12 de agosto de 2017 – Sábado, 18ª semana

Leitura: Dt 6,4-13

Na leitura de hoje ouvimos as palavras do Shema, a famosa profissão israelita que os judeus rezam todos os dias plena manhã e à noite (vv. 4-9 que se completa com Nm 15,37-41 e Dt 11,18-21). No contexto funciona aqui como comentário ao primeiro mandamento (5,7-10; Ex 20,2-6), que fundamenta e abrange os demais. Jesus a recolhe como tal em Mc 12,28-30.

Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor (v. 4).

Este v. é a primeira frase da profissão de fé tradicional de Israel, designada pela sua primeira palavra, SHEMA, “ouve/escuta”. Os manuscritos, para sublinhar este v. capital, escrevem o começo e o fim em caracteres maiores.

Qual o sentido dessa unicidade de Deus: para Israel (monolatria: Israel só deve adorar este deus) ou em absoluto (não existem outros deuses), ou em oposição aos muitos deuses cananeus (baals)? A tradição posterior o entendeu em sentido absoluto, como profissão de estrito monoteísmo; e assim seria na sua origem, se o texto fosse criação posterior ao Segundo Isaías, o primeiro que no exílio expressou o monoteísmo absoluto (Is 43,11; 44,8; 45,5s.14.18.21; ; cf. no pós-exílio: Zc 14,9).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 278) comenta: A fórmula afirma antes de mais nada que o Deus de Israel não pode ser dividido, como poderiam fazer crer as imagens e os múltiplos santuários contra os quais luta justamente o Dt (cf. 12,2-12). A tradução “o único Senhor” (que se encontra no NT) não dá conta senão de uma parte do sentido do hebraico (cf. Mc 12,29…). A tradução habitual no judaísmo é: “O Senhor é nosso Deus, o Senhor é um”.

A Bíblia de Jerusalém (p. 284) comenta: Outra tradução às vezes proposta: “Ouve, Israel, Iahweh é nosso Deus, Iahweh somente”. A expressão, contudo, parece ser uma afirmação de monoteísmo… Ao longo da história de Israel, esta fé num Deus único não deixou de se destacar, com uma precisão crescente, da fé na eleição e na aliança (Gn 6,18; 12,1; 15,1, etc.). A existência de outros deuses nunca foi expressamente afirmada nos tempos antigos, mas cada vez mais a afirmação do Deus vivo (5,26), único senhor do mundo e do seu povo (Ex 3,14; 1Rs 8,56-60; 18,21; 2Rs 19,15-19; Eclo 1,8-9; Am 4,13; 5,8; Is 42,8; Zc 14,9), desdobrou-se numa negação sistemática dos falsos deuses (Sb 13,10; 14,13; Is 40,20; 41,21-29).

Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças (v. 5). 

É característica e novidade do Dt, descrever a relação ideal com Deus usando as palavras “amor” e “coração”.

A Bíblia do Peregrino (p. 306) comenta:  A unicidade do Senhor exige a entrega total, sem divisões, sem reservas. O amor deve apoderar-se da pessoa toda, e não pode limitar-se a mero afeto, mas traduzir-se na observância dos mandamentos. É possível que na unicidade do amado e na entrega total do amante soe a linguagem do amor (Ct 6,8-9). Mas a expressão também se lê em pactos de soberano com vassalo.

A Bíblia de Jerusalém (p. 284) comenta: O amor de Deus não é proposto à escolha, é um mandamento. Este amor, que corresponde ao amor de Deus por seu povo (4,37; 7,8; 10,15), inclui o temor de Deus, a obrigação de servi-lo e observar seus preceitos (cf. v. 13; 10,12-13; 11,1; cf. 30,2). Este mandamento de amor não se encontra explicitamente fora do Dt, mas equivalente é fornecido por 2Rs 23,25 e por Os 6,6. Embora sem preceito, o sentido do amor para com Deus perpassa os livros proféticos, sobretudo Oséias e Jeremias, e os Salmos. Jesus, citando Dt 6,5, apresenta como o maior mandamento o amor de Deus (Mt 22,37p), um amor que é ligado ao temor filial, mas que exclui o temor servil (1Jo 4,18).   

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 278) comenta: Deus, no Dt, é o Deus que ama seu povo (4,37; 7,8.13; 10,15; 23,6). É também o Deus que se pode e que se deve não somente temer, mas amar (5,10; 6,5; 7,9; 10,12; 11,1.13.22; 13,4; 19,9; 30,6.16.20), o que, sem dúvida, jamais se ousara dizer antes do Dt. Este amor se exprime pelo compromisso total do homem, evocado pela forma tríplice, que reencontramos em 2Rs 23,25 (o Evangelho lhe acrescentará um quarto termo, cf. Mc 12,30 par). No Dt encontra-se com frequência a fórmula dupla “com todo o teu coração, com todo o teu ser”, ligada a “amar” (10,12; 30,6), mas também a “procurar a Deus” (4,29), a “servi-lo” (10,12), a “praticar e guardar” os mandamentos (26,16), a “escutar” o Senhor (30,2) e a “voltar” a ele (30,2.10): estes diferentes verbos evocam muito bem as formas concretas que o amor do povo por seu Deus deve revestir, à imagem de Deus pelos seus (10,18).

