11 de janeiro de 2018 – Quinta-feira, 1ª semana

 

Leitura: 1Sm 4,1-11

Depois da vocação de Samuel em que o protagonista era a Palavra do Senhor (cap. 3; cf. leitura de ontem), ouvimos hoje, no cap. 4, o relato da derrota de Israel na batalha contra os filisteus, em que a protagonista é a Arca da Aliança que continuará com este papel até o final do cap. 6; este baú (tipo andor) que continha as tábuas da Lei (os dez mandamentos; cf. Ex 25,10-20) é um modo da presença do Senhor, algo mais institucional; embora sem imagem pode-se localizar.

Este história sobre a arca (cap. 4-7) é independente, fala das guerras como os filisteus (não relatadas em caps. anteriores). Só tem com a anterior liames acessórios, as menções de Silo, de Eli e de seus filhos. Samuel já não aparece. A arca é agora o assunto principal.

Com a derrota de Israel e a captura da arca o autor quer mostrar que Javé abandonou Silo e o reinado da Samaria (na época da redação). Os termos “Arca da Aliança”, enfileirar-se”, hebreus” e “tenda” indicam uma tradição antiga como base nesta narrativa.

A Bíblia de Jerusalém (p. 424) comenta: Pelo seu conteúdo, seu quadro geográfico e seu senso de humor (cf. cap. 5-6), a narrativa se assemelha à história de Sansão (Jz 13-16). Primeiro independente, ela serviu de prefácio à história monarquista da instituição da realeza (caps. 9-11) que prossegue com a continuação das guerras filisteias (caps. 13-14).

Para se ter a sequência da história da arca, é preciso passar a 2Sm 6 (traslado a Jerusalém por Davi) e depois a 1Rs 8,1-9 (Salomão instala a arca no templo por ele construído).

Naqueles dias os filisteus reuniram-se para fazer guerra a Israel. Israel saiu ao encontro dos filisteus, acampando perto de Eben-Ezer, enquanto os filisteus, de sua parte, avançaram até Afec e puseram-se em linha de combate diante de Israel. Travada a batalha, Israel foi derrotado pelos filisteus. E morreram naquele combate, em campo aberto, cerca de quatro mil homens (vv. 1b-2).

Os filisteus pertencem aos povos indo-germânicos. Vindo do mar (talvez da ilha de Creta) avançaram ao Egito onde foram expulsos por Ramsés III em 1180 a.C. do mar. Assentaram-se no sul da Palestina (na atual faixa de Gaza). Aliás, o nome “Palestina” vem da tradução grega palaistinoi do hebraico pelištim, como os filisteus são chamados no AT. Eles se misturaram com os cananeus, o povo nativo e sua cultura. Dos heteus, aprenderam a produção de ferro que monopolizaram na região (cf. 13,19-22; Jz 13-16). Assim começou a idade de ferro na Palestina.

A Bíblia do Peregrino (p. 493) comenta a ação dos filisteus na leitura de hoje: Agora aspiram estender seu domínio ao nordeste do país. Como são militarmente superiores (armas de ferro), decidem expor-se numa batalha importante, antes que seus vizinhos israelitas se tornem numerosos e forte demais. São as duas forças jovens no território… Os filisteus sobem para a planície de Saron e daí para o curso do Rio Verde (Jarcon) a uma localidade bem defendida [Afec fica ao norte do território dos filisteus]; os israelitas se reúnem a certa distancia. Parece que são os filisteus que tomam a iniciativa, e a primeira derrota é parcial. O autor conta simplesmente, sem explicar as causas: poder-se-ia ligar a desgraça com o delito dos sacerdotes [cf. 2,12-17.22-25], embora o texto não o diga explicitamente.

O povo voltou ao acampamento e os anciãos de Israel disseram: “Por que fez o Senhor que hoje fôssemos vencidos pelos filisteus? Vamos a Silo buscar a arca da aliança do Senhor, para que ela esteja no meio de nós e nos salve das mãos dos nossos inimigos” (v. 3).

A Bíblia do Peregrino (p. 493) comenta: Os israelitas podem retirar-se e reorganizar-se no seu acampamento, regido por um conselho de anciãos – não se mencionam comandos militares. Os anciãos consideram o Senhor como causador da derrota, talvez por sua ausência (cf. Sl 60,12), por isso mandam vir a arca, que é paládio dos israelitas.

O santuário de Silo se encontrava perto; meia jornada bastava para transportar a arca, um objeto bastante pesado e transportado com varais (Ex 37,1-5). Pela arca da aliança, a divindade guerreira está entre a tropa e atua, salvando ou dando a vitória (cf. Nm 10,35 e o cerco de Jericó em Js 6). A arca é sinal da presença de Javé (v. 7), mas esse mesmo v. indica que ela só acompanhava o exército excepcionalmente, apesar do atestado em Js 3-4; 6,6 e 2Sm 11,11.

Então o povo mandou trazer de Silo a arca da aliança do Senhor Todo-poderoso, que se senta sobre querubins. Os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias, acompanhavam a arca (v. 4).

