15 de agosto de 2018, quarta-feira: Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estou ali, no meio deles”

Leitura: Ez 9,1-7; 10,18-22

Depois de “comer” o livrinho (leitura de ontem, cf. Ap 10), Ez apresenta outra visão que será retomada no Apocalipse de João (Ap 7). Esta visão faz parte da segunda grande visão, onde o profeta se encontra em Jerusalém, arrebatado pelo Espírito (caps. 8-11). Deus mostra a ele todas as “monstruosas abominações”: a idolatria que continua no templo (o “ídolo do ciúme”, talvez a estátua de Astarte ou Asera que Manassés introduziu no templo, cf. 2Rs 21,7; adoração do sol e de imagens de animais, talvez as constelações do zodíaco) e a violência na terra provocaram a ira de Deus (8,1-18; 9,9s)

O castigo de Deus vem do “norte” (9,1; Babilônia; cf. Jr 4,6). Segundo o texto de hoje, Jerusalém será devastada por causa de suas abominações (seus “horrores”, v. 4). A visão vai mostrar que o castigo não atingirá a todos indistintamente, mas poupará os inocentes (cf. a responsabilidade pessoal em 14,12-23).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1043) comenta: A visão retoma de Ex 12 (cf. Ap 7) o exterminador e o sinal de proteção. No tempo exílico e pós-exílico, o Deus oficial do Templo é absolutamente transcendente, poderoso e vingador, que pune e salva, muito diferente do Deus de Jesus (cf. Lc 12,22-31).

O Senhor gritou a meus ouvidos, com voz forte: “Aproxima-se o castigo da cidade! Cada um tenha sua arma destruidora na mão!” Então, eu vi seis homens vindo da porta superior, voltada para o norte, cada qual empunhando uma arma de destruição. Entre eles havia um homem vestido de linho, que levava um estojo de escriba na cintura. Eles foram colocar-se junto do altar de bronze (9,1-2).

Os homens com a “arma destruidora” (lit. “instrumento exterminador”) lembram o anjo exterminador de Ex 12,23 (cf. também 2Sm 24,16; Is 54,16s). Um homem é escriba e “vestido de linho” (tecido sacerdotal, Lv 16,4.23.32). Ezequiel é sacerdote (1,2) e imagina os anjos com vestes litúrgicas.

Então a glória do Deus de Israel elevou-se de cima do querubim sobre o qual estava, em direção à soleira do Templo. E chamou o homem vestido de linho, que levava um estojo de escriba à cintura (9,3).

Versículo acrescentado para ligar esta cena com o contexto (8,2 e 10,4), e para recordar ao leitor a presença dominadora do Senhor, sua “glória” (cf. a visão de 1,1-28).

O Senhor disse-lhe: “Passa pelo meio da cidade, por Jerusalém, e marca com uma cruz na testa os homens que gemem e suspiram por causa de tantos horrores que nela se praticam” (9,4).

Esta “marca com uma cruz” (lit. “um tav”, como traduz a Vulgata em latim) reproduz a última letra do alfabeto hebraico, Tav, que primitivamente tinha a forma de cruz. Em Ex 12,7, cada casa dos israelitas recebeu uma marca (o sangue do cordeiro); aqui, pelo contrário, o sinal é individual, o que está de acordo com o ponto importante da doutrina de Ez (cf. cap. 18). Os marcados (assinalados) são propriedades do Senhor, porção sagrada e intocável (cf. Ap 7).

E escutei o que ele dizia aos outros: “Percorrei a cidade atrás dele e matai sem dó nem piedade. Matai velhos, jovens e moças, mulheres e crianças, matai a todos, até ao extermínio. Mas não toqueis em nenhum homem sobre quem estiver a cruz. Começai pelo meu santuário”. E eles começaram pelos anciãos que estavam diante do Templo. Ele disse-lhe: “Profanai o Templo, enchei os átrios de cadáveres. Ide.” E eles saíram para matar na cidade! (9,5-7)

A sentença e execução são descritas com fórmulas de guerra santa (v. 6; cf. Dt 13,16; 20,16; Js 10,40; 11,11s). O templo já não é asilo sagrado (Ex 27,2; 1Rs 1,50; 2,28), porque os sacrilégios o profanaram. Encontramo-nos perante uma visão. Ezequiel não vê de antemão os fatos como vão acontecer dentro de alguns anos. Assiste a uma representação que lhe facilita a chave teológica dos fatos.