E trarás gravadas em teu coração todas estas palavras que hoje te ordeno. Tu as repetirás com insistência aos teus filhos e delas falarás quando estiveres sentado em tua casa, ou andando pelos caminhos, quando te deitares, ou te levantares. Tu as prenderás como sinal em tua mão e as colocarás como um sinal entre os teus olhos; tu as escreverás nas entradas da tua casa e nas portas da tua cidade (vv. 6-9).

Estes vv. 6-9 não foram mais citadas por Jesus, mas fazem parte do Shema, da profissão de fé judaica. Os judeus piedosos adquiriram o hábito de amarrar à testa e ao punho um sinal concreto desta ligação interior à Lei, pedaços de pergaminho onde estão escritas as palavras da Lei (as “filactérias”, cf. Mt 23,5).

“Eis o que te servirão de sinal sobre a mão, de memorial entre os olhos, para que em tua boca esteja a lei do Senhor” (Ex 13,9; cf. 13,16). Com tatuagens ou o uso de objetos devoção era possível indicar uma filiação étnica ou religiosa. A palavra de Deus é o que marca a pertença de Israel a seu Deus. Mas a ênfase na obediência à lei escrita pode levar ao ritualismo (Mt 23,5), enfraquecendo a obediência verdadeira, que é a prática do amor (Os 6,6; Mc 12,28-34; 1Jo 4,18-5,4).      

A Bíblia do Peregrino (p. 306) comenta: Os mandatos, não só o Decálogo, serão objeto de aprendizado, de catequese; a recitação oral servirá de distintivo. Como pulseira na mão, para agir; como broche no turbante, entre os olhos, para não perdê-los de vista; nas portas das casas e nos portões da cidade; em todas as posições e situações.

Para os cristãos, a profissão de fé é “Jesus é o Senhor” (1Cor 12,1; desenvolvida depois nos Credos apostólico e niceia-constantinopolitano). Enquanto os judeus têm um caixinha com o texto do Shema na entrada da sua casa, os cristãos têm um crucifixo ou um recipiente com água benta em casa.

10Quando o Senhor te introduzir na terra que prometeu com juramento a teus pais, Abraão, Isaac e Jacó, que te daria, com cidades grandes e belas que não edificaste, 11casas cheias de toda espécie de bens que não acumulaste, cisternas já escavadas que não cavaste, vinhas e oliveiras que não plantaste; e quando comeres e te fartares, 12então, cuida bem de não esqueceres o Senhor que te tirou do Egito, da casa da escravidão. 13Temerás o Senhor teu Deus, a ele servirás e só pelo seu nome jurarás (vv. 10-13).

Os vv. 10-19 são uma ampliação para exortar. Em v. 13, de novo se inculca o primeiro mandamento, apoiado em benefícios prévios e sancionado por ameaças e promessas (vv. 10-12). A entrega da terra prometida inclui todas as melhorias introduzidas pela cultura humana, de ordem urbana (“grandes cidades”) e agrícola (“vinhas e oliveiras”), não menciona o pastoreio, ao qual poderiam aludir os poços (“cisternas”). Outros povos trabalharam para que Israel agora desfrute (tema desenvolvido no cap. 8; cf. Jo 4,38).

Mas o dom de Deus, a terra, deve ser bem cuidada não esquecendo se doe Deus, o doador e libertador (v. 12). Ao mesmo tempo, esta terra de Canaã será uma nova situação, cheia de tentações. Porque a cultura urbana e agrícola de seus habitantes se encontra sob a invocação e proteção de numerosos deuses ou baals. A lembrança da libertação ajudará contra tais tentações. De fato, Israel se formou a partir de refugiados do Egito e camponeses das montanhas que ficaram com receio ou desvantagem material contra a população urbana e comercial das cidades cananeias na planície (cf. Nm 13-14). O v. 13 é citado na tentação de Jesus em Mt 4,10 e Lc 4,8.

 

Evangelho: Mt 17,14-20

O evangelho de hoje situa-se depois da transfiguração. Jesus desceu do monte e cura um rapaz que sofreu de epilepsia, uma doença cuja causa era atribuída ao demônio, segunda a medicina antiga. Mt copiou este texto de Mc 9,14-27, mas o reduziu a um terço. Ele não está interessado em detalhes da doença nem na descrição do exorcismo. Há outro trecho em Mc, que Mt reduziu tanto também, o exorcismo dos gerasenos (8,24-34). Obviamente, Mt não gostava de exorcismo (nem mencionou o da sinagoga em Cafarnaum, cf. Mc 1,23-27); o que interessa Mt aqui é a instrução sobre a fé no final do nosso texto.

