13 de janeiro de 2018 – Sábado, 1ª semana

Leitura: 1Sm 9,1-4.17-19; 10,1

A narrativa da eleição e unção do primeiro rei Saul (9,1-10,6) não tem ligação com o que precede (o pedido do povo de ter um rei no cap. 8, leitura de ontem). Aqui não é o povo que deseja um rei (cap. 8), mas o próprio Javé Deus; o primeiro rei é seu eleito.

A tradição provém da Ramá (residência de Samuel, cf. 7,17) e supõe que Saul tenha sido ungido ainda jovem e que essa unção tenha permanecido secreta, como a de Davi (cap. 16). Mas a unção está associada à tomada do poder (cf. 1Rs 1,39; Sl 2). É certo que Saul foi ungido (24,7.11; 26,9.11.16.23; 2Sm 1,14-15), é provável que tenha sido por Samuel, mas não sabemos em que circunstâncias. A história está centralizada em Saul, e Samuel é apresentado não como um juiz, mas como um profeta (vidente) que Saul encontra por acaso.

O enredo parece desenvolver-se casualmente, à força de coincidências; mas o fortuito humano se encaixa num plano de Deus, que se cumpre por etapas e se revela a Samuel passo a passo.

Havia um homem de Benjamin, chamado Cis, filho de Abiel, filho de Seror, filho de Becorat, filho de Afia, um benjaminita, homem forte e valente (9,1).

Saul é de uma importante família criadora de gado (cf. 11,5-7) na fértil região da tribo de Benjamim. A vinculação à tribo será importante, por demais importante na história futura; talvez fosse inevitável na época. É a terceira aparição desta tribo (cf. o juiz Aod em Jz 3,12-30) e o crime de Gabaá em Jz 19-21). Era considerada a menor das tribos (v. 21), mas a partir do séc. 11 a.C., guerreira e influente. Depois se misturou com a tribo de Judá, mas pela genealogia, o apóstolo Paulo era da tribo de Benjamim (Rm 11,1; Fl 3,5) e recebeu o nome hebraico deste primeiro rei, Saul(o).

Ele tinha um filho chamado Saul, de boa apresentação. Entre os filhos de Israel não havia outro melhor do que ele: dos ombros para cima sobressaía a todo o povo (v. 2).

O nome Saul significa “(aquele que foi) pedido” (a Deus). Destacam-se a figura corpulenta de Saul (cf. Davi em 16,12), e depois o saber milagroso de Samuel, que lhe permite antecipar-se aos fatos e pronunciar palavras enigmáticas.

Ora, aconteceu que se perderam umas jumentas de Cis, pai de Saul. E Cis disse a seu filho Saul: “Toma contigo um dos criados, põe-te a caminho e vai procurar as jumentas”. Eles atravessaram a montanha de Efraim e a região de Salisa, mas não as encontraram. Passaram também pela região de Salim, sem encontrar nada; e, ainda pela terra de Benjamin, sem resultado algum (vv. 3-4).

O relato da eleição e unção de Saul nos transporta para um mundo de simplicidade rural, em forte constaste com as deliberações do capítulo precedente. As jumentas perdidas, o estipêndio para o profeta (vv.7s), as aguadeiras (vv.11-13), o pernil no banquete (vv. 22-24), a esteira no terraço (vv. 25s), definem a tonalidade da narração.

Começa uma articulação ternária: as três comarcas (Efraim, Salisa, Salim) atravessadas em vão; virão três diálogos (dois destes omitidos na leitura de hoje): com o criado (vv. 5-10), com as aguadeiras (vv. 11-13), com Samuel (vv. 18-21). A preocupação das jumentas perdidas leva Saul a procurar Samuel.

Quando Samuel avistou Saul, o Senhor lhe disse: “Este é o homem de quem te falei. Ele reinará sobre o meu povo”. Saul aproximou-se de Samuel, na soleira da porta, e disse-lhe: “Peço-te que me informes onde é a casa do vidente”. Samuel respondeu a Saul: “Sou eu mesmo o vidente. Sobe na minha frente ao santuário da colina. Hoje comereis comigo, e amanhã de manhã te deixarei partir, depois de te ter revelado tudo o que tens no coração” (vv. 17-19).

O caso das jumentas perdidas é um antigo conto popular inserido aqui para ocasionar o encontro de Saul com Samuel e ilustrar a iniciativa de Deus todo-poderoso que conduz os dois protagonistas, um em direção a outro, e escolhe o futuro rei. O três títulos de Samuel: homem de Deus, vidente e profeta (vv. 6-9) revelam as tradições diferentes neste texto.

