos do evangelho de João. Mas a exegese moderna (interpretação científica dos textos bíblicos) descobriu com suas análises (literárias etc.) que Mc foi o primeiro evangelho escrito. Mateus (Mt) e Lucas (Lc) copiaram todo o evangelho de Mc, melhoraram a linguagem e acrescentaram mais conteúdo de outras fontes.

Pelas alusões históricas no cap. 13 sobre a destruição do templo em Jerusalém durante a guerra Judaica, pode se deduzir que o evangelho de Mc foi escrito por volta de 70 d.C., fora da Palestina. É uma obra anônima escrita em grega, como todos os quatro evangelhos. Só no séc. II procurava-se nomes do âmbito apostólico como possíveis autores. A tradição atribuiu este evangelho a João Marcos, cuja mãe Maria tinha uma casa em Jerusalém (At 12,12.25). Ele era primo de Barnabé e companheiro nas viagens de Paulo e de Pedro (cf. 13,5.13; 15,37-39; Cl 4,10; Fm 24; 1Pd 5,13).

Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus (v. 1).

O “início” lembra Gn 1,1, e como a palavra dirigida ao profeta, Os 1,2. O título já é uma proclamação da fé: “Evangelho de Jesus Cristo”. Boa nova de um crucificado que se diz messias?

Evangelho no NT não designa um livro. A palavra grega euaggelion quer dizer “boa mensagem” (1,14; 8,35; 10,29; 13,10; 14,9; 16,15; no AT: Is 40,9; 52,7). A boa notícia sobre Jesus Cristo é termo cristão já nas pregações apostólicas e cartas de Paulo, que foram escritas antes dos quatro evangelhos e designam o autor ou conteúdo da mensagem (cf. “evangelho de Deus” em 1,14 e Rm 1,1; “evangelho do seu Filho” em Rm 1,9), não o escritor evangelista. A obra literária de Mc inaugura o gênero literário de “evangelho”. É mais do que uma biografia (cf. as histórias de homens ilustres desde seu nascimento até sua morte), quer despertar e confirmar a fé em Jesus Cristo cuja vida não terminou com a morte. Há de ler os fatos narrados nos evangelhos à luz da ressurreição.

“Jesus” é nome próprio comum entre os judeus (cf. Jesus Ben Sirac, o autor de Eclo) e deriva de Josué (Js). Mt 1,23 explica o significado “o Senhor (Javé) salva”.

“Cristo” é título, não nome. Expressa a fé que Jesus é o “Messias” (hebr. ungido, em grego Cristo, cf. crisma); os reis em Israel foram consagrados através de uma unção na sua posse (1Sm 10,1; 16,13; 1Rs 1,39; 19,15s). Então Jesus Cristo quer dizer que ele é o rei prometido pelos profetas (cf. 2Sm 7; Is 9,1-5; 11,1-10; Jr 23,5 etc.), esperado como salvador pelo povo sofrido e oprimido por outros governantes, reis e imperadores (na época, Herodes Antipas na Galileia, Pôncio Pilatos na Judeia e César Tibério em Roma, cf. Lc 3,1).

No evangelho de Mc, há um “segredo messiânico”: muitas vezes, Jesus quer manter silêncio e nenhuma divulgação que ele é o messias ou filho e Deus. Isso deve se ao fato de que os judeus esperavam um messias guerreiro (Mc escreve no meio da guerra Judaica), mas Jesus é um servo sofredor (10,45) que salva através da cruz. Por isso o início do evangelho, que declara a notícia sobre o crucificado uma boa mensagem, é notável (cf. 1Cor 1,17-25).

