12 de março de 2017 – 2º Domingo Ano A, Quaresma

1ª Leitura: Gn 12,1-4a

Nas primeiras leituras dos domingos da Quaresma percorre-se a história da salvação no Antigo Testamento (AT). Depois da narração da primeira tentação da Adão e Eva no paraíso no domingo passado, ouvimos hoje a vocação de Abraão, grande ancestral do povo de Deus (enquanto no evangelho de hoje aparecem outras duas figuras do AT, Moisés e Elias).

Todos os povos têm mitos, narrativas simbólicas sobre as origens, assim a Bíblia narra em Gênesis (grego: origens) as origens do universo, da humanidade e, passa, a partir do patriarca Abraão contar a história da origem do povo de Israel. Pela cronologia da Bíblia, Abraão viveu na idade média de bronze por volta de 1850 a.C., mas estas histórias foram escritas muito tempo depois, usando tradições de diversos locais e lendas de ancestrais, unindo-as numa narrativa (as vezes com relatos paralelos) e numa genealogia.

Não temos outras evidências (p. ex. arqueológicas) além da narrativa bíblica sobre a existência histórica de Abraão. Os peritos da Bíblia consideram Abraão um personagem que serviu aos redatores do exílio e pós-exílio para ser ponto de unidade entre os diversos grupos que formaram o povo de Israel (nômades vindo pelo deserto do oriente, escravos fugidos do Egito, tribos do norte (Israel) e outras do sul (Judá), exilados e remanescentes na terra).

Abraão representa todos eles e percorre os mesmos caminhos por onde o povo de Israel passará na sua história, vindo como nômade saindo de Ur da Caldeia (Babilônia, hoje Iraque; Gn 11,31; 15,7; Ne 9,7), descendo e voltando do Egito (Gn 12,10-20), construindo altares em várias partes do país que eram veneradas em épocas posteriores (cf. vv. 6-8).

Ur é com muita probabilidade a grande cidade da baixa Mesopotâmia (entre os rios Eufrates e Tigres), ocupada pelo clã arameu dos caldeus no 1º milênio. Habitada antes pelos sumérios, ela conhecera um grande esplendor no fim do 3º milênio. Esta caminhada narrada de Abraão saindo de Ur para o norte, Arãm, e em seguida pela região oeste, situa-se no 2º milênio a.C., quando havia diversas migrações de populações na região do Crescente Fértil (região entre Mesopotâmia e Egito).

O Senhor disse a Abrão: “Sai da tua terra, da tua família e da casa do teu pai, e vai para a terra que eu te vou mostrar. Farei de ti um grande povo e te abençoarei: engrandecerei o teu nome, de modo que ele se torne uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão abençoadas todas as famílias da terra!” E Abrão partiu, como o Senhor lhe havia dito (vv. 1-4a). 

O universalismo de Gn 1-11 é substituído pelo foco nas tradições a Abrão. Depois de uma lista dos povos da terra após o dilúvio e o relato da sua confusão de línguas na torre de Babel (=Babilônia), começou em 11,26 a genealogia de “Abrão” (hebraico Ab-ram, pai sublime) e “Sarai”, que serão chamados Abraão (hebr. Abraham) e Sara a partir de Gn 17.

A Bíblia do Peregrino (p. 31) comenta: Em vez de interromper-se a linha das gerações, começa algo novo. No vazio da esterilidade de Sara, ressoa a palavra do Senhor: no princípio, criadora do universo; agora, criadora da história. Sem introdução, sem precisar a cena ou o momento, a palavra desce e faz um corte na história da humanidade. Ver o comentário de Paulo em Rm 4. É uma ordem categórica, sem explicações. Abrão tem que cortar todas as ligações, cada vez mais particulares, que o prendem. E deve começar sob o signo da saída – rumo ao grande êxodo futuro dos seus descendentes – e com a esperança do descobrimento: em troca da terra que deixa, o senhor lhe mostrará outra. Veja o comentário de Hb 11.

Abraão é chamado por Javé-Deus para sair da sua terra e da sua família com a promessa de terra e descendência e tornar-se uma benção para todas as famílias e nações da terra (12,1-6; 22,18). Com isso, Deus começa algo novo, elege um grupo de pessoas entre os povos para ser um sinal da presença de Deus, um sacramento para eles (cf. a Igreja no documento do Vaticano II, Lumen Gentium 1).

