14 de agosto de 2018, Terça-feira: Do mesmo modo, o Pai que está nos céus não deseja que se perca nenhum desses pequeninos

Leitura: Ez 2,8-3,4

A leitura de hoje é a continuação da visão grandiosa da glória de Javé (cap. 1). Ezequiel caiu de rosto em terra, mas o espírito (cf. Elias e Eliseu em 1Rs 18,12; 2Rs 2,15s; 5,26) o pôs em pé para ouvir a mensagem (1,28d-3,1). A visão do carro de Javé prossegue mais adiante (3,12). Ela é aqui interrompida pela visão do livro, que alguns consideram a primeira visão de Ezequiel, em 593, a de sua vocação.

Assim fala o Senhor: ”Quanto a ti, Filho do homem, escuta o que eu te digo: Não sejas rebelde como esse bando de rebeldes. Abre a boca e come o que eu te vou dar” (2,8).

Diferente dos profetas anteriores, Ezequiel não é chamado pelo nome, mas como “Filho do homem” (lit. filho de Adão). Só em Ezequiel, Deus chama o profeta assim (em Dn 8,17, é o anjo Gabriel que chama).

A expressão “filho do homem” é usada 93 vezes para designar Ezequiel. Reforça o contraste entre a criatura humana e o Deus poderoso e transcendente. Diante da glória do Senhor, cuja grandeza parece terrificante (1,28), Ezequiel não passa de um ínfimo filho de homem (2,1.3.6.8; 3,1 etc.), incapaz até mesmo de se manter de pé.

Enquanto os profetas anteriores estavam, nas suas visões, no conselho celeste como ouvintes e espectadores (1Rs 22; Is 6), Ez fica na terra com sua consciência. A distância entre glória divina e criatura humana é imensa. Por outro lado, a expressão “filho do homem” é mais universal (Ez não é chamado de “filho de Israel”). Ez representa a espécie humana e vai profetizar também sobre outros povos (caps. 25-32). Em Dn 7,13, o “Filho do homem” assume a conotação de título messiânico que Jesus retomará com frequência (cf. Mc 2,10.28; 8,31.38; 9,9.12.30; 10,33.45; 13,26; 14,21.62; Mt 8,20 etc.).

Nos vv. anteriores, Deus enviou o profeta aos “filhos de Israel, a esses rebeldes que se revoltaram contra mim até o dia de hoje” (2,3). “Não seja rebelde”; o tema da difícil docilidade do profeta, de sua submissão reticente à Palavra, está ligado ao do chamado, cf. Moisés (Ex 3,7-4,17), Jeremias (Jr 12,1-13; 15,10-21), o Servo de Javé (Is 42,18-20; 49,4; 50,5-7). Ezequiel é descrito como Isaias (Is 6,9-13) e Jeremias (Jr 1,17-19): têm dificuldades ao assumir a missão no meio de um povo rebelde.

Eu olhei e vi uma mão estendida para mim e, na mão, um livro enrolado. Desenrolou-o diante de mim; estava escrito na frente e no verso e nele havia cantos fúnebres, lamentações e ais (2,9-10).

“Um livro enrolado”; a Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 809) explica: Os livros da Antiguidade eram feitos de folhas de papiro ou de couro coladas umas às outras, formando uma longa tira. Esta tira era enrolada em torno de um ou dois cilindros. Sobre todo o comprimento do rolo, o texto era repartido em colunas, que apareciam sucessivamente pela simples rotação dos cilindros.

“Havia cantos fúnebres, lamentações e ais”, por causa da abundância dos oráculos de desgraça que devem ser proclamados.

Ele me disse: “Filho do homem, come o que tens diante de ti! Come este rolo e vai falar aos filhos de Israel”. Eu abri a boca, e ele fez-me comer o rolo. Depois disse-me: “Filho do homem, alimenta teu ventre e sacia as entranhas com este rolo que eu te dou”. Eu o comi, e era doce como mel em minha boca. Ele disse-me então: “Filho do homem, vai! Dirige-te à casa de Israel e fala-lhes com as minhas palavras” (3,1-4).

Um serafim tocou a boca de Isaías (Is 6,5-7), o próprio Javé a de Jeremias, para colocar suas “palavras na boca” do profeta (Jr 1,9) que “as devorava” (Jr 15,16). Ezequiel exprime esta última idéia ainda com mais realismo, transforma em gesto aquilo que Jeremias disse como imagem (cf. Sl 19,11: “suas palavras são mais doces que o mel”). O profeta tem de assimilar a mensagem antes de pronunciá-la; antes de assimilá-la, a saboreia. O volume ou rolo está escrito de ambos os lados e deve “saciar as entranhas” do profeta (cf. a palavra de Deus como alimento: Is 55,1-3; Sb 9; Jo 6).

