10 de julho de 2016 – 15º Domingo Ano C

1ª leitura: Dt 30,10-14

 A 1ª leitura foi escolhida porque ecoa no evangelho através da maior lei do amor que não é difícil demais para cumprir porque está em nosso coração. O livro de Dt reafirma a Lei proclamada no monte Sinai e destaca o amor a Deus e a fidelidade a seus preceitos, na boca de Moisés no Moab, antes de entrar na terra prometida.

(Moisés falou ao povo, dizendo:) Ouve a voz do Senhor teu Deus, e observa todos os seus mandamentos e preceitos, que estão escritos nesta lei. Converte-te para o Senhor teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma (v. 10).

O v. 10 lembra o shema de 6,4s: “Ouve (shema) Israel, o Senhor, teu Deus, é o único Senhor e amarás o Senhor teu Deus com todo coração, com toda tua alma e toda sua força”, citado por Mc 12,29s, e em parte no evangelho de hoje (Lc 10,27). Aqui não fala do amor a Deus, mas em observar “todos os seus mandamentos e preceitos, que estão escritos nesta lei” (cf. Jo 14,15.21.23 e 15,9s que falam de amor, mandamentos e palavra, mas não da lei escrita), e “converter-se” (cf. Mc 1,15p).

Na verdade, este mandamento que hoje te dou não é difícil demais, nem está fora do teu alcance. Não está no céu, para que possas dizer: “Quem subirá ao céu por nós para apanhá-lo? Quem no-lo ensinará para que o possamos cumprir?” Nem está do outro lado do mar, para que possas alegar: “Quem atravessará o mar por nós para apanhá-lo? Quem no-lo ensinará para que o possamos cumprir?” Ao contrário, esta palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu coração, para que a possas cumprir (vv. 11-14).

Na literatura sapiencial, a sabedoria é fonte de felicidade, mas transcendente, distante, difícil de entender, um mistério para os seres humanos (Jó 28; Ecl 7,24; Br 3,15; cf. 1Cor 2,6-16; diferente Pr 8,1ss). O Deus de Israel (Javé), porém, se revela na Lei (Eco 24,23-34; Sl 119), dando à sabedoria uma moradia em Israel e Jerusalém.

O apóstolo Paulo citará os vv. 12-14 em Rm 10,6-8, mudando o “mar” para o “abismo” (do hades, o reino dos mortos), declarando que a palavra da fé (“Jesus é o Senhor” e  “Deus o ressuscitou dos mortos”) é mais perto a cumprir e salvar do que a justiça pelas obras da lei (cf. Eclo 51,26).

Na parábola de Mc 4,1-20p, a Palavra é semeada, mas nem todos a acolhem no coração (cf. Lc 8,21; 11,28). Em Jo 1,14, a Palavra de Deus “se fez carne” no meio dos seres humanos. Em 1Pd 1,23s os cristãos são gerados por uma semente incorruptível que é a “palavra de Deus que vive e permanece…, o Evangelho”.

Em muitas religiões, o ser humano tem que se esforçar para procurar e alcançar um Deus transcendente. No judaísmo, o próprio Deus vem ao nosso encontro através da sua Palavra (Lei, profetas) e, no cristianismo, através do seu Filho. Só o amor divino explica a eleição de Israel e o amor de Cristo revelado na cruz. Para os eleitos tem a consequência de corresponder a este amor entregando-se de todo coração a Deus.

Leitura: Cl 1,15-20

A 2ª leitura neste domingo (e nos próximos) é tirada da carta aos Colossenes. As cartas Fl, Fm, Ef e Cl são chamadas “cartas do cativeiro”, porque foram escritas na prisão (4,4.10.18), em Éfeso (56-57) ou em Roma (60-64). Embora o autor da carta de Cl afirme ser Paulo (1,1; 4,18), muitos biblistas atribuem a autoria da carta a um discípulo dele (talvez Epafras, cf. 1,7), por volta de 80 a.C; só nesta época, já se pode afirmar que “o Evangelho produz frutos no mundo inteiro” (1,6).