Nos vv. 8-11 (omitidos em nossa liturgia), o profeta, não convidado, intervém na representação com o papel profético de intercessor (Gn 18,16-33; Ex 32; Nm 14; Dt 9; Jr 15; Am 7,2-5). O juiz divino recusa o apelo à clemência, porque já tomou providências para salvar os inocentes (9,8-11).

Dado que se encontra dentro do templo, não vê o que se passa na cidade. A sentença será incêndio e matança, dos quais um “resto” fiel ao Senhor se livrará (14,22). Os carrascos são o exército babilônico de Nabucodonosor. A ordem cronológica se inverte: na realidade, no ano de 587/586 os invasores entraram pela cidade até o último reduto do templo (2Rs 25,1-10; Jr 39,1-8; 52,7-14). Na visão, por razões teológicas, a ação se estende do templo à cidade (cf. a fonte que nasce no templo e vira rio em cap. 47).

Então a glória do Senhor saiu da soleira do Templo e parou sobre os querubins. Os querubins levantaram suas asas e elevaram-se da terra à minha vista, partindo juntamente com eles as rodas. Eles pararam à entrada da porta oriental do Templo do Senhor, e a glória do Deus de Israel estava em cima deles. Eram estes os seres vivos que eu tinha visto debaixo do Deus de Israel, nas margens do rio Cobar, e compreendi que eram querubins. Cada um tinha quatro faces e quatro asas, e debaixo das asas, uma forma de mão humana. Suas faces eram semelhantes às faces que eu tinha visto junto ao rio Cobar. Cada um seguia em sua frente (10,18-22).

“Nas margens do rio Cobar” (Ez 1, leitura de segunda-feira passada), o profeta teve a visão grandiosa da glória de Javé e do seu trono num carro movido por “quatro seres vivos”. Agora ele reconhece estes seres como “querubins” cujo nome hebraico Kerub corresponde ao dos Karibu assírios e babilônicos, servos dos deuses, gênios em foram de touro ou de esfinge que guardavam simbolicamente a entrada dos palácios, os lugares santos ou até os tronos divinos (Gn 3,24; 1Rs 6,23-28; Ez 28,14.16). Sobre a tampa da arca da aliança havia imagens de dois querubins (Ex 25,18-22). A arca era considerada como pedestal de Javé, estava guardada no santíssimo do templo, mas ela se perdeu na invasão do exército babilônico (cf. 2Rs 24,13; 25,9.13-17; Jr 3,16s; cf. Ap 11,19). A visão de Ez dá uma resposta teológica a esta perda.

Aqui, Ez anuncia algo até agora impensável: a presença (glória) de Javé “saiu da soleira do templo” e vai sair pela “porta oriental” que dá para o vale do Cedron e o monte das Oliveiras (cf. 11,23; 47,2). O templo foi profanado, por isso o Senhor abandona sua casa com toda glória com a qual os judeus imaginavam sua chegada e posse em Jerusalém (cf. Sl 24,7ss; 97; Is 6,1), cf. “o Senhor sobre os querubins” (Sl 18,11); “sentado sobre os querubins” (Sl 80,2; 99,1; 1Sm 4,4 2Sm 6,2 etc.).

 

Evangelho: Mt 18,15-20

Continuamos no quarto discurso de Jesus no evangelho de Mt. Contra as pretensões de poder e prestigio, Jesus apresentou no início deste discurso uma criança como símbolo de humildade, que deve ser acolhida, preservada e não ser escandalizada (Mt 18,1-9 segue Mc 9,33-48; cf. Lc 17,1s). A comunidade inteira deve se preocupar para que ninguém se perca, e procurar aquele que se extraviou, como na parábola do bom pastor que procura a ovelhinha desgarrada (18,12-14, da fonte Q, comum com Lc 15,3-7).