A arca aparece com seus títulos: “da aliança”, porque continuam o documento do tratado (pacto/aliança é contrato); “do Senhor dos Exércitos” (traduzido aqui por “Senhor Todo-poderoso”), que é o titulo cósmico e guerreiro do seu Deus (cf. 1,3.11; Gn 2,1; Is 25,6 etc.) cujos exércitos são os astros e seu povo.

“Senhor Todo-poderoso (Yhwh [Javé] Sebaot), que se senta sobre querubins” é a primeira menção desse título que está relacionado com o santuário de Silo (cf. 1,3.7; o mesmo título em 2Sm 6,2; 2Rs 19,15; Is 37,16; Sl 80,2; 99,1; 1Cr 13,6; ). Os “querubins” são personagens conhecidas há muito tempo na mitologia mesopotâmica, esfinges aladas que franqueavam os tronos divinos ou reais da antiga Síria. Aqui são provavelmente quadrúpedes com rosto humano (esfinges) e cuja função era proteger a arca que recobriam (cf. Ex 25,10-20; 37,1-5). Em Silo, como no Templo de Jerusalém (1Rs 8,6), os querubins e a arca são o trono de Javé Deus, a “sede” da sua presença invisível.

Essa acumulação de títulos poderia ser posterior. Os dois sacerdotes, filhos de Eli, custodiam a arca e se espera que são protegidos por ela.

Quando a arca da aliança do Senhor chegou ao acampamento, todo Israel rompeu num grande clamor, que ressoou por toda a terra (v. 5).

A Bíblia do Peregrino (p. 493) comenta: A chegada da arca é saudada com o “alarido”, grito ritual, bélico e litúrgico. Prática militar antiga (alalaço dos gregos, ululatus dos romanos, alarido dos mulçumanos), com que os guerreiros se excitam e aterrorizam o inimigo. Pelo seu caráter sacro, deve produzir uma como que descarga de valentia religiosa em seus fieis e um terror pânico irresistível no inimigo. O tremor da terra descreve a ressonância do grito, mas pode insinuar além disso uma reação à teofania.

“Todo Israel rompeu num grande clamor”: é ainda um grito de guerra (como em Js 6,5.20; cf. Am 1,14). Esse brado religioso e guerreiro passará para o ritual da arca e do templo (cf. Nm 10,5.9; 31,6; 2Sm 6,15; Am 2,2; Sf 1,16; Sl 27,6; 33,3; 47,6; 89,16; 150,5 etc.).

Os filisteus, ouvindo isso, diziam: “Que gritaria é essa tão grande no campo dos hebreus?” E souberam que a arca do Senhor tinha chegado ao acampamento. Os filisteus tiveram medo e disseram: “Deus chegou ao acampamento!” E lamentavam-se: ”Ai de nós! porque os hebreus não estavam com essa alegria nem ontem nem anteontem. Ai de nós! Quem nos salvará da mão desses deuses tão poderosos? Foram eles que afligiram o Egito com toda espécie de pragas no deserto. Mas coragem, filisteus, portai-vos como homens, para que não vos torneis escravos dos hebreus como eles o foram de vós! Sede homens e combatei!” (vv. 6-9).

Para os filisteus, os israelitas são “hebreus” (cf. vv. 6.9; 13,19; 14,11; 29,3), é o nome que os estrangeiros dão aos israelitas (Ex 1,16 etc.) e é, talvez depreciativo. Os israelitas tinham consciência de serem distintos dos hebreus. O termo poderia designar uma população flutuante (o egípcio hapiru significa migrante) e tomar, na boca dos filisteus, um significado satírico, como na boca dos egípcios em Gn 39,17; 41,12; Ex 1,15s; 2,6. Nesta batalha está em jogo o domínio, ser senhores ou vassalos (escravos).

A reação dos filisteus vai progredindo: primeiro surpresa, depois “medo”, em seguida ânimo, “coragem”. A Bíblia do Peregrino (p. 493) comenta: Os filisteus parecem confundir as pragas do Egito com a derrota do faraó no mar dos juncos (Ex 14). A referência à vitoria sobre os egípcios pode ser simplesmente um recurso do narrador para introduzir a recordação da grande libertação nacional, precisamente na boca dos pagãos, como em Js 2,10 (Raab).

Então os filisteus lançaram-se à luta, Israel foi derrotado e cada um fugiu para a sua tenda. O massacre foi grande: do lado de Israel tombaram trinta mil homens. A arca de Deus foi capturada e morreram os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias (vv. 10-11).

Os gritos e discursos duram narrativamente mais que a batalha, a derrota, a fuga, a captura da arca, as mortes (descritas com rapidez do ritmo dos verbos). A derrota é desconcertante: o Deus que salvou do Egito não pode salvar agora? Aquele que salvou a outros não pode salvar-se agora, presente na arca? (cf. Mc 15,31). As tendas designam o domicílio (cf. Js 22,6-8; Jz 7,8; 1Sm 13,2 etc.)

