14 de abril de 2016 – Páscoa 3ª semana 5ª feira

Leitura: At 8,26-40

Na leitura de hoje ouvimos do batismo do primeiro africano (talvez depois da família de Simão de Cirene, cidade da Líbia, cf. Mc 15,21), um ministro da Etiópia cuja conversão revela o método da evangelização aos que já conhecem a Escritura (judeus, prosélitos e tementes a Deus, ou seja, simpatizantes).

Dois personagens, Filipe e o eunuco ministro se encontram no caminho e se separam, depois de um explicação da Escritura e um sacramento. O relato paralelo é o do caminho dos discípulos a Emaús, a quem Jesus explica as Escrituras no caminho e desaparece depois do sacramento (da eucaristia; cf. Lc 24,13-35).

Os eunucos (homens castrados) faziam parte de cortes orientais para servir e vigiar as mulheres do rei e alcançaram altos cargos de confiança (2 Rs 8,6; 24,12; Is 39,7 etc.). O tema é outra abertura transcendental da Igreja, na qual se cumpre uma profecia sobre a inclusão dos eunucos (Is 56,3): “Não diga o estrangeiro: O Senhor me excluirá do seu povo. Não diga o eunuco: Eu sou uma arvore seca” (cf. Sb 3,14); equivale praticamente uma abolição de uma lei (Dt 23,2).

Um anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: “Prepara-te e vai para o sul, no caminho que desce de Jerusalém a Gaza. O caminho é deserto“. Filipe levantou-se e foi (v. 26).

Depois da sua evangelização da Samaria (“confirmada” pelos apóstolos, cf. vv. 14-16), o diácono Filipe recebe outra missão através de um “anjo do Senhor” (v. 26; cf. 5,29; 8,26; 10,3; 12,7-10.23; 27,23). O “anjo do Senhor” representa o próprio Deus, cf. Gn 16,7.13; 22,11, Ex 3,2; Jz 2,1 etc.; Mt 1,20; 28,2; Mc 1,13p; cf. Lc 22,43; 24,4.23; At 1,10). A ação se move de fora, sobrenaturalmente: um anjo do Senhor dá ordens, o Espírito manda, o Espírito arrebata (vv. 26.29.39).

Nisso apareceu um eunuco etíope, ministro de Candace, rainha da Etiópia e administrador geral do seu tesouro, que tinha ido em peregrinação a Jerusalém (v. 27).

Podemos imaginar Felipe como missionário itinerante, em busca de novas pessoas a evangelizar. Não podia voltar a Jerusalém por causa da perseguição aos cristãos helenistas (vv. 1-3; cf. leitura de ontem). O anjo o envia a uma estrada deserta, que une a capital com a cidade costeira de Gaza  (uns 100 km). Por ela um estrangeiro vai descendo numa carruagem: um eunuco etíope, ministro das finanças da rainha, cujo título real é  “Candace” (como Faraó o é do rei egípcio). Etiópia fica na África, ao sul do Egito (e antigamente incluía o Sudão). Muitos reis no Oriente também tinham eunúcos (homens castrados) como ministros ou cargos de confiança. Não sabemos, se este homem culto era judeu, prosélito (pagão convertido ao judaismo e circuncidado; cf. 2,11; 13,43) ou somente pagão simpatizante da religião judaica (cf. 10,2; Lc 7,2-4); por causa da sua condição de eunuco, talvez o último (cf. Dt 23,2; Lv 21,20). Mas existe (até hoje) uma comunidade judaica na Etiópia que remonta do tempo das relações da rainha de Sabá (Yêmen, sul da Arábia?) com Salomão (1 Rs 10,1-13).

Ele estava voltando para casa e vinha sentado no seu carro, lendo o profeta Isaías. Então o Espírito disse a Filipe: “Aproxima-te desse carro e acompanha-o“. Filipe correu, ouviu o eunuco ler o profeta Isaías e perguntou: “Tu compreendes o que estás lendo?“ O eunuco respondeu: „Como posso, se ninguém me explica?“ Então convidou Filipe a subir e a sentar-se junto a ele. A passagem da Escritura que o eunuco estava lendo era esta: “Ele foi levado como ovelha ao matadouro; e qual um cordeiro diante do seu tosquiador, ele emudeceu e não abriu a boca. Eles o humilharam e lhe negaram justiça; e seus descendentes, quem os poderá enumerar? Pois sua vida foi arrancada da terra“. E o eunuco disse a Filipe: “Peço que me expliques de quem o profeta está dizendo isso. Ele fala de si mesmo ou se refere a algum outro?“ (vv. 28-34).

