13 de junho de 2018, quarta-feira: Acab convocou todos os filhos de Israel e reuniu os profetas de Baal no monte Carmelo

Leitura: 1Rs 18,20-39

Continuamos o ciclo de Elias, o profeta havia se refugiado na Fenícia (atual Líbano), justamente na terra de onde veio Jezabel, esposa do rei de Israel, Acab. Pela influência da esposa, Acab tornava se infiel a Javé, Deus de Israel, e ergueu um templo dedicado a Baal na nova capital Samaria (16,24.31-33, cf. 18,18). Jezabel promovia o culto a Baal (deus fenício e cananeu) e, ao mesmo tempo, perseguia os profetas de Javé (18,4.13). Elias por uma pobre viúva e fez milagres na casa dela, multiplicou o a farinha e o óleo (17,7-16, leitura de ontem) e ressuscitou o filho dela (17,17-24; cf. Tempo Comum 10º Domingo Ano C).

Depois Elias voltou à terra de Israel, castigada por três anos de seca, apresentou-se a Acab e convidou à uma competição divina. Ouvimos hoje este duelo dos deuses Javé (traduzido aqui por “Senhor”) e Baal, uma aposta provocada pelo profeta Elias.

A Bíblia do Peregrino (p. 650) comenta: No novo episódio, passamos dos baais ao Baal de Tiro, e da casa real a todo Israel. Chegou o momento da grande decisão diante das infidelidades, compromissos e concessões. Vem-nos a memória não tanto Moises no Sinai, quanto Josué em Siquém (Js 24), exigindo do povo uma cabal decisão religiosa.

O monte Carmelo tem algo de espinhaço que divide obliquamente o reino em duas metades, com uma vertente olhando para o norte, e outro para o sul (esquerda e direita na orientação israelita); algo como as duas direções da Ebal e do Garizim (Js 8,30-35). Neste momento vai celebrar-se o grande julgamento de Deus, uma espécie de ordálio presidido por seu profeta.

(Naqueles dias:) Acab convocou todos os filhos de Israel e reuniu os profetas de Baal no monte Carmelo (v. 20).

O monte Carmelo, próximo da Fenícia, era um lugar de culto de todas as religiões que se sucederam na Palestina. Ali havia um santuário de Baal e também um altar de Javé, que tinha sido destruído (v. 30). Karmel também era o nome dado a uma divindade que presidia à tempestade e à chuva, à semelhança de Baal.

“Os profetas de Baal” são 450 (v. 22). As nações vizinhas também tiveram videntes, adivinhos, extáticos e inspirados (Jr 27,9s), e os próprios autores bíblicos os chamam de “profetas”. Eles formavam associações numerosas, como os profetas de Javé (cf. v. 4).  Aqui se trata dos devotos de Baal de Tiro, chamados a Israel por Jezabel, que os sustentava.

Então Elias, aproximando-se de todo o povo, disse: “Até quando andareis mancando com os dois pés? Se o Senhor é o verdadeiro Deus, segui-o; mas, se é Baal, segui a ele”. O povo não respondeu uma palavra (v. 21).

A Bíblia do Peregrino (p. 651) comenta: Sem introduções, a primeira frase coloca a necessidade de escolher. O povo pensa que sempre será útil garantir o apoio das duas divindades, Baal e Yhwh; Elias zomba de semelhante pretensão com um jogo de palavras. Apela, implicitamente, ao primeiro mandamento: o Senhor não admite diante de si outro deus. Querer o dualismo é considerá-los ou transformá-los em muletas (ou ramos). O povo não responde, porque a alternativa não admite resposta ou porque tem medo de se decidir. O silencio é um fator importante nessa narração; também o verdadeiro Deus responderá sem palavras. O verbo ‘nh (= responder) repete-se oito vezes no relato. Um eixo semântico da perícope é a oposição gritos/silêncio. Também contrasta a calma de Elias, um só, com a agitação orgiástica de quatrocentos e cinquenta.

“Andareis mancando com os dois pés?” O sentido da última palavra não é seguro, mas a tradução (cf. o grego) combina com o gesto do v. 26: os israelitas dançam ora para Javé, ora para Baal.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 532) comenta: Se o pensamento de Elias parece claro: “Escolhi entre o Senhor e Báal, em vez de adorar ao mesmo tempo um e outro”, a expressão que emprega não é tanto e tem sido traduzido de diversas maneiras: “Até quando claudicareis das duas pernas (jarretes)?”, “Até quando claudicareis dos dois pés?”, “Até quando saltitareis, hesitando, na encruzilhada dos caminhos?”. O v. 26 mostra que Elias se refere a uma dança ritual fenícia em honra da divindade.

