10 de janeiro de 2018 – Sábado, 5ª semana

Leitura: 1Rs 12,26-32; 13,33-34

Nas semanas passadas líamos a história da ascensão da monarquia em Israel. Samuel, profeta e último dos “juízes”, ungiu os primeiros reis, Saul (1Sm 9) e depois Davi (1Sm 16). Davi conquistou Jerusalém e fez dela a nova capital (2Sm 5). Lá, seu filho Salomão construiu o templo (1Rs 6-8) e colocou nele a arca da aliança (baú que continha as tábuas dos dez mandamentos, cf. Ex 25,10-22). Mas no reinado de Roboão, filho de Salomão, o reino se dividiu (cap. 12, cf. leitura de ontem). Jeroboão é o líder e depois o rei das dez tribos que formam o Reino do Norte (que ficou com o nome de “Israel”, ou Efraim ou Samaria), separado do Reino do Sul, “Judá” (a tribo de Davi com a capital de Jerusalém).

Jeroboão refletiu consigo mesmo: “Como estão as coisas, o reino vai voltar à casa de Davi. Se este povo continuar a subir ao templo do Senhor em Jerusalém, para oferecer sacrifícios, seu coração se voltará para o seu soberano Roboão, rei de Judá; eles me matarão e se voltarão para Roboão, rei de Judá” (12,26-27).

Para conservar o poder político, precisa controlar a religião. Jeroboão não se esquece do peso decisivo do fator religioso na política (ainda hoje, apesar da separação de estado e religião). Davi lhe ensinou a lição quando transportou a arca para Jerusalém (cf. a procissão em 12,30 com 2Sm 6,13-15). Quem poderá competir com o esplendor do templo salomônico? Para frear essa força de atração no reino do Sul, Jeroboão apela para outros valores.

Depois de ter refletido bem, o rei fez dois bezerros de ouro e disse ao povo: “Não subais mais a Jerusalém! Eis aqui, Israel, os deuses que te tiraram da terra do Egito”. Colocou um bezerro em Betel e outro em Dó. Isto foi ocasião de pecado, pois o povo ia em procissão até Dã para adorar um dos bezerros (12,28-30).

Dois destes valores na reforma religiosa de Jeroboão são a antiguidade e a tradição. Dã, perto de uma fonte do Jordão, e Betel, no caminho de Jerusalém, delimitam o novo reino no norte e no sul. Eram santuários antigos e venerados (cf. Am 3,14; 4,4; 7,12). Betel está ligada a Abraão e Jacó (cf. Gn 12,8; 28,10-22). Dã remonta ao tempo dos juízes, era um centro de atração para as tribos do norte (Jz 17-18). Em segundo lugar, o culto com imagens, no estilo cananeu, atrai o povo com mais força que o culto sem imagens de Jerusalém.

Jeroboão agia com intenções políticas e não pensava em mudar de divindade, só queria dar outro símbolo da presença de Javé Deus. À arca da aliança, que era em Jerusalém o símbolo da presença divina, ele opõe o bezerro, símbolo do pedestal de Javé, o invisível (segundo os paralelos orientais, o bezerro não era a imagem de um deus invisível, mas seu pedestal, como o era a arca; cf. Ex 25,22). Jeroboão se apoia sobre uma velha tradição, que aparece também no episódio do “bezerro de ouro” (Ex 32). Esses dois relatos foram transformados pela polêmica. Já no reino do norte, o profeta Oseias polemiza contra o bezerro de Betel (Os 8,5s; 10,5s), Amós é expulso do “santuário do rei” em Betel (Am 7,13).

“Eis aqui, Israel, os deuses que te tiraram da terra do Egito” (v. 28). A expressão é lida literalmente na narração do bezerro de ouro (Ex 32,4). A palavra hebraica Elohim pode significar Deus ou deuses, mas o verbo aqui está no plural. Muitos suspeitam que tal narração fosse redigida posteriormente, com espírito polêmico contra o culto de Betel (como na reforma o rei Josias que concentrou o culto em Jerusalém, cf. 2Rs 22-23; Dt 12). É uma formula que reconhece o Senhor Javé como Deus e libertador do povo; na tradição israelita sublinha a história, e não a fecundidade da terra como nos cultos cananeus. A imagem do bezerro ou touro representava normalmente o deus cananeu Baal, o deus da fertilidade.

Mas, escolhendo o mesmo símbolo do deus cananeu Baal, Jerobão abriu a porta aos piores compromissos (cf. Os 13,2: “homens beijam bezerros”). Esse será o “pecado de Jeroboão”, que voltará como um refrão na condenação dos reis de Israel pelo historiador deuteronomista. Para o autor que escreve no tempo da reforma de Josias (640-609), este é o pecado original do reino do norte: Jeroboão o inicia, outros reis o repetem e continuam a destruição do reino lhe porá fim (em 722 a.C.).