Alguns manuscritos (e nossa liturgia) acrescentam: “Filho de Deus” (cf. 1,11; 3,11; 5,7; 9,7; 14,61s; 15,39). A partir da sua posse, o rei era visto como “filho (adotivo) de Deus” não só em Israel (cf. 2Sm 7,14; Sl 2,7), mas também em outros povos (o Farão como filho do deus solar, César como filho de Vênus etc.). Mc não narra a infância de Jesus com a concepção pelo Espírito Santo (Mt 1 e Lc 1; Mc apenas destaca Maria em 6,3). Havia vertentes no cristianismo primitivo que consideravam Jesus não como divino por natureza, mas como filho adotivo de Deus (a partir do seu batismo ou da sua ascensão, cf. Rm 1,4), como a seita do adocionismo.

Está escrito no livro do profeta Isaías: “Eis que envio meu mensageiro à tua frente, para preparar o teu caminho. Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!’” (vv. 2-3).

Sem narrar a infância de Jesus, Mc inicia sua narração com o batismo de Jesus adulto. Entrelaça a história de João Batista e de Jesus: João é apresentado pela Palavra de Deus (Ml 3,1; Is 40,3) como precursor do messias (cf. vv. 2-3), depois é narrado sua atividade e pregação (vv. 4-8). Também Jesus é apresentado pela Palavra de Deus (voz do céu em v. 11), em seguida Mc narra sua atividade e sua pregação do evangelho (esta começa só depois da prisão de João Batista, vv. 14s).

A Bíblia do Peregrino (p. 2394) comenta: A boa notícia foi anunciada pelos profetas e agora João Batista a prepara. Marcos o identificava como o anjo prometido no êxodo: “Enviarei na frente meu anjo” (Ex 33,2), como o arauto de Is 40,3 (definido, segundo o grego, para destacar o deserto) e como o Elias que retorna (Ml 3,1). No vestuário e na austeridade, imita Elias (2Rs 1,8; Zc 13,4).

Foi assim que João Batista apareceu no deserto, pregando um batismo de conversão para o perdão dos pecados. Toda a região da Judéia e todos os moradores de Jerusalém iam ao seu encontro. Confessavam os seus pecados e João os batizava no rio Jordão. João se vestia com uma pele de camelo e comia gafanhotos e mel do campo.

Em Mc, João é descrito na sua atividade de profeta austero no deserto e “pregando (lit. proclamando; como arauto, cf. Is 40) um batismo de conversão para o perdão dos pecados”. O “deserto” recorda a viagem dos israelitas e simboliza a nova peregrinação. A passagem pela água recorda a passagem pelo mar Vermelho e do Jordão (assim Paulo em 1Cor 10,2 sobre a passagem do mar como batismo). Sua veste lembra o profeta Elias (mais ainda Mt 3,4; cf. 2Rs 1,8; 2,11-14) que foi arrebatado ao céu na beira do Jordão; o povo judeu espera sua volta para anunciar o messias (Ml 3,1.23). Insetos (gafanhotos) e mel são comida do deserto.

A Bíblia do Peregrino (p. 2394) comenta: Prega no “deserto”, lugar do caminho de volta para Deus: “escuta-se nas dunas pranto suplicante dos israelitas… Aqui estamos, viemos a ti” (Jr 3,21-22; cf. Os 2,16 etc.). Lá acorrem, atraídos por sua fama, os que na Judéia e em Jerusalém não acham resposta, os que não se satisfazem com as liturgias penitenciais e os ritos de expiação do templo. Prega um “batismo de arrependimento” (metánoia), que se expressa na confissão pública dos pecados: “propus confessar meus delitos ao Senhor” (Sl 32,5), para obter o perdão de Deus: “e tu perdoastes minha culpa e meu pecado” (idem), e na imersão na água purificadora (cf. Ez 36,25). O batismo é o rito que representa e sela a reconciliação.

Dessa maneira, os judeus refazem a viagem dos israelitas pelo deserto e a passagem do Jordão (Js 3-4); não só como recordação, mas inaugurando uma era. Com isso se preparam, não para entrar na terra prometida, mas para receber o Senhor que chega (cf. Js 5,14; Sl 96, e 98). Esse Senhor (Kyrios, Yhwh) e agora o Messias.

E pregava, dizendo: “Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo” (vv. 7-8).