Então Elias disse ao povo: “Eu sou o único profeta do Senhor que resta, ao passo que os profetas de Baal são quatrocentos e cinquenta. Dêem-nos dois novilhos; que eles escolham um novilho e, depois de cortá-lo em pedaços, coloquem-no sobre a lenha, mas sem pôr fogo por baixo. Eu prepararei depois o outro novilho e o colocarei sobre a lenha e tampouco lhe porei fogo. Em seguida, invocareis o nome de vosso deus e eu invocarei o nome do Senhor. O Deus que ouvir, enviando fogo, este é o Deus verdadeiro”. Todo o povo respondeu, dizendo: “Ótima proposição” (vv. 22-24).

Os profetas de Baal são grande maioria, será um luta desigual (cf. o duelo de Davi e Golias; 1Sm 17). Elias desafia o deus Baal na própria atribuição: Baal era o deus da tempestade e da fecundidade. “O Deus que ouvir, enviando fogo, este é o Deus verdadeiro”. Enviar fogo quer dizer enviar o raio. A Bíblia do Peregrino (p. 651) comenta: O deus que o enviar demonstrará ser o deus cósmico, senhor também da chuva e das colheitas. Será também o Senhor que decide a validade dos sacrifícios, aceitando ou rejeitando; portanto, é inútil oferecer vítimas a outros deuses.

A Bíblia de Jerusalém (p. 539) comenta: Não se trata apenas de decidir qual deles, Iahweh ou Baal, é o senhor da montanha ou é mais poderoso, mas em sentido absoluto, qual é Deus: a palavra de Elias, sua oração (v. 37) e a aclamação do povo (v. 39), não deixam dúvida alguma: é a fé monoteísta que está em jogo nesta competição.

Elias disse então aos profetas de Baal: “Escolhei vós um novilho e começai, pois sois maioria. E invocai o nome de vosso deus, mas não lhe ponhais fogo”. Eles tomaram o novilho que lhes foi dado e prepararam-no. E invocavam o nome de Baal desde a manhã até ao meio-dia, dizendo: “Baal, ouve-nos!” Mas não se ouvia voz alguma e ninguém que respondesse. E dançavam ao redor do altar que tinham levantado. Ao meio-dia, Elias zombou deles, dizendo: “Gritai mais alto, pois sendo um deus, tem suas ocupações. Porventura ausentou-se ou está de viagem; ou talvez esteja dormindo e é preciso que o acordem” (vv. 25-27).

A redação deuteronomista ironiza o mito a respeito de Baal, que, como deus da fecundidade, morria no inverno para ressuscitar na estação da chuva.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 532) comenta:  A crítica pertinente de Elias visa, por um lado, à maneira demasiado humana pela qual se representavam as divindades kenaanitas. Por outro, prende-se ao fato de que Báal (ao contrário do Senhor, vivo, sempre presente e ativo) era considerado como um deus periodicamente ausente, ou adormecido, ou até momentaneamente morto, como o demonstram os textos de Ugarit.

A Bíblia do Peregrino (p. 651) comenta: A zombaria de Elias ilustra os limites impostos ao uso do antropomorfismo para representar Deus. Também nos ensina como um símbolo pode ser usado corretamente e com valor depreciativo; os israelitas podem gritar ao Senhor que desperte e volte (Sl 44,24; 73,20) O fato de já ser meio-dia sublinha a zombaria.

Então eles gritavam ainda mais forte, e retalhavam-se, segundo o seu costume, com espadas e lanças, até o sangue escorrer. Passado o meio-dia, entraram em transe até a hora do sacrifício vespertino. Mas não se ouviu voz nenhuma, nem resposta nem sinal de atenção (vv. 28-29).

O culto pagão se caracteriza não só com gritos, mas com gestos estranhos, “retalhavam-se, segundo o seu costume, com espadas e lanças, até o sangue escorrer”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 532) comenta:  Esta prática que é uma cerimônia fúnebre em honra de Báal, se acha atestada nos textos de Ugarit: por ocasião da morte do Báal, o deus El “faz a floresta ressoar com seus clamores, rasga as faces e o queixo, lavra a articulação do braço (o ombro) e o peito como se fosse um jardim. Rasga suas costas (formando aí) como um vale, eleva a voz e grita…” (texto Gordon 67 VL 18-23).

“Entraram em transe (lit. profetizaram)”, cf. delírio de Saul delirou com os profetas (1Sm 10,5-12).