Depois Mt apresenta um trecho mais longo sobre a correção fraterna e o perdão. Às duas frases que já encontrou na fonte Q (Lc 17,3s), Mt acrescenta ainda material próprio: uma regra da comunidade sobre o trato com pecadores (no texto de hoje) e uma parábola (evangelho de amanhã).

(Naquele tempo, Jesus disse a seus discípulos:) “Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, à sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão (v. 15).

Na vida cotidiana, experimentamos continuamente as fraquezas e os erros de pessoas que vivem conosco e frequentam a comunidade. Se um irmão pecar, não se deve imediatamente fofocar ou denunciá-lo publicamente. Primeiro, é preciso conversar com ele a sós, compreender as razões pelas quais agiu assim.

Nossa liturgia apresenta a versão “pecar contra ti” (cf. Lc 17,3s), acrescentada por muitos documentos, mas provavelmente deve ser rejeitada e ler apenas “pecar”. Aqui se trata de uma grave falta pública, não necessariamente cometida contra aquele que procura corrigi-la (o caso do v. 21 é diferente). A primeira instância é totalmente privada: fazer o irmão refletir e reconciliar-se; “ganhar” (cf. 16,26; 25,16) não para a fé nem conservar a título de amigo, mas conservar como membro da comunidade aquele que estava a ponto de abandoná-la, ou da qual seria excluído (cf. 1Cor 9,19-22).  

Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas (v. 16).

Também a segunda instância é uma conversa em particular, mas com testemunhas (Dt 19,15), que servirão de mediadores. Assim ele vai perceber que outros também não estão de acordo com a conduta dele.

Se ele não vos der ouvido, dize-o à Igreja. Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público (v. 17).

A terceira instância é o julgamento da comunidade. A “Igreja” (em grego ekklésia) é a assembleia dos irmãos (cf. 16,18). Só em casos extremos, deve-se expor o caso à comunidade. Deixar-se corrigir é cancelar o mal da própria vida e crescer como filho de Deus. Humildade para quem corrige e para quem é corrigido. Quando as pessoas não são corrigidas na comunidade, o mal pode fazer festa e destruir tudo. A comunidade cristã é comunidade de salvação pela correção e pelo perdão.

“Seja tratado”, quer dizer: não te ocupes mais com ele; já não és mais responsável por ele; só Jesus conseguirá alguma coisa neste caso. Quando um irmão peca, prejudicando o bem comum, a comunidade age com prudência e justiça, procurando corrigir o irmão. Se alguém que em última instância se negar a reconciliar-se, já não faz parte da comunidade, deve ser decretada a sua separação (ex-comunhão; cf. a excomunhão pronunciada por Paulo em 1Cor 5,4s.11). “Pagãos” e “pecadores públicos” (cf. os “publicanos”, pessoas que cobravam impostos para os romanos) eram considerados “impuros” com os quais os judeus piedosos não podiam se relacionar (cf. 5,46s; 8,7-8; 9,10s; At 11,2s).

Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu (v. 18).

Reunida em nome e no espírito de Jesus, a comunidade tem o poder de “ligar ou desligar”, ou seja, incluir ou excluir pessoas do seu meio (na terra) e da sua mediação com Deus (do céu). Os responsáveis pela comunidade têm o direito de perdoar, reconciliar ou excomungar. À assembleia ou aos ministros da igreja, a quem este discurso se dirige em princípio, concede-se um dos poderes conferidos a Pedro em 16,19. O primado é complementado pela colegialidade.

De novo, eu vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isto vos será concedido por meu Pai que está nos céus (v. 19).

Jesus diz “de novo”, ou: “ainda mais”: O acordo (com ou contra o pecador) se deve manifestar também na oração (v. 19); ou então: também para orar deve haver acordo (cf. Eclo 34,24); como também para ofertar no altar (cf. Mt 5,23s). Não pode haver rancor; Mt destaca a importância do perdão depois de ensinar a oração do Pai Nosso (6,14s).