Na exegese do séc. passado, este cap. 12 (exceto os vv. 4b-6) foi atribuído a tradição javista que usa o nome de Yhwh (Javé, traduzido por “Senhor”). Hoje, porém, não se fala mais de uma redação javista do tempo de Salomão, mas de tradições soltas, escritas e incluídas bem depois.

Segundo a tradição sacerdotal (escrita no exílio da Babilônia) que apresenta as genealogias, a migração já começou com o pai de Abraão, Taré, que levou Abrão, Sarai e Ló, o sobrinho de Abrão a Harã (11,26-32). Esta cidade (no sudeste da Turquia) na curva do Eufrates, ao norte de Ur, com a qual tinha relações religiosas e econômicas, era um centro importante de caravanas. Em Harã se adorava o deus (masculino) Lua (Sin) como em Ur (cf. Js 24,2); o nome Taré – hebr. Terah pode ser derivado do hebr. “lua”, yerah. É nesta região que Isaac voltará a encontrar a família de Abraão (cap. 24). Pode ser que Harã seja a verdadeira pátria de Abrão, já que Ur da Caldeia aparece só em escritos do (pós) exilio (Gn 11,28.31; 15,7; Ne 9,7). Os autores no exílio deviam ter visto Abrão como protótipo da sua volta do exilio da Babilônia para a Terra Santa.

Em Harã, Abrão é chamado para “sair” (palavra chave no Êxodo), continuar a migração, sem sua família, ou seja, sair “da casa do teu pai”. Seu pai Terá morreu em Harã (11,32). Abrão não deve ficar em Harã nem voltar a Ur, mas seguindo as palavras de Deus: “Vai para terra que eu te vou mostrar”. Como vemos depois é para continuar sua migração para a terra de Canã (11,31; 12,5).

Além dessa nova terra, Deus promete o que Abrão ainda não tem: descendência. Sua mulher “Sarai era estéril e não tinha filhos” (11,30). Em troca da família que deixa, Deus lhe dará como família um povo e um nome que será sinônimo de benção universal e multiplicação (cf. Is 51,1-2; cf. as bênçãos em Gn 1,28; 9,1; 13,15s; 15,15,5; 17,4-8; 18,18; 22,17s; 26,3-5.24; 28,14; 35,11s; 48,3s). Paulo cita esta benção em Gl 3,8 para justificar a inclusão dos pagãos na salvação pela fé em Cristo (cf. At 3,25; 7,3-5; Hb 6,13-15).

“Todas as famílias da terra” (lit. do solo); pode-se traduzir também: por ti se abençoarão todas as famílias do solo. Deus estará ao lado de Abrão e fará dele um ponto de referência, ponto de decisão. Será para outros desafio e também canal de benção. Os seres humanos, ao bendizer a Abraão, reconhecendo-o bendito de Deus, tornar-se-ão credores da benção divina (cf. Is 19,24s; Jr 4,2; Sl 72,17).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 39) comenta: Esta partida para uma terra desconhecida está na origem da grande “casa” ou família que vai ser fundada por Abraão, denominado o “pai dos crentes” tanto pela tradição judaica como pela cristã. Em torno do patriarca reconstruir-se-á, no decurso de uma longa história, a unidade da humanidade, rompida pela iniquidade dos homens, história essa da qual o episódio da torre de Babel constitui uma das ilustrações.

A resposta de Abrão é simples obediência. Começa a grande aventura da fé (Hb 11,8). Fé é a resposta obediente à palavra de Deus.

Os próximos vv. 4b-6 (omitidos pela nossa liturgia de hoje) são do estilo da tradição sacerdotal (interessada em dados da família) e informam que Abrão levou consigo sua esposa Sarai, seu sobrinho Ló (chamado de “irmão” em 13,8), e tinha já 75 anos de idade. 75 anos para sair, procurar uma nova vida e tornar-se pai de uma numerosa descendência? Só Deus na causa! Também o destino já foi mencionado com Taré em 11,31: “a terra de Canaã”.