Jeroboão construiu também templos sobre lugares altos, e designou como sacerdotes homens tirados do povo, que não eram filhos de Levi. E instituiu uma festa no dia quinze do oitavo mês, à semelhança da que era celebrada em Judá. E subiu ao altar. Fez a mesma coisa em Betel, para sacrificar aos bezerros que havia feito. E estabeleceu em Betel sacerdotes nos santuários que tinha construído nos lugares altos (vv. 31-32).

Como simples agravante, Jeroboão cria santuários nas colinas (“lugares altos”), outra tradição cananeia).

Em terceiro lugar, democratiza o sacerdócio: escolhe entre o povo os sacerdotes sem privilégios cortesãos (como os tinham os levitas em Jerusalém), as relações familiares assim criadas vinculam o povo com o novo culto. Por fim, institui uma grande festa de peregrinação popular no outono: o novo santuário de Betel é consagrado durante a festa das Tendas, como foi o templo de Salomão (cf. 1Rs 8,2.65).

A partir da reforma de Jeroboão seria interessante comparar as diversas reformas e cismas religiosas (cf. Josias, Esdras, Jesus, Paulo, Lutero, Calvino, Napoleão, Vaticano II, etc.) com seu contexto político (estruturas monarquias ou mais democráticas,…), mudanças de valores ou destaques como antiguidade e tradição (AT/NT, dogmas, liturgias…), símbolos da presença divina (Bíblia, sacramentos, imagens, templos, festas, lugar dos pobres, natureza e história,…) e ministérios (clero exclusivo/ordenado ou leigos e leigas,… ).

Depois disso, Jeroboão não abandonou o seu mau caminho, mas continuou a tomar homens do meio do povo e a constituí-los sacerdotes dos santuários dos lugares altos. Todo aquele que queria era consagrado e se tornava sacerdote dos lugares altos. Esse modo de proceder fez cair em pecado a casa de Jeroboão e provocou a sua ruína e o seu extermínio da face da terra (13,33-34).

Em todo este relato o autor bíblico quer mostrar quanto Jeroboão desobedeceu aos mandamentos do Deuteronômio: instituição de lugares altos (Dt 12,2), festas celebradas fora de Jerusalém (Dt 16,5s.11), usurpação da função sacerdotal por israelitas que não pertenciam à tribo de Levi (Dt 18,5). O autor dos livros dos Reis faz dezenove vezes alusão a este “pecado” ou ao “caminho” pelo qual Jeroboão, rei de Israel arrastou seu povo.

Esta nota final é um sumario que generaliza e simplifica: o altar de Betel entra na categoria de um “lugar mais alto”. A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 503) comenta sobre estes lugares altos (cf. 3,2-4 e o comentário de sábado da 4ª semana):

Os lugares altos (cf. 1Sm 9,12…) são elevações – naturais ou artificiais – sobre os quais os canaanitas ofereceram habitualmente sacrifícios aos seus deuses e praticavam certos ritos religiosos: ritos de fertilidade, culto aos mortos, prostituição sagrada. Os lugares altos eram providos de altar e, sobretudo, de uma estela, provável símbolo da divindade, e de um poste sagrado. Símbolo talvez da deusa Asherá ou, então símbolo viril. Associados aos lugares altos, encontram-se muitas vezes árvores sagradas, provavelmente símbolos de fertilidade; sua presença talvez remonte aos tempos do nomadismo. Quando os hebreus se instalaram na Palestina, sofreram intensa influência das práticas dos canaanitas e se puseram a oferecer, nos mesmos lugares altos, seus sacrifícios ao Senhor. Com toda razão, os lugares altos tornaram-se cada vez mais suspeitos aos olhos dos profetas (Os 10,8; Am 7,9; Jr 3,2; Ez 20,28-29 etc.) e a todo um movimento cujos ecos percebemos nos livros dos Reis. O sincretismo que reinava nos lugares altos suscitava e mantinha no espírito dos adoradores muitos equívocos quanto à pessoa e a natureza da divindade que ali se adorava. No tempo de Salomão, ainda não se havia tomada consciência do perigo que os lugares altos representavam para a fé dos israelitas. Já sob Ezequias (2Rs 18,4), mas principalmente durante o reinado de Josias, em 622 a.C., foi proibido oferecer sacrifícios nos lugares altos (2Rs 22-23); e qualquer cerimônia desse gênero devia ser celebrada no Templo de Jerusalém. Estas disposições só foram aplicadas muito superficial e momentaneamente. O uso dos lugares altos só veio a terminar com o exílio em Babilônia.