A morte dos filhos de Eli é mencionada só de passagem, porque já anunciada em 2,34 e 3,13. A notícia da captura da arca é o golpe de graça para Eli e o golpe mortal para sua nora (vv. 12-22).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 410) comenta: Segundo o nosso relato, a arca não é um objeto que se possa manipular inconsideradamente: aos israelitas, ela não traz a vitória esperada; na Filisteia (cap. 5) e em Bet-Shemesh (6,19), sua presença provoca devastações; mais tarde causa a morte de Uzá (2Sm 6,6-7). Talvez o narrador queira sugerir que o lugar próprio da arca é em Jerusalém (cf.  2Sm 15,25), na obscuridade (1Rs 8,12), da câmara sagrada da Casa, no lugar santíssimo (1Rs 8,6), longe dos olhares indiscretos (2Sm 6,19) e dos contatos, mesmo acidentais (2Sm 6,6). Pois o Senhor é o Deus santo (1Sm 6,20; cf. Is 6,3), o totalmente outro, o inapreensível, que exige do seu povo a santidade (Lv 11,44-45 etc.). Relacionado ao castigo dos filhos de Eli, o desastre do Eben-Ezer ilustra desde já o ensinamento de Jr 7 (onde os vv. 12 e 14 se referem a Shilô): se não se quer corresponder às exigências de Deus, de nada serve colocar-se ao abrigo do santuário.

Evangelho: Mc 1,40-45

Poucos dias antes, ainda no tempo de Natal, ouvimos desta mesma cura do leproso, mas narrada por Lc 5,12-16 (cf. comentário de sexta-feira após epifania). Mc é o original de quem Lc copiou.

Um leproso chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: “Se queres tens o poder de curar-me”. Jesus, cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: “Eu quero: fica curado!” (vv. 40-41).

Alguns manuscritos de Mc têm uma versão diferente. Enquanto nossa liturgia como a maioria das Bíblias traduz aqui “Jesus, cheio de compaixão…” (v. 41), a versão diferente (traduzida na Bíblia Pastoral) é: “Jesus, cheio de ira…”! Muitos peritos da Bíblia dizem que esta versão pode ser a mais original, porque é menos comum (portanto mais original) apresentar Jesus com “raiva” em vez de “compaixão” como todo mundo já o conhece. Ambos os sentimentos mexem com nossas entranhas: a palavra hebraica rahamim, “compaixão, misericórdia”, vem do seio materno (útero); como a misericórdia, a raiva se faz sentir também nas entranhas.

A lepra era vista como castigo de Deus, mas Jesus ficou com ira não do leproso, sim da situação de abandono e exclusão total em que o doente se encontrava (cf. 3,5; Lv 13-14). Conhecemos a mesma mistura de sentimentos quando encontramos pessoas doentes ou marginalizadas, abandonadas por familiares ou entidades governamentais.

Jesus reage à profissão de fé do leproso (“se queres ter o poder de curar-me”,  v. 40) e não tem medo de tocar nele. Hoje se sabe que a lepra/hanseníase se transmite via respiração, não pelo toque. Naquela época, porém, era a doença mais temida. Os sacerdotes deviam examinar e excluir o doente de qualquer convívio social se a lepra fosse confirmada (Lv 13-14). Um leproso não devia “chegar perto”, mas alertar os passantes gritando “impuro” para evitar contaminação.

No mesmo instante a lepra desapareceu e ele ficou curado. Então Jesus o mandou logo embora, falando com firmeza: “Não contes nada disso a ninguém! Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova para eles!” Ele foi e começou a contar e a divulgar muito o fato. Por isso Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo (vv. 42-45).

Depois de curá-lo da doença, Jesus restaura também a dignidade dele mandando-o para o sacerdote que deve declarar a cura e revogar a exclusão do convívio (cf. Lv 13-14). Jesus quer manter seu segredo de messias (característica do Ev de Mc), mas não adianta: quanto mais proíbe falar, mais as pessoas divulgam (vv. 44-45; cf. 7,36; 8,25). Agora é Jesus que tem que ficar longe no deserto, lugar dos marginalizados, enquanto o leproso que era marginalizado, volta para o convívio social da cidade, onde é “prova” da cura e testemunho vivo contra um sistema que não cura, mas só declara quem pode e quem não pode participar da vida social.

O site da CNBB resume: Uma das promessas que sempre estão presentes nas profecias do Antigo Testamento a respeito dos tempos messiânicos é a cura da lepra. Isso acontece porque a lepra era uma das doenças mais temidas entre as pessoas, principalmente porque uma das suas consequências era a exclusão social e religiosa. Ao curar uma pessoa da lepra, Jesus não apenas o livra da doença em si que a faz sofrer como também a reintegra na vida social e religiosa. Por isso entendemos a alegria do homem que foi curado, que fez com que ele não fosse capaz de guardar o fato só para si, mas passou a divulgá-lo de tal modo que Jesus não podia mais aparecer em público.

Voltar