Com fé, Abrão parte para uma terra desconhecida: Canaã (chamada assim por seus habitantes, os cananeus), mais tarde será chamada de Israel (habitada pelo povo do neto de Abrão, Jacó que foi apelidado Israel em Gn 32,29; 35,10), e pelos gregos e romanos de Palestina (este nome deriva dos filisteus que moravam no litoral deste pais).

Este ato de fé, atendendo a voz de um Deus invisível e, segundo uma tradição rabínica, deixando atrás as imagens dos muitos deuses da Babilônia, torna Abraão o pai da fé (Rm 4,11; cf. Hb 11,1.8-18: “Fé é ter esperança em realidades que não se veem”) e ancestral das três religiões monoteístas (que acreditam num só Deus): o judaísmo, o cristianismo e o islamismo; todas as três veneram Abraão. Para os muçulmanos, Abraão (Ibrahim em árabe) nasceu em Urushu (hoje Shan-Urfa, = Edessa,40 km de Harã).

Chegando em Canaã, já habitada pelos cananeus, Deus promete a Abraão o que ainda não tinha: “Darei esta terra à tua descendência” (v. 6; cf. 13,15;15,18;26-3-4;28,13). Isto gera polêmica até hoje: Os judeus são descendentes de Abrão, Isaac e Jacó e se consideram donos, os palestinos também porque são árabes que moram lá desde o séc. VII d.C. (os árabes também são descendência de Abrão e de seu filho Ismael, cf. Gn 16; 21,1-21). O apóstolo Paulo aplica o singular (no texto hebraico e grego) “descendente” (traduzido aqui por descendência) diretamente ao Cristo (Gl 3,16).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 32) comenta: A promessa da terra será especialmente reforçada para avivar a esperança dos judeus exilados de retornarem a ela. Esperança que ainda hoje anima milhares de famílias que buscam terra e vida abençoada.

Com este pano de fundo histórico, podemos relacionar e atualizar a leitura não apenas a respeito dos povos do Oriente Médio, mas também dos migrantes no mundo inteiro que fogem de guerra, miséria e perseguição.

 

2ª Leitura: 2Tm 1,8b-10

A 2ª leitura alude ao evangelho da transfiguração que é uma antecipação da ressurreição; através dela, Jesus e “fez brilhar a vida e a imortalidade”.

2Tm pertence às cartas pastorais. Diferente das demais epístolas paulinas que se destinam a uma igreja ou um grupo de igrejas, as cartas pastorais se dirigem a pessoas que tinham responsabilidades pastorais, Timóteo (1 e 2Tm) e Tito (Tt). Timóteo era filho de uma mulher judia e um pai pagão e tornou-se um dos discípulos mais fiéis a Paulo (cf. At 16 etc.). A carta 2Tm foi chamada “Testamento de Paulo”, porque menciona a prisão e a morte iminente do apóstolo (cf. 4,6-18).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1459) comenta: O Apóstolo convida o discípulo a sofrer com ele, como ele mesmo sofre segundo o exemplo de Jesus Cristo. E se refere à sua prisão (vv. 8.16; 2,9) em Roma (v. 17). Recomenda que guarde “o depósito da fé” (1Tm 6,20). Faz referência ao testemunho que deverá dar, ao enfrentar o martírio que se aproxima; por isso, a carta soa como testamento.

Muitos peritos biblistas, porém, consideram as cartas pastorais uma obra posterior de um autor (ou grupo) anônimo escrevendo em nome de Paulo (não para enganar, mas para homenagear o mestre), escritas na terceira geração cristã (cf. 1,5) no final do séc. I, porque apresentam outra linguagem e outros temas do que as cartas paulinas certamente autênticas (Rm, 1-2Cor, Gl, Fl, 1Ts, Fm), por ex. a continuidade da pregação apostólica (cf. vv. 12-14: “depósito da fé”, “sã doutrina”) em vez da ruptura com o judaísmo, a preocupação com doutrinas diferentes (heresias) em vez do confronto com a lei judaica, a ênfase na organização eclesial e sua inculturação no Império Romano.

(Caríssimo:) Sofre comigo pelo Evangelho, fortificado pelo poder de Deus. Deus nos salvou e nos chamou com uma vocação santa, não devido às nossas obras, mas em virtude do seu desígnio e da sua graça, que nos foi dada em Cristo Jesus desde toda a eternidade. Esta graça foi revelada agora, pela manifestação de nosso Salvador, Jesus Cristo. Ele não só destruiu a morte, como também fez brilhar a vida e a imortalidade por meio do Evangelho (vv. 8b-10).