As palavras do Senhor em vv. 16-17 garantem a autenticidade do encontro e endereçam a ação do profeta. Samuel, juiz e profeta, é chamado de “vidente” (vv. 9.18s). Os profetas, homens da palavra, eram chamado em outra época “videntes”. Visão (cf. 1,3) e palavra podem ser duas formas ou dois componentes do saber profético (cf. Am 7; Jr 1 etc.).

Samuel convida Saul para participar de um sacrifício da comunhão que termina com um banquete sagrado para todos os participantes (vv. 22-25; cf. 1,4) no “santuário da colina” (cf. vv. 12.14.25). Muitas aldeias tinham um “lugar alto” com um santuário local (como as capelas no nosso interior), nem sempre com edifício, mas com uma árvore cobrindo um altar (cf. Gn 12,6; 13,18 etc.). Esta tradição cananeia, longe da cidade e longe do templo, durou séculos (cf. 1Rs 3,4s), apenas o deus de Israel Javé substituiu o dos cananeus, Baal (Jz 6,25s). Na reforma de Josias (640-609 a.C.), o culto legítimo foi concentrado em Jerusalém e os “lugares altos” proibidos e destruídos (Dt 12,2-12; 2Rs 23,8-20).

Na manhã seguinte, Samuel tomou um pequeno frasco de azeite, derramou-o sobre a cabeça de Saul e beijou-o, dizendo: “Com isto o Senhor te ungiu como chefe do seu povo, Israel. Tu governarás o povo do Senhor e o livrarás das mãos de seus inimigos, que estão ao seu redor” (10,1a).

Nesta narrativa, Deus não emprega o termo “rei”, mas “chefe” (9,16; 10,1; cf. 2Sm 5,2s; 6,21; 1Rs 1,35; 14,7; 16,2). Saul será um salvador, como os juízes, “chefe do meu povo” e “chefe do meu patrimônio” (10,1b). O patrimônio do Senhor designa aqui o povo (cf. Dt 4,20; 9,26.29; 32,9; 1Rs 8,51.53; 2Rs 21,14 etc.); em 1Sm 26,19; 2Sm 14,16; 20,19; 21,3 ao mesmo tempo o povo e a terra (cf. a questão em Mc 12,17).

Até agora, nenhum dos juízes fora ungido. Os reis de Israel eram ungidos por um “homem de Deus” (vv. 6-10), ou seja, por um profeta ou sacerdote (cf. 1Sm 16,13; 1Rs 1,39; 2Rs 9,6; 11,12). Esse rito dava ao rei um caráter sagrado e fazia dele um vassalo de Javé; ele era o “ungido de Javé” (ungido, em hebraico-aramaico massiah=messias, em grego cristo; cf. 2,35; 24,7.11; 26,9.16; 2Sm 1,14.16; 19,22). A unção sacerdotal parece ser aplicada só a partir da época persa, primeiro ao sumo sacerdote (Ex 29,7.29; Lv 4,3.5.16; 8,12), depois a todos os sacerdotes (Ex 28,41; 30,30; 40,15; Lv 7,36; 10,7; Nm 3,3). Normalmente, os profetas não foram ungidos (salvo 1Rs 19,16; cf. Is 61,1: rei ou profeta).

A unção com azeite é um rito sacramental: o óleo, que protege a pele e penetra e revigora os tecidos, simboliza a penetração de uma força divina (o Espírito do Senhor em 16,13; Is 61,1; cf. Is 11,1s; 42,1; Mc 1,10s; At 10,38) que capacita o homem para a sua missão especifica. O “beijo” do profeta Samuel é o primeiro reconhecimento oficial da consagração.

Evangelho: Mc 2,13-17

Jesus não só tem o poder de perdoar pecados (vv. 1-2; cf. evangelho de ontem), mas também transforma o pecador em discípulo.

Jesus saiu de novo para a beira do mar. Toda a multidão ia ao seu encontro e Jesus os ensinava. Enquanto passava, Jesus viu Levi, o filho de Alfeu, sentado na coletoria de impostos, e disse-lhe: “Segue-me!” Levi se levantou e o seguiu (vv. 13-14).