Obs.: A nossa liturgia não continua agora com a história dos reinos divididos (2Rs 13-25), mas apresenta a carta de Tiago na próxima semana. Mas na 10ª a 12ª semana retornaremos aos livros dos Reis (1Rs 17-2Rs 25).

 

Evangelho: Mc 8,1-10

Chegamos quase à metade do Evangelho de Mc entrando no oitavo capítulo. Esse bloco 8,1-26, antes da confissão de Pedro (8,27ss), repete aproximadamente a sequência de 6,32-7,37. Apesar de os conteúdos e desenvolvimentos diferem bastante, podemos ver a seguinte correspondência:

Dá de comer a 5000/4000 pessoas (6,32-44 e 8,1-10);

Cruza o lago (6,45-56 e 8,10);

Discussão com fariseus (7,1-23 e 8,11-13);

O tema do pão (7,24-30 e 8,14-21);

Cura de um mudo/cego (7,31-37 e 8,22-26).

Mc conta o milagre da comida (multiplicação dos pães) uma segunda vez (também Mt 15,29-39). Os peritos bíblicos supõem a existência de dois relatos já antes da redação de Marcos. É possível imaginar que Jesus tenha saciado mais de uma vez uma multidão, mas também pode ser que um único evento tenha sido transmitido por duas comunidades diferentes o que explicaria a duplicata com suas leves diferenças. Assim aconteceu com o relato da instituição da Eucaristia que foi transmitido em duas formas, uma pela tradição judeu-cristã da Palestina (Mc 14,22; Mt 26,26-29) e outra pela tradição grega (Lc 22,19-20 e Paulo em 1Cor 11,23-25).

Mc faz o leitor imaginar que uma segunda multiplicação dos pães aconteceu em território pagão, pois não indica mudança de localidade depois da cura do surdo na “Decápole” (dez cidades gregas na margem leste do lago Genesaré, cf. 7,31-37).

Naqueles dias, havia de novo uma grande multidão e não tinha o que comer. Jesus chamou os discípulos e disse: “Tenho compaixão dessa multidão, porque já faz três dias que está comigo e não têm nada para comer. Se eu os mandar para casa sem comer, vão desmaiar pelo caminho, porque muitos deles vieram de longe” (vv. 1-3).

Como em 6,34, início e impulso é a compaixão do messias. Aqui Jesus está mais preocupado com a fome físico do povo; em 6,34 a compaixão o levou a ensinar muita coisa. Em 6,35, os discípulos perguntaram, mas aqui é Jesus que abre o diálogo, constando que “já faz três dias” (tempo para Deus se manifestar ajudando, cf. Gn 40,13; Ex 19,16; Js 1,11; Os 6,2; Jo 2,1) e que “vão desmaiar pelo caminho, porque muitos deles vieram de longe” (alusão aos povos pagãos? cf. At 2,39; 22,21; Ef 2,12.17; Js 9,6; Is 60,4). “É a hora de piedade, chegou o prazo” (Sl 102,14); “não passarão fome nem sede. Porque os conduz aquele que se compadece deles” (Is 49,10).

Os discípulos disseram: “Como poderia alguém saciá-los de pão aqui no deserto?” Jesus perguntou-lhes: “Quantos pães tendes?” Eles responderam: “Sete.” Jesus mandou que a multidão se sentasse no chão. Depois, pegou os sete pães, e deu graças, partiu-os e ia dando aos seus discípulos, para que os distribuíssem. E eles os distribuíam ao povo. Tinham também alguns peixinhos. Depois de pronunciar a bênção sobre eles, mandou que os distribuíssem também. Comeram e ficaram satisfeitos, e recolheram sete cestos com os pedaços que sobraram. Eram quatro mil, mais ou menos. E Jesus os despediu (vv. 4-9).

Simplificam-se a cena e o diálogo. A pergunta dos discípulos parece ignorar a primeira multiplicação. Para Mc, sempre custa aos discípulos compreender (cf. 8,14-21; etc.). Mas em seguida, tudo transcorre como na primeira multiplicação: a pergunta de Jesus sobre o número dos pães disponíveis, a refeição com pães e peixes, a fórmula eucarística da benção, a comida abundante até todos ficarem satisfeitos e sobrarem cestos (com números) e a despedida.