Timóteo deve reavivar “o dom de Deus que há em ti pela imposição das minhas mãos” (v. 6; ele é considerado bispo de Éfeso, ordenado por Paulo) e “não se envergonhar de dar testemunho (grego: martýrion) de Cristo” nem de Paulo, ao contrário, sofrer com o apóstolo pela Boa Nova (grego “evangelho”). Esta Boa Nova é resumida nos vv. 9-10, um breve síntese cristológica, talvez citação de um hino litúrgico.

“Deus nos salvou e nos chamou com uma vocação santa”. A Bíblia de Jerusalém (p. 2232) comenta: A palavra designa primeiramente o chamamento dos cristãos à salvação (cf. Rm 1,6-7; 8,28; 1Cor 1,2.24; Cl 3,15; Ef 1,18; 4,4; Fl 3,14; etc.) e em seguida, por metonímia, o estado (vocação) ao qual os cristãos são chamados. Ambos os sentidos são igualmente possíveis aqui.

Este chamado é “santo” porque vem do Deus santo (cf. Is 6,3) e também porque nos arranca ao mundo e nos coloca à parte para o serviço deste Deus (Rm 1,1.7; 8,28). Cada vocação se inscreve no amplo desígnio de Deus, definido antes de tudo (Cl 1,17s) e manifestado/revelado recentemente (Cl 1,26s).

Temas preferidos de Paulo são a escolha pela “graça, e não pelas obras”, (cf. Rm 1,5.7s; 5,15.17.20; 11,6; 1Cor 15,8-10; etc.), e, conforme o “desígnio divino”, a revelação do mistério (para Paulo era a inclusão dos pagãos à salvação pelo evangelho, cf. Rm 16,25s; Ef 3,2-6; Cl 1,24-27), “desde toda eternidade” (Rm 16,25).

“Esta graça foi revelada agora, pela manifestação de nosso Salvador, Jesus Cristo”. A “manifestação” ou “aparição” (grego: epifania) do Salvador é a sua vinda como homem, sua encarnação e a redenção (Tt 2,11; 3,4). Nas cartas pastorais, o mesmo termo pode significar também a segunda vinda de Cristo no fim dos tempos (1Tm 6,14; Tt 2,13; Paulo usava o termo parusia).

O título de “salvador” (Lc 2,11; Jo 4,42) é raro nas cartas paulinas (Ef 5,23; Fl 3,20), é atribuído pelas cartas pastorais tanto a Pai (1Tm 1,1; 2,3; 4,10; Tt 1,3; 2,10; 3,4) quanto a Cristo (2Tm 1,10; 4,1.8; Tt 1,4; 2,13; 3,4). A obra de Cristo salvador realiza a vontade do Pai.

“Ele não só destruiu a morte, como também fez brilhar a vida e a imortalidade por meio do Evangelho” Jesus Cristo destruiu o poder da morte pela ressurreição (1Cor 15,54) e revela ou “ilumina” a vida pelo anúncio do evangelho. É anúncio de futuro, contra o que pretendem os impostores da heresia “dizendo que a ressurreição já se realizou” (2,18). A influência helenista se percebe nos termos “manifestação” (epifania), “salvador” e também “imortalidade” (Sb 2,23).

Evangelho: Mt 17,1-9

Este evangelho sempre é lido no segundo domingo da Quaresma e repetido na festa da Transfiguração do Senhor (06 de agosto), na versão do evangelista do ano A, B ou C. Depois da profissão de Pedro (Mt 16,16: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”) e anunciar sua paixão, morte e ressurreição (v. 22p), a transfiguração ilumina a subida do Filho do Homem a Jerusalém, onde é situada pela tradição pré-sinótica. Aos discípulos, que não podem compreender o caminho que seu mestre quer seguir, Deus faz vislumbrar a glória misteriosa do seu Filho e exige deles que escutem seu ensinamento. O relato de Mt é uma cópia de Mc 9,2-10 (com algumas mudanças) seguindo esquema primitivo de uma revelação de apocalipse (cf. Dn 10,1-6). A interpretação não é fácil, porque não se sabe bem a origem desta história que alude a muitos motivos do AT.