A leitura de hoje apresenta um hino cristológico que celebra a grandeza universal de Cristo em duas estrofes. A primeira (vv. 15-17), mais transcendental, tem como centro a criação (“Ele é a imagem de Deus…”), a segunda, mais eclesial, a ressurreição (“Ele é o começo…”), mas as duas partes combinam os atributos cósmicos (vv. 15.16.19) com os da redenção (vv. 14.18.20). A linguagem diferente dos vv. precedentes (vv. 13-14) indica que o hino é um material do qual o autor (um discípulo de Paulo) se apossa e cita de maneira mais completa, provavelmente acrescentando alguns complementos (p. ex. “isto é, da igreja” em v. 18).

A origem do hino pode ser uma adaptação de um hino helenístico (a expressão de v. 19 “plenitude” era abundante na filosofia estóica e gnóstica, mas é também bíblica, cf. Cl 2,9; Is 6,3; Jr 23,24; Sl 24,1; 50,12; 72,19; Sb 1,7; Eclo 43,27), ou é uma composição cristã de inspiração sapiencial. Os livros sapiências do AT (Antigo Testamento) cultivaram um gênero especial: o elogio da Sabedoria como personagem feminina (cf. Pr 1,20-33; 8,1-9,12; etc.). Da personificação, o NT (Novo Testamento) salta para a pessoa, do feminino ao masculino. Como a Sabedoria, Cristo é “imagem de Deus” (Sb 7,26), preexiste toda a criatura (Pr 8,22-26), toma parte ativa na criação (Pr 8,27-30) e conduz os homens a Deus (Pr 8,31-36).

No NT, dois outros hinos celebram igualmente o papel universal e pré-existente de Cristo: Jo 1,1-18 e Hb 1,1-4 (cf. 1Cor 8,6 e Fl 2,5-11), ambos lidos em 25 de dezembro. Em Fl 2,5-11, o próprio Paulo já incorporou um hino que parte da pré-existência de Jesus. Estes hinos provavelmente tiveram sua origem na liturgia (cf. ainda 1Tm 3,16 e 1Pd 2,22-25).

Cristo é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele, foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas e todas têm nele a sua consistência (vv. 15-17).

Cristo (lit. Ele, referindo se ao Filho amado de Deus Pai nos vv. 12-14) é exaltado como cabeça do universo (e da Igreja em v. 18): um entrelaçado de alusões envolve esse tema. Em hebraico, “começo”, “primícias”, “chefe” derivam da mesma raiz, a de “cabeça” (cf. no português: “encabeçar”). A própria Bíblia começa com esta palavra: Be-reshit…, “No início,…” (Gn 1,1; cf. Jo 1,1).

O Deus invisível e inatingível se torna visível e acessível em Jesus, o Filho que se encarnou no mundo e na história. Jesus é, portanto, o verdadeiro Adão (Gn 1,26s; cf. 2Cor 4,4). Existindo “antes de todas as coisas” (criatura), ele se torna modelo, cabeça e único mediador do universo criado (cf. Hb 1,2s; Jo 1,2s.10).

Cristo é a “imagem de Deus” (2Cor 4,4) como homem criado por Deus (cf. Gn 1,26), mas também como Sabedoria (Pr 8,22-36; Sb 7,26; cf. Pr 3,19; 9,2-4). O filósofo grego Platão identificou esta imagem com o mundo; o filósofo judeu Filon, com o logos (palavra); Paulo e João, com Jesus (cf. 2Cor 4,4; Jo 1,14). Paulo fala também dos seres humanos à imagem de Cristo ou de Deus (Rm 8,29; 1Cor 11,7; 15,49; 2Cor 3,18).