Mc não nos transmite a pregação do Batista sobre penitência e o juízo próximo (cf. Mt 3,7-10.12p; Lc 3,10-14), apenas as palavras que apontam para o “mais forte” que “virá depois”.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1923s) comenta: Conforme Mc, toda a pregação de João se refere Àquele que “vem depois” dele, ou em seu seguimento, lit. “atrás dele”). A expressão, que denota a dignidade, como num cortejo (cf. 1,17.20; 8,33.34), ressalta o contraste entre João e Jesus: aquele que vem depois é na realidade “mais forte”. A força, atributo do Messias (cf. Is 11,2; 49,25; 53,12; Sl de Salomão 17,24), manifestar-se-á na luta de Jesus contra Satanás (3,27 …). E aquele que vem na frente não passa, na realidade de um criado, calçar ou desatar as sandálias de alguém era uma tarefa própria do escravo (cf. Jo 13,4-17).

“Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias”. Os quatro evangelistas e At 13,25 mencionam esta frase. A Bíblia do Peregrino (pp. 2323.2394) comenta: A frase das sandálias com o gesto de agachar-se é provável alusão ao esposo da lei do levirato (Dt 25,1-5; Rt 4), como que sugerindo que ele não vai suplantar o Messiaso símbolo se esclarece na versão do evangelho de João (Jo 1,27.30; 3,28s). Uma longa tradição transmite essa interpretação teológica das sandálias, ao passo que outra tradição, também antiga, reduz o tema a uma expressão ética de humildade.

A Bíblia do Peregrino (p. 2394) comenta: “O que vem” ou há de vir, o vindouro (equivale ao nosso futuro) podia ser título do Messias. É ele que traz o autêntico batismo: não de água que limpa, mas do Espírito Santo que vivifica e consagra; não água de rio, mais vento ou “alento” que desce do céu e transforma o deserto em jardim (cf. Is 32,15).

“Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo”; Mt 3,11 e Lc 3,16 acrescentam “e com fogo”; na fonte Q, que ambos usam, significava o julgamento; Lc pode pensar também em Pentecostes (At 2,3).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1923 – 1924) comenta: Esta palavra evidencia a distância entre a atividade de João caracterizada pelo batismo de água, e a do Messias, definida como um batismo cristão (At 11,16; 19,1-6), o que parece ser designado aqui como purificação e santificação escatológico pelo Espírito Santo é a obra global da salvação inaugurada por Jesus (a seita de Qumran esperava-a para o fim dos tempos. Regra 3,6-8).

Obs.: O batismo de João era algo novo e único, que rendeu a João o apelido “Batista” (cf. 6,14.24s; 8,28). Não era igual ao banho de prosélitos (pagãos que se convertiam e se purificavam para poderem entrar em contato com os judeus) nem aos banhos cotidianos da seita dos essênios que se retiravam ao deserto (comunidade de Qumrã) para levar uma vida pura longe da corrupção do templo na capital de Jerusalém.

João é mais do que uma testemunha qualificada, mas o profeta de conversão que confere o batismo. Talvez João não tenha pensado no messias, mas antes no dia do Senhor, o próprio Senhor (Javé) que virá em breve para fazer o julgamento (com fogo) e no qual não basta apenas pertencer ao povo eleito, mas precisa de conversão pessoal (e confissão pública) para se salvar. Não é a própria água (rito do batismo) que salva, mas o batismo (mergulhar no rio Jordão) é uma confirmação: o selo ao perdão que se recebe por sua conversão interior. Como sinal de conversão, obviamente, João não ministrava o batismo a crianças (os apóstolos começaram batizar família inteiras, cf. At 16,15.33; 1Cor 1,16).

João não fez milagres nem transmitiu o Espírito Santo, mas é considerado por Jesus “o maior” entre todos os profetas, “no entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele” (Mt 11,11p), porque é o Espírito Santo através do batismo em Jesus que nos faz filhos de Deus (cf. Rm 8,14-17; Gl 3,36s; 4,4-7).

 

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