(Naquele tempo), Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz. Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus (vv. 1-3).

Nossa liturgia inicia com o costumeiro “Naquele tempo”, mas cortou a introdução original: “Seis dias depois”, o que lembra a festa das Tendas que começa seis dias depois do dia da reconciliação (Lv 23,27.43). Pedro queria construir “tendas” em v. 4.

Pedro, João e Tiago são os discípulos mais íntimos que estarão com Jesus também na oração no monte das Oliveiras (26,37; cf. 4,18.21; 20,20-23). A “montanha” deve ser simbólica (em Mt, cf. 4,8-10; 5,1s; 28,16). Na tradição é o monte Tabor perto de Nazaré, outros pensam num monte mais alto, o monte Hermon (“brancura”) com sua neve no Líbano, onde nasce o Rio Jordão e fica perto de Cesareia Filipe, onde Pedro professou sua fé antes (vv. 13-23).  Mas junto com Moisés (Ex 3; 19; 24) e Elias (1Rs 19) lembra o monte Horeb/Sinai, onde Deus se manifestou em raios e nuvens e falou ao seu povo (Ex 19,16; 20,18-21). Em Ex 24,1.9.15s, Moisés subiu ao monte Sinai também com três homens escolhidos, o monte estava coberta de uma nuvem; no sétimo dia, Deus o chama de dentro da nuvem. Quando Moisés desceu da montanha, seu rosto estava brilhando (Ex 34,29-35).

Mc e Mt usaram o verbo “transfigurar” que, em outras passagens, designa uma transformação espiritual (Rm 12,2; 2Cor 3,18). Os três sinóticos (Mc, Mt e Lc) assinalam a transformação perceptível da roupa e Mt e Lc mencionam que ela afeta também o rosto. Como nos apocalipses judaicos, vestes tão deslumbrantes (cf. Dn 7,9) são um dos sinais da “glória” celeste que é concedida aos eleitos tornando-os semelhantes aos anjos (cf. 2,9; 10,18; 11,36; 17,24; 24,4; Mt 28,3; At 9.3; 12,7; 22,6; 26,13; Ap 3,4; 4,4). Esta cena misteriosa só adquire sentido na perspectiva da ressurreição gloriosa de Cristo, da qual é evidentemente uma antecipação. Em Mt, a roupa de Jesus se assemelha a do “anjo do Senhor” que abre o túmulo vazio no domingo da ressurreição (28,2s).

Em Mc, apenas as roupas de Jesus ficaram brancas “como nenhuma lavandeira na terra as poderia alvejar” (Mc 9,3). Mt e Lc 9,29 (ou talvez, antes deles, um redator de Mc, Deuteromarcos) substituíram a comparação com a “lavandeira” pela notícia sobre a mudança no rosto de Jesus: “como o sol” (típico do gênero apocalíptico, cf. os justos em Dn 12,2s; Mt 13,43; a descrição do anjo em Dn 10,5s), em Mt, em paralelo com as roupas “como a luz”.

“Moisés e Elias” são representantes do mundo celestial, não apenas representam o AT (Antigo Testamento): Moisés, a Lei, e Elias, os Profetas (no culto da sinagoga lê-se uma leitura da Lei, outra dos Profetas, cf. At 13,15). Eles aparecem aqui como precursores ou testemunhas da Aliança. Conversando com eles, Jesus se demonstra mais do que um simples carpinteiro, médico ou pregador: No pé de igualdade com estas autoridades ilustres do passado parece pertencer a este mundo da eternidade divina. Abre-se uma janela no céu, ou seja, antecipa-se a ressurreição. Elias devia ser precursor do Messias (Ml. 3,23; cf. Sr 48,10), papel identificado com João Batista (1,17; Mc 8,11-13; Mt 17,12). Ao mesmo tempo aparece Moisés (cf. Ap 11,3-6), cujo rosto se tornava luminoso no monte Sinai (Ex 34,29s) e cuja assunção o judaísmo admite (cf. Dt 34,6), tanto quanto a de Elias (2Rs 2,11) e de Henoc (Gn 5,24).

Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias.” Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!” (vv. 4-5).