Enquanto Deus era invisível, a proibição de fazer imagens (Ex 20,3-5; Dt 5,7-9; etc.) valia para não confundir Deus com uma criatura qualquer ou com deuses monstruosos (no Egito, eram apresentadas com cabeças de animais). Mas em Jesus Cristo, a Palavra invisível se tornou carne, Deus se tornou visível no seu Filho (cf. Jo 1,14.18; 12,45; 14,9; Tomé tocou nele, cf. Jo 20,27s). Aos poucos os cristãos entenderam a nova situação, a nova aliança (NT), a partir daí fazer imagens de Jesus (e dos santos) não poderia ser mais proibido, e mudou-se o primeiro mandamento de Ex 20,3-5 (como mudou também o terceiro, do sábado para o domingo).

“Primogênito” implica em Israel, preeminência e consagração (Ex 13,11-16; Lc 2,7.23); o termo designa também o papel privilegiado da Sabedoria (Pr 8,22). “Primogênito de toda criação (ou de toda criatura)”, trata-se do Cristo preexistente (“anterior a toda criatura”), mas sempre considerando (cf. Fl 2,5) a pessoa histórica e única do Filho de Deus feito homem. É esse ser concreto, que é “imagem de Deus” enquanto reflete numa natureza humana visível “a imagem do Deus invisível” (v. 15; cf. Rm 8,29; 2Cor 4,4) e é ele que pode ser chamado “criatura”, mas “primogênito” na ordem da criação, como um primado de excelência e de causa, assim como de tempo. O Credo Niceno-Constantinopolitano especifica: o Filho de Deus é “gerado, não criado”, contra a heresia de Ário (séc. IV) que queria aceitar Jesus só como se fosse a primeira criatura e não como pessoa divina da Trindade (no séc. 19 nos EUA, as Testemunhas de Jeová surgiram e retomaram a esta mesma heresia).

“Por causa dele, foram criadas todas as coisas” Ele é o primogênito de toda criatura porque tudo o mais foi criado por sua intercessão. Algumas expressões em seguida mostram o alcance da criação: começa com a antítese – “céus e terra, visíveis e invisíveis” – e continua com sinônimos de força e poder: “tronos, soberanias, principados e autoridades” designam aqui as potências invisíveis (angélicas ou astrais) do mundo sincretista sobre as quais se especulava em Colossas (cf. 2,15; Ef 1,21; 3,10; 6,12; Rm 8,38; 1Cor 8,4-6; 15,24; Fl 1,21; 2,10s; 1Pd 3,22; em 2Pd 2,10 e Jd 8 estes poderes são terrenos).

Ele é a Cabeça do corpo, isto é, da Igreja. Ele é o Princípio, o Primogênito dentre os mortos; de sorte que em tudo ele tem a primazia, porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres, os que estão na terra e no céu, realizando a paz pelo sangue da sua cruz (vv. 18-20).

Primeiro a ressuscitar dos mortos, Cristo é o novo Adão (1Cor 15,20-22), pois na nova criação ele é o “primogênito” (Rm 8,29; 1Cor 15,20; Ap 1,5). Assim, o poder vital de Deus se torna acessível aos homens por meio de Cristo, reconduzindo a criação à “paz”. A pacificação do universo está na remissão dos pecados (v. 14) realizada por Cristo na cruz. Na sequência do seder (“ordem” da ceia pascal judaica), o terceiro ou quarto cálice é o cálice da paz, o qual Jesus identificou com seu sangue na última ceia (cf. Mt 26,28).

No hino primitivo, o termo “corpo” (v. 18) significava o corpo cósmico, o “universo”; com o acréscimo da expressão “que é a Igreja”, passou a indicar a comunidade da nova criação, da qual Cristo é a “cabeça”, tema importante em Cl (1,24.27; 2,17.19; 3,15).