No quarto evangelho, Jesus promete atendimento a quem faz uma oração “em meu nome” (Jo 14,13s; 15,16; 16,23-24.26; cf. 1Jo 5,14), quer dizer, na intenção (vontade) dele (de maneira que ele possa estar de acordo e assinar o pedido), e acreditando na união do Filho (enviado com toda autoridade) com o Pai.

Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estou ali, no meio deles” (v. 20).

A oração comunitária é corrente nos Salmos; agora adquire novo sentido pela presença de Cristo. Entende-se a presença real de Cristo glorificado, não mera presença mental. Os rabinos exigem o mínimo de dez homens para o culto (dez homens “reunidos” constituem uma “sinagoga”); Jesus o reduz a “dois ou três”. Esta afirmação tem provavelmente a finalidade de estimular todas as tentativas de correção e reconciliação entre os irmãos no seio da igreja, garantindo-lhes a presença de Jesus. Mt apresenta Jesus como “Emanuel”, ou seja, “Deus conosco”: no início do seu evangelho (1,23), no final (28,20), e aqui no meio também (v. 20).

Obs.: Nosso texto de hoje tem um papel fundamental na história do sacramento da reconciliação (confissão). Nos primeiros séculos, só havia uma “confissão pública” de pecados graves (geralmente conhecidos) como apostasia (negar a fé cristã), homicídio e adultério. O pecador recebeu uma penitência dura por um tempo determinado (vestimenta de penitente, exclusão da eucaristia, …), depois foi admitido de novo na comunidade numa celebração de reconciliação. Mas este perdão só se podia receber uma única vez, portanto, muitos adiaram o seu batismo até o final da sua vida (por ex. o imperador Constantino). A partir do séc. VI, pelos monges irlandeses e ingleses, entrou outro tipo de reconciliação: a “confissão individual”, que cada monge fazia a seu abade periodicamente, foi estendida ao povo em geral. Temos então vários aspectos: jurídico (antecipação do juízo, acusação de si próprio e perdão pela autoridade), terapêutico (conversar sob sigilo, aconselhar e curar a alma, cf. o paralítico em Mc 2,1-12; Tg 5,16), comunitário e individual. Havia certamente abusos na época de Lutero (vender e comprar o perdão e a salvação através das indulgências, ou seja, por dinheiro no séc. XVI) que o levaram a descartar este sacramento (e substitui-lo apenas pela fé). Restaram apenas o batismo e a ceia (eucaristia) como sacramentos nas igrejas protestantes.

A Vida Pastoral (2014, p. 46) comenta: É oportuno lembrar serem vários os motivos da omissão, os quais geralmente envolvem medo ou frieza de coração. Temos receio de advertir alguém e ser repelidos, perder a popularidade ou ser tachados de intransigentes. Por isso é mais fácil “lavar as mãos”, como fez Pilatos, e dizer: “Eu não tenho nada a ver com isso”. Não deixemos que nosso coração fique endurecido diante do clamor silencioso de quem está envolvido numa teia de erros e não consegue sair sozinho dessa armadilha. É mais fácil julgar-se superior, murmurar, fofocar, condenar quem caiu ou está em perigo de queda … Se alguém se desviou do caminho, vamos ao seu encontro e insistamos para que retorne. E, caso não queira nos ouvir, não desistamos: oremos para que Deus mesmo o reconduza. Somente não endureçamos nosso coração.

O site da CNBB comenta: A vida em comunidade é essencial para que possamos sentir a presença de Jesus no meio de nós e usufruir dessa presença, porém ela não é fácil, principalmente por causa das dificuldades de relacionamento. A comunidade, para ser realmente cristã, deve ser pautada na misericórdia, no perdão e na acolhida dos que erram, buscando não a punição, mas sim o reerguimento e a superação dos que erram, possibilitando-lhes a conversão e a vida nova em Cristo. É por isso que Jesus nos mostra, no Evangelho de hoje, as exigências da correção fraterna juntamente com a sua promessa de presença no meio de nós.

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