“Até a hora do sacrifício vespertino” (cf. Ex 29,39; Nm 28,4; 2Rs 16,15 e Sl 141,2). A menção deste sacrifício é aqui uma simples indicação da hora.

Então Elias disse a todo o povo: “Aproximai-vos de mim”. Todo o povo veio para perto dele. E ele refez o altar do Senhor que tinha sido demolido. Tomou doze pedras, segundo o número das doze tribos dos filhos de Jacó, a quem Deus tinha dito: “Teu nome será Israel”, e edificou com as pedras um altar ao nome do Senhor. Fez em redor do altar um rego, capaz de conter duas medidas de sementes. Empilhou a lenha, esquartejou o novilho e colocou-o sobre a lenha, e disse: “Enchei quatro talhas de água e derramai-a sobre o holocausto e sobre a lenha”. Depois, disse: “Outra vez”. E eles assim fizeram uma segunda vez. E acrescentou: “Ainda uma terceira vez”. E assim foi feito. A água correu em voltar do altar e o rego ficou completamente cheio (vv. 30-35).

A Bíblia do Peregrino (p. 651s) comenta: A intervenção de Elias é descrita com detalhes que atrasam o desfecho e tornam tensa a ação; em contraste com os dervixes, todas as suas ações são calculadas, executadas com ordem e controle. Exceto sua função específica, os elementos parecem possuir função simbólica; a agua, o fogo, a montanha. O fogo é elemento divino: vence a agua que os homens lhes opõem. Em outro contexto e com outra referência, Sb 19,20 comentará: “O fogo ganhava força na agua, e esquecia sua condição de extintor”.

“Refez o altar do Senhor que tinha sido demolido” pelos israelitas partidários do baalismo. Para a Bíblia de Jerusalém (p. 540), “os vv. 31-32a parecem ser uma glosa”, referem-se às doze estelas erguidas por Moisés (Ex 24,4), invocando a unidade do povo. Apesar da divisão em dois reinos, a tradição religiosa sempre considerou o povo uma unidade de doze tribos (Is 8,14; Jr 31,1.31; 16,14s; Ez 37,16-19; etc.)

A aspersão de água talvez marcasse o poder de Deus e a fé do profeta Elias; talvez fosse também um rito, simbolizado a chuva esperada. Para a Bíblia de Jerusalém (p. 540), “Elias não pratica um rito mágico para chamar chuva, mas quer tornar mais deslumbrante o milagre do fogo”.  

Chegada a hora do sacrifício, o profeta Elias aproximou-se e disse: “Senhor, Deus de Abraão, de Isaac e de Israel, mostra hoje que tu és Deus em Israel, e que eu sou teu servo e que é por ordem tua que fiz estas coisas. Ouve-me, Senhor, ouve-me, para que este povo reconheça que tu, Senhor, és Deus, e que és tu que convertes os seus corações!” Então caiu o fogo do Senhor, que devorou o holocausto, a lenha, as pedras e a poeira, e secou a água que estava no rego (vv. 36-38).

A Bíblia do Peregrino (p. 652) comenta: A resposta acontece em silencio; o raio sem o acompanhamento normal de trovão. Os cinco complementos mostram o poder desse fogo divino sobre todos os elementos: animais, madeira, pedra, terra, agua. Lv 9,24.

“Que tu és Deus em Israel, e que eu sou teu servo” A intervenção de Deus vai também legitimar o ministério de Elias (cf. Ex 4,5; Nm 16,28; Jó 12,28-30; 1Cor 4,1-5; 2Cor 10,18).

“Este povo reconheça que tu, Senhor, és Deus, e que és tu que convertes os seus corações!” Lit. “Conhecer” em hebraico, significa mais do que um conhecimento racional (cf. Gn 4,1; Lc 1,34). Aqui poder-se-ia traduzir por “fazer a experiência, estar convencido, crer”. Com efeito, o acontecimento do Carmelo tem como motivação a fé que Israel deposita no Senhor (cf. v. 21).

A Bíblia de Jerusalém (p. 540) comenta: O milagre provará: 1° aos profetas de Baal e ao séquito estrangeiro de Jezabel (“sabia-se”, v. 36), que eles nada têm a fazer em Israel, onde Iahweh é Deus; 2° aos israelitas (“este povo”, v. 37), que Iahweh é o único Deus, que converte a ele os corações.

Vendo isto, o povo todo prostrou-se com o rosto em terra, exclamando: “É o Senhor que é Deus, é o Senhor que é Deus!” (v. 39).