Várias vezes, Paulo já comparou a Igreja com o Corpo de Cristo (cf. 1Cor 6,15; 10.16s; 12,12-27; Rm 12,4s), mas entendia igreja como entidade local e não fez distinção entre corpo e cabeça. Em Rm 12 e 1Cor 12, o corpo designa a comunidade dos fieis (em 1Cor 12,21 a cabeça é só um membro do corpo); em Ef e Cl, Cristo, chefe das potências e do universo, torna-se chefe da Igreja universal como cabeça personificada (v. 18; Ef 1,23; 4,15s; 5,23). Cristo é a cabeça, por sua prioridade no tempo (v. 1; ele é o primeiro ressuscitado, cf. 1Cor 15,23), e também por ser “princípio” na ordem da salvação (v. 20).

“Deus quis habitar nele com toda a sua Plenitude” ou “Deus, a Plenitude total, quis nele habitar” (v. 19). No gnosticismo (neoplatônico), a Plenitude era todo o corpo de poderes celestiais e emanações espirituais procedente de Deus. No ensinamento errôneo, que o autor da carta criticará no cap. 2, provavelmente estavam presentes ideias gnósticas.

Já no AT celebra-se o mundo cheio da presença e da glória de Deus que nele habita (cf. Is 6,3; Sl 24,1; 68,17) é a sabedoria é considerada morada de Deus que vem habitar na terra (cf. Pr 8,12-21; Eclo 24,7s.10; Br 3,38; cf. Jo 1,14). Esta plenitude reside agora em Cristo, “pois nele habita corporalmente toda plenitude da divindade” (2,9; cf. 2,2; Ef 1,10.23; 3,19; 4,13; Jo 1,16). No NT, o termo é geralmente determinado (plenitude de tempo, das nações, da Lei, de Deus), aqui empregado de modo absoluto (então próximo de “Espírito”).

“Quis reconciliar por ele e para ele todos os seres, na terra e nos céus” (v. 20). O sujeito de reconciliação é sempre Deus (Rm 5,10; 2Cor 5,18-20). Aqui, adquire sua maior extensão, englobando o céu e a terra.

 

Evangelho: Lc 10,25-37

Ouvimos hoje a questão do maior mandamento. Enquanto Mc e Mt relatam este episódio durante os últimos dias de Jesus em Jerusalém, Lc o insere no começo da viagem de Jesus a Jerusalém, encabeçando os ensinamentos dados aos discípulos. Ele completa a lição acrescentando-lhe uma parábola própria, a do bom Samaritano que demonstra como o discípulo deve ser o “próximo” de todos.

Um mestre da Lei se levantou e, querendo pôr Jesus em dificuldade, perguntou: “Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” Jesus lhe disse: “O que está escrito na Lei? Como lês?” Ele então respondeu: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua força e com toda a tua inteligência; e ao teu próximo como a ti mesmo!” Jesus lhe disse: “Tu respondeste corretamente. Faze isso e viverás” (vv. 25-28).

Antes de analisar o texto de Lc, devemos compará-lo a Mc 12,28-24 que Lc copiou, mas modificou. Em Mc, era um “escriba” e sua pergunta era diferente: “Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” No AT, precisamente na Lei de Moises (Torá, ou Pentateuco, os primeiros cinco livros) existem 613 leis ou mandamentos. As repostas dos rabinos geralmente citaram um mandamento do decálogo (1º ou 3º ou 4º ou 5º mandamento). Jesus, porém, responde citando nenhuma lei do decálogo, mas duas frases distintas de dois livros do Pentateuco: Dt 6,4-5 e Lv 19,18. A resposta resume as duas tábuas do decálogo: amor a Deus (1º a 3º mandamento) e ao próximo (4º a 10º mandamento), mais ainda, resume a essência e o espírito da vida humana num ato único com duas faces inseparáveis: “Amar a Deus” com entrega total (“coração, alma, força e inteligência”) de si mesmo, porque o Deus verdadeiro e absoluto “é um só” (Dt 6,4) e, entregando-se a Deus, o homem desabsolutiza a si mesmo, o próximo e as coisas. “Amar ao próximo” como a si mesmo, isto é, a relação num espírito de fraternidade e não de opressão ou de submissão. O dinamismo da vida é o amor que tece as relações entre os homens, levando todos os encontros, confrontos e conflitos que geram uma sociedade cada vez mais justa e mais próxima do Reino de Deus.

