11 de março de 2017 – Sábado, Quaresma 1ª semana

 

Leitura: Dt 26,16-19

A leitura nos apresenta a conclusão do corpo legal do livro de “Deuteronômio” (esta palavra grega significa “segunda lei”, ou seja, segunda edição da lei). Deus já selou uma aliança com seu povo no meio do deserto Sinai (Ex 24), agora se apresenta este código Deuteronômio 40 anos depois, antes de entrar na terra prometida. Moisés dirige a palavra ao povo de Israel.

Hoje, o Senhor teu Deus te manda cumprir esses preceitos e decretos. Guarda-os e observa-os com todo o teu coração e com toda a tua alma (v. 16).

O v. 16 corresponde ao início deste código em 12,1 com “esses preceitos e decretos”. Mas o Dt sempre insiste também no comprimento afetivo deles “com todo o teu coração e com toda a tua alma” (cf. 6,5; 10,12-13). A aliança é uma relação de compromisso mútuo. “Hoje” (vv. 16.17.18) se ratifica esta aliança como um contrato envolvendo as duas partes (Deus, povo).

Tu escolheste hoje o Senhor para ser o teu Deus, para seguires os seus caminhos, e guardares seus preceitos, mandamentos e decretos, e para obedeceres à sua voz. E o Senhor te escolheu, hoje, para que sejas para ele um povo particular, como te prometeu, a fim de observares todos os seus mandamentos (vv. 17-18).

Aqui é o único caso na Bíblia de semelhante declaração dupla, cada dos parceiros da aliança obtendo a declaração do outro. Pela forma parece uma aliança entre iguais, mas a iniciativa é sempre de Deus (sua promessa, “como te prometeu”, “como ele disse” vv. 18.19; 7,8), tratando-se aqui de duas declarações semelhantes, evocando cada uma o papel das duas partes.

Javé Deus ama seu povo (4,32-38) e quer a liberdade do seu povo (cf. Ex 3,8; 20,2; Dt 5,6). Um contrato valido se baseia na liberdade da escolha e consciência: “Tu escolheste hoje o Senhor” (v. 17), “o Senhor te escolheu, hoje…” (v. 18).

O Senhor propõe ser o Deus de Israel que liberta, dá vida e exige obediência e seus mandamentos; o povo se compromete a ser reconhecido como povo de Deus, se puser em prática sua vontade, será para ele um povo “particular” (v. 18), lit. “parte adquirida, propriedade”.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 125) comenta: Designando o tesouro do rei em 1 Cr 29,3 e Ecl 2,8, a expressão é aplicada ao povo de Israel em Dt 7,6; 14,2; 26,18; Sl 135,4; Ml 3,17. Originariamente, era talvez a parte dos despojos que o chefe não destinava à partilha, mas reservava para si.

Assim ele te fará ilustre entre todas as nações que criou, e te tornará superior em honra e glória, a fim de que sejas o povo santo do Senhor teu Deus, como ele disse (v. 19).

Israel será “ilustre entre todas as nações, … superior em honra e glória” apesar de sua pequenez (cf 7,7.17). O povo seja “santo” (v. 19; 7,6; 14,2.21; 28,9; cf. Lv 17-26), porque pertence totalmente ao Senhor. Não é uma qualidade que possuísse por si mesmo, mas uma condição de vida particular a ele conferida por sua eleição que não se explica senão pelo amor do Senhor (cf. 4,32-38). Ela subtrai a Israel todo motivo de se gloriar (cf. Am 9,7), mas o chama a gratidão atuante (cf. 1Jo 4,10-11). Esta pertença particular acarreta um comportamento de romper com a maneira de viver dos outros povos (cf. 12,31; 18,9.14) para se conformar à vontade do seu Senhor.

A fórmula da aliança, resumida em “Eu serei seu Deus, e eles serão meu povo”, será lembrada e repetida muitas vezes, também na nova aliança (Jr 31,33; cf. Jo 20,17).

Evangelho: Mt 5,43-48

Continuamos com trechos do sermão da montanha. Hoje ouvimos a última das seis antíteses (vv. 21-48) em que à uma lei do Antigo Testamento (tese: “vós ouvistes que foi dito”), Jesus opõe sua própria interpretação da Lei (antítese: “eu, porém, vos digo”).

Vós ouvistes o que foi dito: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!” Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem! (vv. 43-44).