Nossa leitura termina com a reação do povo, uma aclamação e profissão de fé (cf. Dt 6,4) como na assembleia de Siquém que renovou aliança do Sinai (Js 24,19.24; cf. Ex 24,3.7).

Mas nossa liturgia omitiu o v. seguinte, em que Elias “degolou” os 450 profetas de Baal (v. 40). Na guerra entre Javé e Baal, os servos de Baal têm o destino dos vencidos. Javé, como deus oficial ainda é entendido como Deus violento. Ainda não tem a visão do NT, um Deus que converte também os pagãos e inimigos através do amor (cf. Mt 5,43-48).

 

Evangelho: Mt 5,17-19

Uma visão muito positiva da Lei encontramos no Evangelho de Mt que se dirige a leitores judeu-cristãos que vivem ainda no meio de outros judeus, mas fora de Israel, talvez em Antioquia na Síria ou em Alexandria no Egito. Esta visão se caracteriza pelo “melhor cumprimento”, não pela ruptura. Mateus não era fariseu, que rompeu com a tradição judaica como Saulo-Paulo, mas um coletor de impostos (9,9; 10,3); como evangelista, um escriba que sabe, “semelhante a um pai de família tirar do seu tesouro coisas velhas e novas” (13,52).

Depois de propor “felicidades” (bem-aventuranças, vv. 1-12; cf. comentário de segunda-feira) em lugar de “mandamentos”, Jesus expõe sua posição diante da lei tradicional, a Torá (a Lei de Moisés que contém os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados também de Pentateuco); primeiro em termos genéricos (vv. 17-20), incluindo toda escritura na fórmula consagrada “lei e profetas”, depois numa serie de antíteses (vv. 21-48).

Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhe pleno cumprimento (v. 17).

A expressão “a lei e os profetas” (cf. 7,12; 22,40; cf. Lc 24,27; Mc 9,4p) designa esta parte da Bíblia que chamamos de Antigo Testamento e que era a única Escritura sagrada dos judeus. A Bíblia hebraica se divide em três partes (T-N-Q), Tora (a “lei” de Moises ou Pentateuco, os primeiros cinco livros: Gn, Ex, Lv, Nm, Dt ), Nebiim (“profetas”: 1-2Sm; 1-2Rs; Is, Jr; Ez e os 12 profetas menores) e Quetubim (“escritos” sapiências: Sl, Jó, Pr…; cf. Lc 24,44).

Contra conclusões precipitadas (talvez derivadas da teologia de Paulo que substituiu a lei pela fé, a circuncisão pelo batismo, etc.), Mt quer apresentar Jesus como mestre que aperfeiçoa a lei em vez de aboli-la.

Em verdade, eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra (v. 18)

Esta frase, Mt já encontrou numa fonte comum (chamada Q) com Lc (cf. Lc 16,17). “Nem uma só letra ou vírgula” lit.: “nem um iota nem o mínimo traço”. O iota é a letra menor do alfabeto hebraico; os traços talvez designem a ponta ou a barra que distinguem as letras (ex. entre G e C), num tempo posterior, traços e pontos indicavam os vocais (cf. o ponto do i), já que este alfabeto só contém consoantes. O sentido de v. 18 é que nenhum pormenor da lei deve ser menosprezado. A lei se cumpre quando seus múltiplos preceitos são postos em prática. As profecias, como predições, se cumprem quando o anunciado acontece. Mt não se cansa em salientar as profecias cumpridas durante a vida de Jesus (cf. 1,22; 2,7.15.23; 4,14; 8,17; 13,35; 21,4; 27,9).

Portanto, quem desobedecer a um só desses mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino do Céu. Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino do Céu (v. 19).

Não se deve pensar, porém, que Jesus ensina cumprir a lei como ensinam os fariseus. Cumprir a lei fielmente não significa subdividi-la em observâncias minuciosas, criando uma burocracia escravizante. Jesus revela o sentido mais profundo da lei, a vontade de Deus, buscar nela inspiração para a justiça e a misericórdia, a fim de que o homem tenha vida e relações mais fraternas. Jesus resume toda lei na regra de ouro (7,12p) e no mandamento do amor a Deus e ao próximo (22,34-40; cf. Jo 13,34: Rm 13,8-10: Gl 5,14; Cl 3,14).

O amor e a misericórdia são a perfeição na Lei (cf. v. 48) e a justiça maior. “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vos não entrareis no Reino dos Céus.” (v. 20 omitido pela leitura de hoje).