Como no chamado dos primeiros quatro discípulos que eram pescadores (cf. 1,16-20), Jesus está de novo na beira do mar, só desta vez acompanhada pela “multidão” (v. 13). Ele chama “Levi, o filho de Alfeu” (v. 14; Mt 9,9 o identifica com o apóstolo Mateus), também no lugar do trabalho dele, na coleta de impostos, e igual aos primeiros discípulos só diz: “Segue-me!”. E igual a estes, “Levi se levantou e o seguiu” (v. 14). Para Mc, a palavra de Jesus tem poder e autoridade, é diferente daquela dos escribas e maior do que a dos profetas (cf. 1,22.27; 8,27-29; Lc 9,57-62p; 1Rs 19,19-21). É a “palavra de rei (messias)” que deve ser atendida e “seguida” imediatamente; é Palavra eficaz de Deus (Deus falou e assim se fez, cf. Gn 1).

Levi, porém, não exercia uma profissão honrada. Os romanos terceirizaram o sistema de arrecadação de impostos; o cargo era recebido em arrendamento (cf. vv. 15-17; Mt 5,46; 18,17; 21,21; Lc 15,1; 18,10-14; 19,1-10). Para os judeus, os coletores de impostos (publicanos) eram pecadores públicos, porque estavam a serviço do Império Romano, tratavam com não-judeus e abusavam da função, provocando ódio do povo, pois exploravam sob proteção dos soldados romanos. O chamado de Jesus prescinde de preconceito e vence a “cobiça que é idolatria” (Cl 3,5; cf. Ef 5,5; Mt 6,24).

E aconteceu que, estando à mesa na casa de Levi, muitos cobradores de impostos e pecadores também estavam à mesa com Jesus e seus discípulos. Com efeito, eram muitos os que o seguiam (v. 15).

Os discípulos costumam convidar seu novo mestre em casa (v. 15; cf. 1,29; Jo 1,42-45; 2,1; 21,2), por isso a “casa” (não definida no texto original) é “de Levi” (tradução) que faz um banquete de despedida (cf. 1Rs 19,19-21) com seus colegas de profissão e classe (desclassificados de “pecadores”, v. 16).

Aliás, sempre quando se apresenta em nossa tradução portuguesa Jesus “estando à mesa”, imaginamo-lo sentado numa cadeira à mesa (cf. a última ceia de Leonardo da Vinci), mas não corresponde ao texto original em grego que diz que Jesus e os comensais estavam “deitados”. Era o costume da época, tomar refeições deitado no chão com almofadas ou em sofás (cf. Mc 14,14p; Lc 7,37s; Jo 13,23-25). Para evitar constrangimento cultural, nossas Bíblias de hoje não o traduzem literalmente.

Alguns doutores da Lei, que eram fariseus, viram que Jesus estava comendo com pecadores e cobradores de impostos. Então eles perguntaram aos discípulos: “Por que ele come com os cobradores de impostos e pecadores?” (v. 16).

Jesus e seus discípulos participam do banquete, e os fariseus ficam escandalizados. A palavra “fariseu” em hebraico significa “separado” (talvez um apelido, entre eles se chamavam “companheiro”. A palavra “companheiro” quer dizer alguém que compartilha o mesmo pão (do latim: cum pane = com pão).

Os fariseus se sentiam os guardiões da separação que garantia a pureza e com ela a santidade e consagração do povo; entre as separações, a mais importante era entre justos e pecadores (Sl 13,19-22; Pr 29,27). Compartilhar a mesa com pecadores era pecaminoso, pois participar da mesa significa ter comunhão, uma relação amistosa, selada pela benção sobre alimentos.

Tendo ouvido, Jesus respondeu-lhes: “Não são as pessoas sadias que precisam de médico, mas as doentes. Eu não vim para chamar justos, mas sim pecadores” (v. 17).

Jesus responde com a atitude de anfitrião ou convidado especial (cf. Eclo 32,1), comparando-se a um médico de quem os sadios não precisam, mas os doentes (v. 17; cf. Eclo 38,1-15). Mt 9,13 acrescenta a citação de Os 6,6: “Misericórdia quero, mais que sacrifícios”.

A missão do messias não é ordenar e separar, mas congregar e salvar (cf. 10,45; 11,9; Lc 15; Jo 3,16-17; 10,8,1-11; Gl 3,28). Seu chamado é universal, porque pecadores são todos (cf. 1Rs 8,46; Jo 8,7), mesmo os que não querem reconhecê-lo.

O site da CNBB resume: Ser coletor de impostos na época de Jesus era ser um pecador profissional. Por isso, a escolha de Levi, ou Mateus, para ser discípulo de Jesus e ir comer na casa dele com os outros cobradores de impostos e pecadores, significava que Jesus comungava com eles, o que era muito grave. No entanto, esse fato nos mostra que Jesus veio para nos mostrar o amor misericordioso de Deus, que havia dito pelo profeta que não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva e que Deus quer que todas as pessoas participem do banquete do Reino definitivo.

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