Em Mt 22,36 e Mc 12,38, a pergunta refere-se, à maneira judaica, ao “grande/maior” (Mt) ou ao “primeiro” (Mc) mandamento. Lc prefere uma formulação mais significativa para os seus leitores gregos e romanos, não interessados numa disputa entre rabinos sobre a lei mosaica (Mt sim), por isso o “mestre da Lei” (legista) lança uma pergunta mais ampla sobre a salvação ou seja “ganhar a vida eterna” (cf. 18,18p). Em Lc, porém, Jesus responde com outra pergunta (cf. 20,3). Assim, ele obriga o seu interlocutor a tomar por si mesmo uma posição.

Em Mc 12,34, Jesus reconheceu que o escriba “não está longe do Reino de Deus”. Em Mt 22,35, um dos legistas fariseus arma uma cilada a Jesus. Em Lc, o escriba quer “pôr Jesus em dificuldade”, no entanto, Jesus encontra nele um interlocutor bem-disposto (vv. 27s.37): Aqui é o mestre da Lei quem acha a resposta certa, enquanto em Mt 22,37 e Mc 12.29 é Jesus quem a dá. Na realidade, os rabinos da época poderiam ter citado ambos os textos, um depois do outro: mas é duvidoso que eles atribuíssem a mesma importância ao segundo e ao primeiro. Lc quer mostra aqui como a mensagem de Jesus estava preparada pelo AT (cf. 16,31).

O teólogo (mestre da Lei) sabe que o amor total a Deus e ao próximo é que leva à vida (Lc 10,28; cf. Lv 18,5). Mas, não basta saber. É preciso amar concretamente.

Ele, porém, querendo justificar-se, disse a Jesus: “E quem é o meu próximo?” (v. 29).

Para justificar sua pergunta inicial, ou antes, querendo mostrar a seriedade da sua indagação, o legista pergunta: “Quem é o meu próximo?” No AT, a questão quase não se põe: o próximo é todo membro do povo de Israel, excluindo os estrangeiros (Ex 20,16s; 21,14.18,35; Lv 19.11.13.15-18…). Lc introduz essa pergunta para apresentar a ampliação, por Jesus, da noção tradicional.

Na época de Jesus, a maioria dos judeus já vivia fora do pais, enquanto muitos pagãos residiam no pais. Então havia respostas diferentes. Para os fariseus, o “próximo” era aquele que guardava a Lei de Moisés. Na comunidade de Qumrã, só os próprios membros daquela seita se consideravam “próximos”. Para os zelotas, o “próximo” era aquele que se dispôs para a luta contra os romanos.

Jesus respondeu: “Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes. Estes arrancaram-lhe tudo, espancaram-no, e foram-se embora deixando-o quase morto (vv. 30).

Jesus responde com uma parábola, como em 7,40-43; 14,16-24; 15,3-32. Esta não é uma historinha de comparação (o reino de Deus é como…), mas de um exemplo que apresenta uma atitude a imitar ou evitar (cf. 12.16-21; 14,28-32; 16,1-8; 18.9-14); ela vai conduzir o legista a ultrapassar a sua estreita perspectiva (vv. 36-37).

Um homem “descia de Jerusalém” (capital da Judéia) “para Jericó” (antiguíssima cidade perto da foz do rio Jordão, famosa por suas palmeiras, onde Herodes construiu sua residência de inverno, cf. Js 6; Lc 18,35-19,28). Era um judeu, como se pode concluir do contexto e do lugar. A estrada de Jericó para Jerusalém, de aproximadamente vinte e cinco quilômetros, atravessa o deserto de Judá, e era, naquela época, infestada de bandidos.