A maneira como Jesus dá pleno cumprimento as leis do AT é diferente do legalismo dos hipócritas, fariseus e mestres da lei que “só falam e não praticam” (23,3). Para Mt, é importante a ética, ou seja, praticar a vontade de Deus (cf. 7,21). A justiça dos cristãos que deve superar a dos doutores da lei e dos fariseus (cf. v. 20), não consiste em cumprir ao pé da letra os mínimos detalhes da lei, mas na criatividade do coração que ama: “Tudo o que você desejam que as outras façam a vocês, façam vocês também a eles. Pois nisso consiste a Lei e os Profetas” (Regra de Ouro em 7,12). A interpretação de Jesus (seu “jugo leve”, cf. 11,30) a respeito da Lei é o mandamento maior do amor: “Ame o Senhor teu Deus com todo o teu coração,… ame seu próximo como a si mesmo. Toda lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (22,34-40; Dt 6,5; Lv 19,18). Com esta interpretação, o evangelista Mateus ainda se encontra com os pensamentos do apóstolo Paulo que costumava polemizar contra a lei judaica. “Cristo é o fim da lei” (Rm 10,4) ou “finalidade da lei”; a palavra grega pode exprimir ao mesmo tempo a idéia de meta, de termo e de realização.

Para o mestre da lei, Saulo de Tarso, a Lei era a salvação; mas depois da sua conversão, Saulo-Paulo reconheceu, que “ninguém se tornará justo diante de Deus através da observância da Lei, pois a função da Lei é da consciência do pecado. Agora, porém, independentemente da Lei, manifestou-se a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas. É a justiça de Deus que se realiza através da fé em Jesus Cristo, para todos aqueles que acreditam” (Rm 3,20-22). Paulo sabe que “a Lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7,12), mas a Lei não salva, sim conscientiza e condena. O Tribunal Supremo dos Judeus (Sinédrio) condenou Jesus por sua interpretação diferente da Lei. Não só a Lei, antes é a promessa, a graça e a fé que importam. “Não torno inútil a graça de Deus porque se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu em vão” (Gl 2,21). “Sabemos, entretanto, que o homem não se torna justo pelas obras da lei, mas somente pela fé em Jesus Cristo” (Gn 2,16). “A lei do Espírito que dá a vida em Jesus Cristo, nos libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,2). Paulo escreveu contra aqueles que queriam obrigar pela lei a circuncisão dos cristãos que vieram do paganismo, enquanto para Paulo basta batizá-los como sinal da fé em Jesus Cristo. Por isso ele opôs a Lei (a circuncisão, a carne, as obras) à fé (a graça, a promessa, o espírito, a fé). Mas ele reconhece também que a liberdade da lei (da circuncisão) não dispensa do amor ao próximo: “Pois toda Lei encontra sua plenitude num só mandamento: “Ame seu próximo como a se mesmo”… Carreguem os fardos uns dos outros, assim vocês estarão cumprindo a lei de Cristo (Gl 5,14; 6,2).

A contradição de Paulo (só a fé salva, não as obras da lei) de um lado, e de Mateus (não abolir, mas cumprir a lei) e Tiago (a fé sem obra é morta; cf. Tg 3,14-26) no outro lado, explica-se pelo público diferente. Paulo escreveu para os pagãos e queria poupá-los das exigências da lei cultual, mas não da ética (amor ao próximo). Tg e Mt escreveram para judeu-cristãos que viviam dentro da lei judaica e valorizam a sabedoria da Lei de Moises e dos Profetas, mas agora são convidados a interpretá-los conforme a lei máxima do amor a Deus e ao próximo.

Sem normas, regras, leis uma sociedade não pode existir, também a Igreja tem seu Código Canônico com 1752 leis (cânones). São Filipe Neri disse: “Para ser obedecido, precisa de poucas normas. Eu escolhi a caridade.”

No site da CNBB comenta: Todos nós estamos de acordo que devemos obedecer a Deus, mas não estamos muito de acordo se perguntarmos por que devemos obedecer a Deus. Isto porque existem duas formas de obediência. A primeira é a obediência de quem reconhece o poder de quem manda e se submete a este poder por causa das vantagens da obediência ou das conseqüências da desobediência. É aquele que diz que manda quem pode e obedece quem tem juízo. A segunda é de quem reconhece os valores que motivam a autoridade e assume esses valores como próprios, vendo na obediência a grande forma de concretização desses valores. Jesus não veio mudar a lei, mas mostrar as suas motivações, os seus valores, a fim de que a sua observância não seja um jugo, mas uma forma de realização pessoal.

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