Mudam alguns detalhes. Em 6,38.43s, os números aludiram ao povo de Israel: “cinco” mil pessoas aos cinco livros de Moisés (“Penta”teuco: Gn, Ex, Lv Nm, Dt); “doze” cestos às doze tribos de Israel (cf. Gn 35,22b-25; Ex 1,2-3 etc.). Aqui, os números mudam para “sete” cestos e “quatro mil” pessoas. Os números diferentes da segunda multiplicação dos pães podem indicar todas as nações da terra, porque “quatro” (mil) simboliza a terra cujos pontos cardiais são quatro (norte, sul, leste, oeste). “Sete” é número sagrado e significa plenitude, cf. a semana inteira da criação em Gn 1; então é um número mais universal do que doze. Lc diferencia da mesma maneira: os “doze” apóstolos judeus (Lc 6,13-16) e os “sete” diáconos helenistas-gregos em (At 6,1-6); cf. os dois relatos de envios: dos “doze” apóstolos (Lc 9,1) e dos “setenta” discípulos (Lc 10,1).

Outra diferença é a própria bênção dos pães: em 6,41, Jesus “abençoou” os pães; aqui em 8,6 “deu graças” (verbo grego eucharistein); a mesma diferença no vocabulário consta na última ceia entre a tradição judeu-cristã (Mc 14,22; Mt 24,26) e a tradição grega-helenista (1Cor 11,24; Lc 22,19). Aqui em v. 7 menciona-se uma bênção extra sobre os peixinhos (v. 7), é atípica para os judeus e indica uma tradição grega.

Como todo judeu piedoso, Jesus rezou antes da refeição, “deu graças” e distribuiu os pães. Assim, a multiplicação dos pães tem algo de eucarístico, apesar dos peixinhos e de faltar o vinho. Mas não se deve interpretar a multiplicação dos pães apenas no sentido sacramental ou espiritual. Mc e Mt insistem por narrar o mesmo milagre duas vezes (Lc o narra só uma vez, mas duplicou a missão dos discípulos cf. 9,1-6; 10,1-8): o milagre não é exibição de poder, mas resultado da compaixão do Senhor (cf. Is 49,10.13).

Ao total temos seis relatos da multiplicação de pães nos quatro evangelhos. Isto mostra a importância que os primeiros cristãos a deram, provavelmente nas suas assembleias eucarísticas. Apesar da separação da eucaristia da refeição comum (cf. 1Cor 11,17-34), permanece para nós o incentivo de sentir compaixão, partilhar com os necessitados (cf. Mc 6,37p) e não desperdiçar os alimentos. Se todos dessem o que têm, ninguém passaria fome (cf. At 2,44-45; 4,32.34-35).

Com a repetição da multiplicação dos pães (com outros números) em terras pagãs, o evangelista sublinha que os benefícios da salvação (e a Eucaristia) são também para os povos pagãos. O milagre forma assim um tríptico junto com os dois relatos procedentes: da menina endemoninhada e do surdo (e representa a iniciação: renunciar ao demônio; receber e professar a fé; participar a eucaristia). Mas não são mais migalhas (7,27s) o que é dado aos comensais pagãos da cena presente. “Ele faz bem” (7,37) também isto: dar de comer a todos os povos famintos, “cumulou de bens os famintos” (Sl 107,9; 147,7; Ne 9,15).

Subindo logo na barca com seus discípulos, Jesus foi para a região de Dalmanuta (v. 10).

Como em 6,45-52, segue-se uma viagem por mar (mas agora sem Jesus andar sobre o mar) e, à pouca distância, um diálogo com os fariseus (vv. 11-13; cf. 7,1-13) e sobre o significado do milagre (vv. 14-21; cf. 7,14-23).

Na origem do relato do milagre da comida, a multidão faminta se encontrava mais no interior do deserto, não tão perto do mar, onde teria facilidade de pescar. Mas já em 6,30-52 a viagem na barca estava juntada à multiplicação dos pães: uma tradição judeu-cristã (anterior a Mc) deve ter associado o maná cristã no “deserto” (v. 4) com o poder de Jesus sobre as águas, como Moisés antigamente dividiu o mar e saciou o povo no deserto (cf. Ex 14; 16).

Aqui, em v. 10, foi Mc que continua com seu itinerário. Ainda não se conseguiu localizar a misteriosa “Dalmanuta”, nome de uma localidade desconhecida como “Magadã” no paralelo de Mt 15,39; ou talvez seja a transição de uma expressão aramaica mal identificada.

O site da CNBB comenta: Jesus age por compaixão em relação aos sofrimentos e dificuldades do povo de sua época. Ele ama com amor eterno e o seu amor se transforma em solidariedade, em gesto concreto. Jesus não pára diante das dificuldades que são apresentadas, porque sabe que o amor supera todas as dificuldades. Jesus leva as outras pessoas a sentirem compaixão com ele e assim colaborarem na superação dos problemas. Os discípulos colaboram na medida em que organizam o povo e distribuem os pães. Outros contribuem também doando os sete pães, que poderiam garantir o próprio sustento. Assim, a compaixão cria uma rede de solidariedade que supera a fome no deserto.

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