Por acaso, um sacerdote estava descendo por aquele caminho. Quando viu o homem, seguiu adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu o homem e seguiu adiante, pelo outro lado. Mas um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal e levou-o a uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte, pegou duas moedas de prata e entregou-as ao dono da pensão, recomendando: “Toma conta dele! Quando eu voltar, vou pagar o que tiveres gasto a mais” (vv. 31-35).

Segundo um uso corrente nas parábolas, aqui aparecem três personagens (cf. Lc 14,18-20; 19,16-24p; 20,10-12). Dois são representantes de Israel, um “sacerdote” e um “levita” (ajudante no templo). De ambos esperava-se que ajudassem seu conterrâneo assaltado, mas passaram adiante.

O sacerdote “estava descendo” de Jerusalém e, em vez de ajudar, “seguiu adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita”.  Os dois não queriam se contaminar com o “quase morto” (os mortos eram considerados impuros, cf. Nm 19,11-16; Is 65,4)? Mas eles não subiram para um serviço religioso no templo de Jerusalém (800m acima do nível do mar), mas “desceram” em direção à cidade das palmeiras, Jericó (200m abaixo do nível do mar), foram ao descanso na chácara?

Inútil conjeturar sobre os seus motivos: eles não passam de um contraste destinado a valorizar a terceira pessoa. Espera-se agora um judeu comum que não tem obrigações cultuais. Mas vem o “samaritano”, o outro, o estrangeiro e o herege, do qual não se esperava normalmente senão ódio.

Os judeus evitaram as relações com samaritanos, os odiavam por causa de suas origens bastardas e divergências religiosas (2Rs 17; Esd 4; Eclo 50,25-26; Jo 4,9; 8,48). Jesus rompe com essas querelas (9,51-56; 10,33-37; 17,16-19; At 8,5-25; cf. Jo 4,4-42). Os samaritanos serão os primeiros a acolher o Evangelho fora de Israel (At 1,8; 8,4-8).

O inimigo/estrangeiro faz o que os amigos/conterrâneos deviam ter feito. Ajuda em tudo quanto pode. A medicina desse tempo utilizava o azeite para acalmar a dor (Is 1,6) e o vinho para desinfetar as feridas.

(E Jesus perguntou:) ”Na tua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” Ele respondeu: “Aquele que usou de misericórdia para com ele.” Então Jesus lhe disse: “Vai e faze a mesma coisa” (vv. 36-37).

A parábola do samaritano mostra que o próximo é quem se aproxima do outro para lhe dar uma resposta às necessidades. Nessa tarefa prática, o amor não leva em conta barreiras de raça, religião, nação, ou classe social. O próximo é aquele que eu encontro no meu caminho. O mestre da Lei estabeleceu limites para o amor: “Quem é o meu próximo?” Jesus muda a pergunta: “O que você faz para se tornar próximo do outro?” Jesus lhe sugere através desta parábola: o próximo é todo homem que se aproxima dos outros com amor, mesmo quando são estrangeiros ou hereges. Ninguém mais deve perguntar como o legista: Quem é o meu próximo? Mas: Como serei eu o próximo de todo homem? O velho particularismo de Israel, bem como o judaísmo dos doutores, estilhaça-se diante do evangelho. O orgulho de Israel ser o povo eleito deu lugar ao universalismo da Igreja, que Lc narrará no seu segundo volume (cf. At 10,34s).

O site da CNBB comenta: O maior mandamento que Jesus nos deu foi a Lei do Amor. Mas infelizmente, a palavra amor tem inúmeras conotações no dia de hoje, a maioria delas contrária ao espírito do Evangelho e aos valores do Reino, daí a importância da parábola do Bom Samaritano que nos mostra que amor de verdade é gesto concreto, é sair do próprio comodismo e ir ao encontro do outro, seja ele ou ela quem for, ser capaz de perceber todos os seus problemas e todas as suas necessidades, deixar-se mover pelo sentimento de compaixão e, cheio de misericórdia, fazer tudo o que estiver ao alcance para que a vida seja melhor para todos.

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