Chegando Jesus e seus discípulos junto da multidão, um homem aproximou-se de Jesus, ajoelhou-se e disse: ”Senhor, tem piedade do meu filho. Ele é epilético, e sofre ataques tão fortes que muitas vezes cai no fogo ou na água. Levei-o aos teus discípulos, mas eles não conseguiram curá-lo!” Jesus respondeu: “Ó gente sem fé e perversa! Até quando deverei ficar convosco? Até quando vos suportarei? Trazei aqui o menino.” Então Jesus o ameaçou e o demônio saiu dele. Na mesma hora o menino ficou curado (vv. 14-18).

Do relato colorido de Mc, rico em detalhes, só resta praticamente o esqueleto. Um homem traz seu filho doente, “epilético” (lit. “lunático”, porque os gregos antigos achavam que a deusa da lua causava a epilepsia). Mt descreve brevemente os sintomas da doença e a incapacidade dos discípulos (preparando os vv. 19s). A multidão só é necessária por causa da lamentação profética de Jesus: “Ó gente sem fé e perversa” (v. 17; lit. “geração”; cf. Dt 32,5). A quem se refere? Não aos discípulos, porque eles têm fé, embora pequena (v. 20). Como a multidão está presente, pode-se referir ao povo contemporâneo de Jesus.

No evangelho de hoje, este povo não merece repreensão alguma, mas como em 13,10-15 se trata da falta de fé em Israel em geral. Em 23,34-36, Jesus lamenta que Israel sempre tenha agido sem fé e matado os profetas. As duas perguntas “até quando” (v. 17) ganham significado nesse contexto, porque em 23,36-24,2 Jesus anuncia à “esta geração” que ele irá abandonar a cidade, e o templo será destruído (o que aconteceu em 70 d.C.). “Até quando deverei ficar convosco?” O Emanuel (Deus conosco; cf. 1,23; 28,20) anuncia sua ausência a seu povo.

Só em v. 18, Mt menciona o “demônio” que saiu pela ameaça de Jesus, e o menino ficou curado.

Então, os discípulos aproximaram-se de Jesus e lhe perguntaram em particular: “Por que nós não conseguimos expulsar o demônio?” Jesus respondeu: “Porque a vossa fé é demasiado pequena. Em verdade vos digo, se vós tiverdes fé do tamanho de uma semente de mostarda, direis a esta montanha: ‘Vai daqui para lá’, e ela irá. E nada vos será impossível” (vv. 19-20).

A pergunta dos discípulos incapazes é a mesma de Mc 9,28, mas no lugar da receita exorcista de Mc 9,29 (“essa espécie não pode sair a não ser com oração”), Mt traz a palavra sobre a fé que move montanhas (22,21; cf. Lc 17,6; Mc 11,23), num estilo profético (condição e anúncio, cf. Is 1,19). Os profetas falaram que Deus nivela montanhas (Is 40,3-5; 49,11; Zc 14,10), mas aqui é uma metáfora para coisa impossível. Como pano de fundo, podemos supor que as expectativas de cura nem sempre se cumpriram na comunidade cristã (já em Mc, por isso recomenda muita oração, cf. Tg 5,13-16). Mt explica: a causa disso é a pequenez da fé (cf. 6,30; 8,26; 14,31; 16,8). Fé em Mt é acreditar que Jesus “pode fazer isso” (9,28) e “nada vos será impossível” (v. 20). Coragem, oração e obediência de um lado e o poder ilimitado do Emanuel ressuscitado do outro lado constituem a fé. Assim os milagres podem acontecer e não são sem importância em Mt (apesar da sua redução da narrativa). E quem não realiza curas, não tem fé? Paulo entende o poder de fazer curas como carisma que Deus concede livremente a alguns e não a todos (1Cor 12,9.28). Mt entende os milagres e as experiências carismáticas não apenas como acréscimo (brinde) da fé, mas como motivo para solicitar de Deus coisas difíceis (impossíveis). Se não tiver isso, nossa fé não muda nada, e Deus se torna apenas uma autoridade que sanciona o status quo (a situação como está) e dá força para aceitá-lo.

O site da CNBB comenta: A fé abre todas as portas para a pessoa humana e lhe possibilita a superação de todos os problemas e dificuldades, mas a fé não é mágica ou bruxaria que, através de rituais, possibilita a todas as pessoas que os utilizem a manipulação de Deus ou da natureza. A força da fé está na parceria com Deus e na adesão ao seu plano de amor. Quando nós fazemos isso, o sucesso das nossas atividades não está nas atividades em si, mas no próprio Deus que, conosco, realiza as suas obras. Logo, o poder da fé está na adesão e não no rito e a fé verdadeira é, antes de tudo, compromisso com Deus.

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