Na sexta antítese aparece a palavra chave da interpretação de Jesus: “amar” (cf. 22,34-40p). Embora no Antigo Testamento (AT) a relação de Deus com seus inimigos e como os inimigos do povo de Deus fosse apresentada de maneira dura e direta, sobre o ódio ao inimigo não conhecemos nenhum texto explícito do AT, somente pode se comparar de longe Sl 139,22, “odeio, Senhor, os que te odeiam”, ou Pr 29,27, “o criminoso é detestado pelos justos” (cf. Sl 119,113-115; Dt 23,6; 25,19). O aramaico, a língua de Jesus, era pobre em matizes e esta expressão pode equivaler a: “Tu não tens obrigação de amar teu inimigo” (cf. Lc 14,26; Mt 10,37). Em Eclo 12,4-7 e nos escritos contemporâneos de Qumrã (1QS 1,10 etc.) encontra-se entretanto, uma aversão tal aos pecadores que ela não esta longe do ódio, e é nisso que Jesus podia estar pensando, além das divisões que a lei judaica admitia: próximo e não-próximo (inimigo), judeu e pagão, santo e pecador, puro e impuro, justo e ímpio etc.

A conduta certa, ou seja, a “justiça” dos cristãos deve ser maior daquela dos fariseus e doutores da lei (cf. 5,20). O amor dos cristãos deve ter um alcance maior, então não é suficiente “amarás o teu próximo” (em Lv 19,18, o próximo é o compatriota; em Lc 10,25-37, Jesus amplia o termo aos samaritanos, rivais tradicionais dos judeus). Os discípulos de Jesus devem amar mais, até aos inimigos e rogar por eles (cf. Lc 6,35; 23,34).

Assim, vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz cair a chuva sobre justos e injustos (v. 45).

Jesus quer superar todas as divisões, inspirando-se na fonte da Lei, o Pai. Algo radicalmente novo pode vir de uma fonte tão profunda. Os cristãos são filhos adotivos de Deus pelo batismo (cf. Rm 8,15), mas se tornarão filhos de verdade, quando imitarem o amor do “Pai que está nos céus” (cf. 6,9), “porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (v. 45). O mal que os inimigos nos fazem, não nos deve afetar moralmente de modo que deixemos de fazer o bem (“brilhar como o sol” cf. Mt 5,16; 13,45) e paguemos o mal com o mal (cf. 5,38-42 e a lei de talião que limita a vingança em Ex 21,23-25; Lv 24,20; Dt 19,15).

O preceito de Jesus retoma sugestões do AT (cf. Ex 23,4-5; Lv 19,17-18; Pr 25,21 citado por Rm 12,20) e as faz culminar na intenção e no motivo: nada menos que a imitação de Deus Pai. Enfaticamente diz “seu sol”, porque Deus controla suas criaturas em favor dos homens, sem distinção e o sol é fonte de bens, luz e calor. Jesus, como é da mesma natureza do Pai, pôde viver tudo isso. Não discriminou ninguém por razão de raça, de sexo, religião e de classe social.

“Deus é amor” (1Jo 4,8.16), ele não tem inimigos, tem filhos e filhas. Os filhos e filhas de Deus são meus irmãos e minhas irmãs. No amor e no perdão é que nós podemos manifestar o amor divino. Todo amor vem de Deus, e quem ama permanece em Deus e Deus nele (cf. 1Jo 4,12.16).

Porque, se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? E se saudais somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa? (vv. 46-47).

Amar somente aqueles que nos amam, não é nada especial, até os fariseus fazem isto, também os pagãos e os pecadores. Na época, os “cobradores de impostos” eram considerados pecadores públicos, porque exerciam sua profissão com rapinagem, colaborando com o Império Romano. Por isso eram voltados ao desprezo público (cf. 9,10-11; 11,18; 18,17; Lc 19,8) como os “pagãos” (“gentios”, os não-judeus).

O termo “recompensa” é frequente em Mt (5,12.46; 6,1.2.5.16 e 10,41s; 20,8 no sentido de salário). Ao contrário da recompensa dos homens, a recompensa de Deus é soberana e só deriva de sua bondade (cf. 20,15).

Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito (v. 48).

Esta conclusão e a chave para se compreender todo o conjunto formado por 5,17-47: os discípulos são convidados a um comportamento diferente que os torne filhos testemunhando a justiça do Pai, uma “justiça maior do que a dos fariseus e doutores da lei” (v. 20). Lv 19,2 e outros textos convidam a imitar a “santidade” de Deus. Jesus, em Mt, fala da “perfeição” (19,21; cf. Gn 17,1; Dt 18,13; Eclo 44,17) e a centraliza no amor.

A centralidade do amor aos inimigos se vê também no sermão da planície de Lc: já logo depois das bem-aventuranças (a última falava de ódio e perseguição; cf. Lc 6,20-26), Lc 6,27 fala do amor aos inimigos; em vez da perfeição, Lc 6,36 fala da “misericórdia” do Pai a ser imitada. Mt e Lc copiaram de uma fonte mais antiga, porém perdida na história, mas reconstruída e chamada pelos peritos de “Q” (uma coleção catequética de palavras e parábolas de Jesus). Mt reorganizou este material e o enriqueceu na forma das seis antíteses que culminam no amor aos inimigos (vv. 21-48).

