16 de Setembro de 2018, Domingo: Meus irmãos, que adianta alguém dizer que tem fé, quando não a põe em prática? A fé seria então capaz de salvá-lo? (v. 14)

1ª Leitura: Is 50,5-9a

A 1ª leitura foi escolhida em vista do evangelho de hoje no qual Jesus anuncia pela primeira vez sua paixão (Mc 8,31.34). O texto da leitura é tirado do Segundo Isaías (Deutero-Isaías, caps. 40-55), é o 3º canto (poema) do Servo de Deus (e também a 1ª leitura do Domingo de Ramos e da quarta-feira da Semana Santa); na leitura de hoje, porém, falta o v. 4.

Enquanto o 1º canto apresentou a missão pacífica do servo (42,1-4) e o 2º reafirmou apesar do insucesso (49,1-6), o 3º fala da experiência do sofrimento injusto. Quem está a falar parece o próprio servo, embora não seja aqui nomeado, mas é o que se deduz do contexto (cf. v. 10). Não se chama profeta, mas narra sua vocação como de um profeta (cf. 49,1s). Ele inicia quatro vezes com “o Senhor Deus”, lit. “o Senhor Javé” (vv. 4.5.7.9; cf. 40,10; 48,16; 49,14.22; 51,22; 52,4): ao ouvir a palavra (v. 4, cf. Jr 1,2.7.9; 15,16.19; 17,15; 20,8s), ao sofrer na missão (vv. 5-6; cf. Jr 1,8.17; 10,17s; 17,17s; 18,18; 20,7-10) e para confiar no Senhor (vv. 7-9; cf. Jr 15,20s; 20,11-13).

Pelo gênero literário, é um salmo de confiança com confissão, e a mesmo tempo, uma alegação de defesa pelo próprio réu num tribunal. Suas palavras se dirigem aos homens, não a Deus.

No v. 4 (omitido pela nossa liturgia), o autor descreve sua vocação profética. Só pode falar o que ele ouve de Javé (cf. Jo 7,16; 14,24). Ele é um “discípulo” (v. 4; cf. 54,13), talvez saído de uma escola que remonta ao primeiro Isaias (cf. 8,16)? O profeta está com uma “língua adestrada”, porque Deus “desperta cada manhã e me excita o ouvido” (v. 4). A primeira impressão do dia é a palavra de Deus que o orienta e envia (cf. a oração pela manhã em Sl 5,4; 57,9; 88,14; 90,14; Mc 1,35). Sua missão tem um alcance mais restrito do que 42,1.4.6 e 49,6, mas uma nova qualidade: responder às angustias dos fracos e abatidos (cf. o início do Segundo Isaias em 40,1: “Consolai, consolai meu povo”). O povo no exílio da Babilônia está cansado, abatido, deprimido, fatigado, mas o profeta quer dar novo ânimo com sua palavra (cf. 40,27-31; Mt 9,36; 11,28-30).

O Senhor abriu-me os ouvidos; não lhe resisti nem voltei atrás (v. 5).

  1. 5a repete que Deus lhe “abriu os ouvidos” (cf. v. 4; uma metáfora na Babilônia para uma divina revelação verbal a um ser humano).

Para isso, o profeta não resiste o que o Senhor Javé pede também a outro profeta no exílio: “Não seja rebelde como esta casa de rebeldes” (Ez 2,8; cf. 3,24-27; 24,27; 33,22). Ele não resiste nem volta atrás, nem faz objeções como Moisés e Jeremias (cf. Ex 3,11; 4,10; Jr 1,6). Nas confissões de Jr (Jr 15,14s; 20,8b-10), o profeta parece deprimido entre o recado de Deus e as hostilidades dos homens, mas a palavra de Javé alimenta seu coração todo dia. Deutero-Isaías já aceita este destino de profeta como intrínseca. Como depois Jesus, ele se identifica com a vontade de Deus (cf. Jo 4,34; Mc 14,36p).

Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba: não desviei o rosto de bofetões e cusparadas (v. 6).

O profeta não recua diante das dificuldades e ataques de adversários. Além de agressões físicas, sofre ações para envergonhar: “bofetões e cusparadas” (cf. Jó 30,10); tapas no rosto, eram considerados uma vergonha (cf. Jó 16,10; Mt 5,39), principalmente quando bate numa autoridade, ex. num profeta (1Rs 22,24), num juiz (Mq 4,14; Lc 18,5) ou num rei (cf. Jo 18,22) “Ofereci minhas costas para me baterem, … não desviei o rosto de bofetões e cusparadas” (v. 7). A barba era símbolo da força e honra masculina. Só escravos estavam sem barba. Existem fotos em que soldados nazistas arrancaram a barba de judeus idosos. Os evangelistas veem o cumprimento destas palavras proféticas na paixão de Cristo (cf. Mc 10,34; 15,19; Mt 26,67; 27,26-30; 27,30; Lc 22,63-64).