O ministro retorna de uma peregrinação ao templo de Jerusalém (cf. Is 2,2-5; Zc 8,22-23). Talvez tenha adquirido aí um pergaminho copiado com um texto de Isaias. Vai lendo em voz alta como era costume até que se inventou a leitura mental. Está curioso para saber quem é o “Servo de Deus” no profeta Isaias. Embora cite apenas dois vv. (Is 53,7-8), podemos supor que o diálogo seguinte verse sobre a perícope inteira (52,13-53,12). Filipe reconhece o texto lido: ele o teria escutado várias vezes nos ofícios sinagogais da sua terra e nos cultos cristãos onde tornou-se um texto-chave para os cristãos (cf. as múltiplas citações em 3,13.26; 4,47.30; Mt 8,17; 26,28.63; 27,38; Lc 22,37; Jo 1,29; 12,38-40; 2 Cor 5,21; 1 Pd 2,22-24; hoje é a primeira leitura da Sexta-feira Santa, cf. meu comentário lá). Aqui a citação é da traducão grega do AT (chamada a dos Setenta – LXX). O estrangeiro compreende o sentido material do texto, mas não sabe identificar o personagem de que se fala. Neste caso, identificá-lo é compreender o texto.

Então Filipe começou a falar e, partindo dessa passagem da Escritura, anunciou Jesus ao eunuco. Eles prosseguiram o caminho e chegaram a um lugar onde havia água. Então o eunuco disse a Filipe: “Aqui temos água. O que impede que eu seja batizado?“ O eunuco mandou parar o carro. Os dois desceram para a água e Filipe batizou o eunuco. Quando saíram da água, o Espírito do Senhor arrebatou a Filipe. O eunuco não o viu mais e prosseguiu sua viagem, cheio de alegria (vv. 35-39).

Como Jesus no caminho de Emaús (Lc 24,27), Filipe oferece ao estrangeiro uma catequese: a páscoa de Jesus, sua morte e ressurreição, é a chave de compreensão da Escritura.

Em grego “explicar” é guiar, encaminhar. Todo o caminho de peregrinação ao templo não bastava para entender, mas agora chegou a fé (cf. 2 Cor 3,14-17). O estrangeiro descobre uma fonte no caminho (v. 36), um símbolo de fecundidade: do terreno “deserto” brota uma fonte de água vivificante, do livro incompreensível brota um sentido que ilumina e transforma, o eunuco estéril quer recuperar vida nova e pergunta a Filipe: “O que impede que eu seja batizado?” (v. 36). Alguns manuscritos antigos acrescentaram um diálogo da liturgia batismal: “Respondeu Filipe: Cres de todo coração. Respondeu o eunuco: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus” (v. 37, omitido na leitura de hoje). Pode-se recordar outro estrangeiro célebre, o general Naama da Síria que recuperou sua saúde mergulhando no rio Jordão (2 Rs 5, citado por Lc 4,27).

O fato de ser estrangeiro, de ser eunuco, de morar numa corte real, será impedimento? Na pergunta, “o que impede que seja batizado?”, ressoam as dúvidas das primeiras comunidades. O batismo do etíope é mais um passe em direcão à uma Igreja católica (para todos). Não conhecemos o nome do eunuco para venerá-lo na Igreja, mas ele é o primeiro africano negro que foi batizado (Simão de Cirene não era negro, era da Líbia, África do Norte). “Prosseguiu sua viagem, cheio de alegria” (v. 39; a alegria é uma característica dos At; cf. v. 8; 13,48.52; 16,34; cf. 5,41; Lc 1,14; 2,10; Rm 15,13; Fl 4,4 etc.).

“Quando saiu da água, o Espírito…” (v. 39; cf. Mc 1,10).

Filipe foi parar em Azoto. E, passando adiante, evangelizava todas as cidades até chegar a Cesaréia (v. 40).

Filipe passou pela faixa de Gaza (região sofrida hoje) evangelizando todas as cidades até Cesareia” (v. 40). Lá ele deve ter se estabelecido, porque casou e teve “quatro filhas, virgens profetisas”. Sabemos disso através da notícia de Paulo se hospedar na casa dele (21,8-10). Lá, Filipe é chamado de “evangelista”.

Termina esta parte dos At; o próximo protagonista será Paulo que levará a evangelização adiante para terceira fase: a evangelização e inclusão dos pagãos “até os confins da terra” (1,8).

 

Evangelho: Jo 6,44-51

Continuamos ouvindo o discurso de Jesus sobre o pão da vida que provoca resistência na multidão dos judeus que o escuta. Eles “começaram a murmurar”, questionando sua procedência do céu: “Não é ele Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos? Como, pois, diz ele: Desci do céu?” (vv. 41-43, omitidos pela nossa liturgia).

(Jesus disse à multidão:) “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia (vv. 43-44).

Jesus responde: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai”. Esse “atrair” pode recordar Yhwh (Javé) como Pai “atraído” com o amor de seu filho (Os 11,4). Ninguém pode acreditar em Jesus por força própria. A fé é dom de Deus (v. 29: “obra de Deus”; cf. 15,16; Mt 16,17), é como sua atração impressa no homem.