A sugestão de construir tendas deve-se a Mc que pode ter aludido com sua indicação “após seis dias” (Mc 9,2) ao transcurso da Festa das Tendas, festa alegre e popular dos judeus (Ex 28,16; Lv 23,28-34; Dt 16,13). Ela começa “seis dias depois” do grande dia das expiações e dura sete dias (Lv 23,34.36). Ou Pedro pensa em hospitalidade para três figuras celestiais (como Abraão em Gn 18; cf. as moradas em Jo 14,2). Ou alude à morada dos celestiais no monte, como a habitação divina no templo, na cidade santa (cf. Ez 37,27; Zc 2,14; Ap 21,3). Ou quer evitar o sofrimento de Jesus como em 16,22, porque no monte Jesus estaria em segurança e ninguém saberia onde estava.

Não basta só o testemunho de Moisés e Elias, agora o próprio Deus se manifesta sobre Jesus. Na tradição bíblica, a nuvem é sinal de teofania (cf. 2Mc 2,8), a “nuvem luminosa” simboliza a “glória” de Javé, sua presença que acompanhava o êxodo (saída; Ex 13,21s; 14,24) e a caminhada pelo deserto no monte Sinai (Ex 19,16; 24,15s) e na tenda da reunião (Ex 40,34. 35), como depois no templo de Jerusalém (1Rs 8,10-12).

Segundo uma tradição judaica, uma nuvem estava também no monte Moriá, onde Abraão quase sacrificou Isaac, seu “amado filho” (Gn 22,2.12.16).

No batismo de Jesus (3,17), a mesma voz do céu designara Jesus como o “meu Filho amado” (cf. Sl 2,7), lembrando o Servo de Javé (Is 42,1). Na entronização do rei em Israel, uma voz (do sumo sacerdote) “declara o decreto de Javé: Tu és meu filho, eu hoje te gerei” (Sl 2,7;  Rm 1,3s associa a entronização do Cristo à sua ressurreição).

Na transfiguração, a voz da nuvem designa Jesus antes como o “profeta” que todos do povo “devem escutar” (At 3,22 citando Dt 18,15 que anuncia um novo Moisés). Os leitores de Mt já sabem que é o “Filho de Deus” (1,18-25; 2,15; 3,17) que resistiu às tentações do satanás (4,1-11) e que recebe do Pai todo poder e sabedoria (11,27; 28,16.18s).

Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra. Jesus se aproximou, tocou neles e disse: “Levantai-vos, e não tenhais medo” (vv. 6-7).

Mt acrescentou estes vv. 6-7 que descrevem o medo dos discípulos num lugar mais apropriado (depois da voz do céu, não antes como em Mc 9,6) e no estilo apocalíptico; cf. Dn 8,16s; 10,9-12.16-19: depois de “visão” e da audição da voz, Daniel fica assustado e “cai com o rosto em terra”, mas o anjo “tocou nele”, acordou-o e diz: “Não tenha medo”.

Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus. Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes: “Não conteis a ninguém esta visão até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos” (vv. 8-9).

No evangelho mais velho, Jesus não quer ser reconhecido como messias antes da sua morte e ressurreição e ordena com frequência que as pessoas se calem a seu respeito (para evitar mal-entendidos sobre um messias nacionalista durante a Guerra Judaica contra os romanos em 66-70 d.C.). Mas já em Mc 9,9, a recomendação de guardar segredo que Jesus tem prazo, “até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos”.

Em Mt, o segredo messiânico de Mc não tem mais a mesma importância, mas aqui Mt é fiel transmissor da tradição (cf. 16,20), ou seja de Mc. De fato, só a partir da ressurreição da qual nosso texto fala como antecipação, Jesus pode ser entendido. E ressurreição supõe antes a morte, a paixão. Só através da cruz chegamos à luz.

A transfiguração é uma antecipação da ressurreição de Cristo e, ao mesmo tempo, inclui a participação dos cristãos na ressurreição que é a transformação mais radical (cf. 1Cor 15,51s; Dn 12,2s). Mt, porém, caracteriza esta lenda tradicional como “visão” que revela o lado divino de Jesus que caminha para a morte em Jerusalém (v. 12). Os três discípulos encontrar-se-ão sozinhos com Jesus só no monte das Oliveiras, no horto das oliveiras (26,37), não num ponto alto, mas mais baixo da história de Jesus: na angustia do início da paixão.

Voltar