Outras religiões como o budismo e o taoísmo também tem afirmações semelhantes como mansidão, não-violência e respeito para com todas as criaturas. A interpretação judaica já descrevia comportamento moderado para com o inimigo, mas nunca usou a palavra “amor”.  Para os cristãos, amor (“agape”) não é tanto um sentimento, mas uma ação concreta (cf. Lc 10,25-37). Na filosofia greco-romana havia o conceito da “filantropia”, uma benevolência geral que incluía também os antipáticos, por causa da mesma descendência divina e harmonia no cosmos. Mas Jesus fala dos inimigos com toda sua maldade (cf. Lc 6,27-28: “Fazei bem dos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam.”). Sua exigência extrema não corresponde à harmonia do cosmos, mas à vontade de Deus na chegada do seu reino, principalmente ao seu amor e sua misericórdia para com os pecadores, excluídos e discriminados.

No NT da Bíblia, nem sempre se percebe este amor aos inimigos (cf. umas cartas de Paulo; Mt 23; 2Pd 2,12-22), e na história da Igreja, o amor aos inimigos tornou-se se agressividade quando este inimigo não queria converter-se: cruzadas, guerras religiosas, inquisição, conversões forçadas, anti-judaísmo. A psicologia e a história questionam esta exigência extrema de Jesus, mas ele está provocando através de um contraste entre a natureza do homem fechado em seu mundo e a perspectiva aberta do reino de Deus. No meio da luta pela sobrevivência ou pela justiça social, as ações de amor ao inimigo são sinais do reino e do amor incondicional de Deus em que o ser humano é aceito como imagem e filho de Deus. Os que amam os inimigos são amigos de Deus e seus filhos como aqueles bem-aventurados que promovem a paz (v. 9).

Esse amor é exigente demais para nos seres humanos? Mas é o amor divino que é perfeito. Se queremos ser “perfeitos”, se queremos ser filhos e filhas de Deus, irmãos, irmãs, discípulos e discípulas do divino mestre (cf. 12,49-50p; 23,8-10), devemos tentar amar os inimigos. A história dos muitas pessoas santas mostra que é possível (cf. At 7,60; Rm 12,14.17.20-21). Esta exigência do amor é certamente do próprio Jesus. Menos exigentes, os escritos posteriores de João falam “amai-vos aos outros” ou “os irmãos” (Jo 13,34; 15,12.17; 1Jo 2,7-11; 4,7-21), por causa do perigo de cisma na comunidade.

Em forma de piada, poderíamos reconstruir este caminho do mandamento do amor na história da redação nos evangelhos: Primeiramente Jesus falou: “Amai aos vossos inimigos” (segundo a fonte de palavras Q escrita cerca de 50 d.C. e preservada em Mt 5,44 e Lc 6,35). Os discípulos ficaram abismados e disseram “Isto é difícil demais. O Senhor é mestre, e um mestre tem que ser facilitador; favor, facilite mais para nós.” Então Jesus falou: “Tudo bem. Amai o próximo como a si mesmo” (Mc 12,31, escrito em 70 d.C.). Os discípulos ficaram mais conformados, mas começaram a discutir entre si: “Então, quem é o meu próximo?” (Lc 10,29, escrito em 80 d.C.). Seria demais amar um pagão ou ajudar um rival samaritano, pessoa desprezável por ser de outra religião e etnia (cf. Lc 10,30-36; 9,52-55; 2 s 17), de outra classe social ou outro time de futbol. Pediram: “A gente não chega a um consenso. Não dá para simplificar mais um pouco, Senhor?” Então o bom Jesus suspirou, disse: “Pelo menos, amai-vos uns aos outros” (Jo 13,34; 15,12.17, escrito em 95 d.C.) e se foi.

O site da CNBB comenta: Um dos valores mais determinantes da nossa vida é a justiça, mas na maioria das vezes deixamos de lado a justiça de Deus para viver a justiça dos homens, fundamentada na troca de valores e não na gratuidade de quem de fato ama. Quem ama verdadeiramente reconhece que Deus é amor e tudo o que somos e temos vem dele, como prova desse amor gratuito. Assim, as nossas atitudes não podem ser determinadas pelas diferentes formas de comportamento das pessoas que nos rodeiam, mas pelo amor gratuito de Deus que deve fazer com que sejamos capazes de superar toda forma de vingança em nome da justiça e procurar dar a nossa contribuição para que o mundo seja cada vez melhor.

Voltar