O Filho, por sua vez, vai atrair através do seu amor até o fim: “E quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim. Dizia, porém, isto, significando de que morte havia de morrer” (12,32s). Quem é atraído pela iniciativa do Pai, “instruído” pelo Pai (v. 45), “vem” a Jesus, isto é, crê nele (vv. 44-45.47), e “possui a vida eterna” (v. 47), porque Jesus o ressuscitará “no último dia” (v. 44).

Está escrito nos Profetas: ‘Todos serão discípulos de Deus’ (v. 45a).

“Todos serão discípulos de Deus” (Is 54,13); a citação pertence a um poema de reconciliação amorosa de Jerusalém com Yhwh (Javé). No contexto de nova aliança (Jr 31,33-34), não aprenderão na escola de homens (rabinos?), mas diretamente de Deus (cf. Sl 16,7; Is 48,17), ou seja, pelo Espírito (14,26; 16,13; cf. Jl 3,1-3 citado por At 2,17s). Pode ser uma polêmica dirigida contra as autoridades judaicas (”os judeus”) da época do evangelista, porque no sínodo de Jâmnia (90 d.C.), os rabinos excomungavam os cristãos da sinagoga (cf. 9,22.40-41; 16,2).

Ora, todo aquele que escutou o Pai e por ele foi instruído, vem a mim. Não que alguém já tenha visto o Pai. Só aquele, que vem de junto de Deus, viu o Pai. Em verdade, em verdade vos digo, quem crê, possui a vida eterna (vv. 45b-47).

“Todo aquele que escutou o Pai e por ele foi instruído, vem a mim” (v. 45b; cf. v. 37). A instrução pelo Pai acontece através da sua Palavra, que é o próprio Jesus (1,1.14). Só ele “que vem junto de Deus viu o Pai” (1,18; 14,9; 1 Jo 4,12; cf. Moisés em Ex 24,10s; 33,11.18-23; Nm 12,8; Dt 34,10) e pode revelá-lo.

Eu sou o pão da vida. Os vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram. Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá. Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente (vv. 48-51b).

Como Jesus é a palavra de Deus, ele também dá vida. Ele é o “pão da vida”, que é em primeiro plano o ensinamento, em segundo a eucaristia. O uso figurativo do pão ou do alimento é conhecido no AT: Os profetas o aplicam à Palavra de Deus (Is 55; Am 8,11); os sábios aplicam à sabedoria. Como Jesus (vv. 35.37.48-58), a Sabedoria convida os homens para refeição (Pr 9,1-6; Eclo 24,21). A sabedoria é pré-existente como Jesus (Pr 8,22; Sb 7,22).

Jesus é a Palavra de Deus, só ele pode revelar o Pai e dar a vida eterna: “Eu sou o Pão da vida. Os vossos pais comeram o maná no deserto, no entanto, morreram” (v. 49; cf. vv. 31s.58); morreram lá no deserto, sem chegar à terra prometida (Nm 14,21-23; Sl 95,7-9). “Eis aqui o pão que desce do céu: quem comer dele, nunca morrerá” (v. 50); apesar de seu corpo passar pelo vale da morte (Sl 23,4), a pessoa (alma) que crê continuará viva e ressuscitará (cf. 11,25s).

E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (v. 51c).

O final do evangelho de hoje serve de eixo para unir o discurso sobre o pão vivo com a explicação eucarística em seguida: “O pão que eu darei é minha carne dada para a vida do mundo” (v. 51c). Repetindo a frase programática (v. 51ab), passa a nova seção (vv. 51c-59) marcada pela palavra “carne” (vv. 52-56; cf. 1,14). Este versículo sustenta-se numa síntese teológica: descida do céu, dom sacrifical na cruz, vida do ressuscitado.

A mediação de Moisés com o maná fica superada. Jesus é mediador da nova aliança, não só para Israel, mas para o mundo inteiro: “Pois o pão do céu é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (v. 33; cf. v. 51). Jesus é o “salvador do mundo” (4,42; cf. 3,16s), não só o “messias de Israel” (1,41.49); sua missão na terra e sua morte são para “todos”, não só para “muitos” (em hebraico, “muitos” pode significar todos; cf. Is 53,12; Mt 26,28p; cf. as palavras da consagração na Oração Eucarística). Jesus convida a todos e não exclui ninguém, é o ser humano que se exclui quando não crê.

O site da CNBB comenta: Um dos elementos fundamentais na fé católica é o primado da graça. Se Deus não age, nós não podemos agir, nos tornamos incapazes de fazer o bem. Para nós, o bem maior é conhecer Jesus, sermos capazes de ir até ele, mas isso só é possível pela atuação da graça. Mas, se por um lado, a graça é necessária para chegarmos até Jesus, por outro lado, Deus respeita a nossa liberdade, de modo que associada à graça divina, deve estar a nossa procura de Cristo. De nada adianta a graça nos mostrar que Jesus é o Pão da vida descido do céu para ser alimento de vida eterna a todos nós, se nós não queremos vê-lo.

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