“Eu o comi”. Ez gosta de sinais muito concretos, exigidos, aliás, por seu temperamento expressivo e pelos seus ouvintes (cf. caps. 4 e 5). Em Ap 10,8-11, a cena se repete, o vidente come o livrinho que o anjo deu: na “boca era doce como mel; quando o engoli, porém, no meu estômago se tornou amargo”. Doce porque vem de Deus, amargo pelo conteúdo. Também a mensagem de Ez não será agradável por enquanto: depois de cinco anos de cativeiro (cf. 1,1s), ele anuncia aos exilados que a situação continuará, até irá piorar.

“Dirige-te à casa de Israel”. A casa designa seus moradores; a mensagem de Ezequiel deve se dirigir ao povo judeu, aos exilados (como o profeta) e (por correspondências ou recados) também aos remanescentes em Judá. A palavra de Deus não pode ficar no ventre do profeta, há de ser transmitida aos outros.

Esta visão do livro pressupõe que a profecia já existia na forma escrita (como livro, ou seja, rolo). Diferente de Jr 36, onde Jeremias só escreveu porque foi impedido de entrar no templo e falar pessoalmente, podemos supor que Ez já tenha concebida sua mensagem como escrita, enviada por Deus, desde o início da sua atividade. Uns exegetas desprezam Ez por isso, chamando-o apenas “escritor” e não “profeta”, porque não se mostrava um pregador poderoso como os profetas anteriores. Mas um escritor tem menos espírito do que um orador? Aos exilados, Ez falava também pela boca (caps. 14 e 20). Mas se quisesse atuar além desse círculo, precisava escrever (como no NT, o apóstolo Paulo, cf. 2Cor 10,10).

 

Evangelho: Mt 18,1-5.10.12-14

No evangelho de hoje, inicia-se o quarto discurso de Jesus em Mateus, o cap. 18 (o último antes de partir para a Judéia; 19,1). O evangelista reúne várias instruções para seus leitores que devem ser uma comunidade de irmãos pequenos e humildes. Tema central é a atenção devida aos pequenos, necessitados, ofensores extraviados, e o valor da humildade, da compreensão, do perdão mutuo e da reconciliação. “Meninos e pequenos” repetem-se nos vv. 1.14, “irmãos” nos vv. 15.21.35. Na primeira parte, Mt copia e mescla Mc 9,33-37; 10,15.

Os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram: “Quem é o maior no Reino dos Céus?” (v. 1).

O protocolo da época era escrupuloso em designar procedências e definir classes. Os discípulos podem contagiar-se com este costume (23,8-12; cf. a preferência de Pedro 16,17s e dos três discípulos em 17,1s; cf. 20,20-28). Como será no reino de Deus, que é a nova comunidade em sua dimensão transcendente? A questão é grave devido ao afã em busca de riqueza, de superar-se e de superar, ao menos no confronto com os outros.

Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse: “Em verdade vos digo, se não vos converterdes, e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus. Quem se faz pequeno como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus (vv. 2-4).

A resposta de Jesus vai à raiz. Embora contraste com as pretensões da época, está na linha de múltiplas declarações do AT sobre exaltação e humilhação (cf. 1Sm 2, o cântico de Ana, e Sl 113 etc.). Especialmente interessante é Eclo 3,17-20 (19-26). O termo grego paídion (mesma palavra em 2,8-11; 11,16; 19,13s), além da idade, pode denotar o ofício: “menino, criança”, ou “criado, servente”, já que é capaz de responder ao chamado de Jesus.

No AT se destaca a falta de juízo nas crianças (Sb 12,24; 15,14; Eclo 30,1s), mas em Sl 8,3 e Sl 131,2 se fala delas como modelo de louvor e como exemplo de saber contentar-se. A criança colocada por Jesus no centro (Mc 9,36) é uma presença simbólica: no reino celeste todos serão pequenos, filhos de Deus e essa será sua grandeza. Pode-se comparar a primeira bem-aventurança (5,3: os pobres em espírito).

E quem recebe em meu nome uma criança como esta, é a mim que recebe (v. 5).

Há aqui uma inversão do pensamento. Depois de terem sido exortados de “fazer se pequenos” como as crianças, os discípulos são agora convidados a “receber” as crianças. Acolher a criança é consequência do que procede (cf. Gn 21,20); pode-se entender em sentido próprio (adoção, não abortar) ou metafórico (um homem que se tornou criança pela simplicidade; cf. v. 4). Deve se fazê-lo “em meu nome”, ou seja, “em atenção a Jesus”.

A comunidade cristã não é a reprodução de uma sociedade que se baseia na riqueza e no poder. Nela, é maior e mais importante aquele que se converte, deixando todas as pretensões sociais, para pertencer a um grupo que acolhe fraternalmente Jesus na pessoa dos pequenos, fracos e pobres.

Os vv. 6-9 (omitidos pela leitura da liturgia) são copiados de Mc 9,42-47 e falam do escândalo aos pequenos e da mutilação (simbólica) de membros do corpo que nos levam a pecar (Mt já mencionou isso em 5,29s).

Não desprezeis nenhum desses pequeninos, pois eu vos digo que os seus anjos nos céus veem sem cessar a face do meu Pai que está nos céus (v. 10).

Já no AT, os anjos protegem pessoas em perigo (Gn 16,7; 21, 17; 22,11; 24,7.40; 48,16; Ex 14,19; 23,20; Sl 91,11; Dn 3,49; cf. 2Mc11,6; 15,22s; Tb 5,6.22; Jt 13,20). Estes anjos são enviados de Deus e cuidam dos pequeninos (segundo Sl 91,11s); são servidores (ministros) que tem acesso a presença dele (como os que Jacó viu, cf. Gn 28,12).

“Seus anjos veem sem cessar a face do meu pai”, é expressão bíblica que indica a presença dos cortesãos diante do seu soberano (cf. 2Sm 14,24; 2Rs 15,19; Tb 12,15). Aqui a ênfase está menos na contemplação dos anjos (cf. Sl 11,7) do que na assiduidade e familiaridade das suas relações com Deus. No entanto, esta frase fundamentou a convicção de que cada criança e pessoa têm seu “anjo (pessoal) de guarda”.

Alguns manuscritos acrescentam o v. 11 (omitido em nossa leitura), tomado de Lc 19,10: “porque o Filho do homem veio salvar o que estava perdido.

Que vos parece? Se um homem tem cem ovelhas, e uma delas se perde, não deixa ele as noventa e nove nas montanhas, para procurar aquela que se perdeu? Em verdade vos digo, se ele a encontrar, ficará mais feliz com ela, do que com as noventa e nove que não se perderam (vv. 12-13).

Mt encontrou esta parábola na fonte de palavras Q (cf. Lc 15,3-7). Por que alguém se extravia, isto é, se distancia da comunidade? Certamente por causa do escândalo (vv. 6-9), ou do desprezo daqueles que buscam poder e prestígio. Se por qualquer causa um membro se extraviou, a comunidade deve esforçar-se por recuperá-lo.

A comparação da ovelha pode ser inspirada em Ez 34,4.11s.16 (cf. Is 53,6); poderia haver uma lembrança de Davi pastor (1Sm 17,34). Deus como bom pastor é motivo frequente (cf. Ez 34,11s; 20,34; Sl 23; 79,13; 95,7; 199,3; Is 40,11; cf. Mt 9,36; 15,24; 26,31; Jo 10). Aqui, Mt vê a comunidade como bom pastor. A comunidade inteira deve preocupar-se e procurar aquele que se extraviou. Ela se alegra quando ele volta para o seu meio, porque a vontade do Pai foi cumprida.

Do mesmo modo, o Pai que está nos céus não deseja que se perca nenhum desses pequeninos (v. 14).

O princípio de Ez 18,23.32 (“Eu não tenho prazer na morte de quem quer que seja, oráculo do Senhor. Convertei-vos e vivereis!”) se aplica de modo especial aos pequenos. Em seguida (evangelho de amanhã), Mt discursará sobre o trato com os pecadores.

O site da CNBB comenta: A nossa vida é constantemente condicionada pelos valores e costumes da sociedade e nós temos a tendência de querer levar os valores do mundo para a Igreja e até mesmo para o Reino de Deus. Entre esses valores do mundo que nos influenciam, podemos citar a hierarquização e a competitividade no dia a dia, que fazem com que haja sempre entre nós um clima de disputa e de busca de superioridade em relação às outras pessoas. É esse clima o principal responsável por muitos mal-estares na vida da comunidade. São os valores evangélicos que devem transformar o mundo e não os valores do mundo que devem transformar a Igreja.

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