Não se sabe o porquê destas agressões. O profeta apanhou dos seus conterrâneos, porque não escondeu que a culpa do exílio era do povo de Israel (42,18-25; 43,22-28; 50,1; etc.)? Ou seus adversários ficaram cansados e enfurecidos por causa das suas promessas de um novo êxodo maravilhoso enquanto, na vida real, nada mudou (ainda). Maltrataram este “falso profeta” (cf. Jr 29,8ss) ou o denunciaram diante das autoridades babilônicas?

Mas o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado. A meu lado está quem me justifica; alguém me fará objeções? Vejamos. Quem é meu adversário? Aproxime-se. Sim, o Senhor Deus é meu Auxiliador; quem é que me vai condenar? (vv. 7-9a).

O profeta-servo torna se firme na sua confiança, faz seu “rosto impassível como pedra” (cf. Jr 1,18s; Ez 3,8s; Jó 28,9; cf. Lc 9,51). É para esconder a dor ou esconder sua ira? É a sua resistência aos adversários, porque ele não recorre à violência (42,2-3) nem foge dos agressores. Ele pode ter medo dos inimigos, mas aplica a si mesmo o que falou aos exilados desanimados: “Não temas” (cf. 41,10-13), e confia na sua defesa pelo Senhor. Como ele é inocente e cumpre o que Deus ordenou, o próprio Deus fará sua defesa. O profeta se declara e desafia como num tribunal (cf. 41,1-7 e o processo em Dt 25,1-3) em que os adversários acham que já ganharam. A não-resistência pode ser tomada como confissão de culpa, dando razão ao adversário.

“Mas o Senhor Deus é meu auxiliador” (vv. 7.9). Mas quem acusará, se seu advogado é o próprio Deus? (cf. a função do Espírito-paráclito em Jo 16,8-11; Mt 10,20, e a grande confiança de Paulo em Rm 8,31-34). Deus demonstrará a inocência do acusado, conseguirá sua absolvição, enquanto os adversários serão apanhados na mesma armadilha que lhe tinham preparado (cf. v. 11). “Certamente todos eles se gastarão como uma veste, a traça os devorará” (v. 9b, omitido pela liturgia de hoje; cf. 51,8).

Neste terceiro canto, o Servo de Javé se revela como indivíduo. É um profeta que expressa como recebe a palavra de Deus, quais sofrimentos lhe surgem no seu ofício e como os suporta. Está perto das confissões de Jeremias e da vocação de Ez 2, mas tem seu perfil próprio. Suas palavras aqui se relacionam a outros trechos de Deutero-Isaías (cf. 40,27-31; 41,8-13; 51,8) e não deixam dúvidas: o Servo é o próprio profeta: Deutero-Isaías. Sua solicitude pastoral para com os fracos, cansados e abatidos prefigura Jesus, que os convida como bom pastor, manso e humilde (cf. Mt 11,28; Lc 13,34; 19,9s; cf. Is também Is 40,27-31; 46,1-4; 55,1ss;); sua recusa de violência reencontra-se na ética de Jesus (Mt 5,39b). Mas o servo-profeta espera ser reconhecido, justificado no tribunal. No tempo do AT, moralidade e legalidade ainda eram uma coisa só. Ainda não havia a crença numa possível justificação após a morte. Mas os cantos do servo, na sequência de 50,4-9; 53 representam um salto na fé. O servo renuncia a vingar-se e espera que sua honra seja recuperada, que injustiça e violência não tenham a última palavra. Como, onde e quando o servo será justificado não se fala ainda. A comunidade falará depois na liturgia funeral em 52,13-55,12 (leitura de Sexta-feira Santa).

 

2ª Leitura: Tg 2,14-18

Na leitura contínua da carta de Tiago nestes domingos, apresenta-se hoje o tema subjacente à toda a carta, “a fé e as obras”. Provavelmente o autor da carta conhece a doutrina de Paulo sobre a fé e as obras, e parece reagir contra as consequências abusivas de tal doutrina.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2266) comenta: O ponto de vista de Tiago não é inconciliável com o que Paulo defende (Rm 3,20-31; Gl 2,16; 3,2.5.11s; Fl 3,9). O que Paulo rejeita é o valor das obras humanas que visam a merecer a salvação sem a fé em Cristo. Essa confiança no esforço do homem para tornar-se justo ignora o fato de que ele é essencialmente pecador (Rm 1,18-3,20; Gl 3,22) e torna vã a fé em Cristo (Gl 2,21; cf. Rm 1,16). Mas também Paulo admite que, recebida a justificação pela graça somente, a fé deve ser ativa pela caridade (1Cor 13,2; Gl 5,6; cf. 1Ts 1,3; 2Ts 1,11; Fm 6) e cumprir, afinal, verdadeiramente a lei (Rm 8,4), que é a lei de Cristo e do Espírito (Gl 6,2; Rm 8,2), a lei do amor (Rm 13,8-10; Gl 5,14). Todo homem será julgado segundo as suas obras (Rm 2,6). O pensamento de Tg, inclusive sobre a história de Abraão (vv. 23-23), está, entretanto, mais perto do judaísmo do que o de Paulo.

Meus irmãos, que adianta alguém dizer que tem fé, quando não a põe em prática? A fé seria então capaz de salvá-lo? (v. 14).

As considerações precedentes serão esclarecidas pela exposição de um princípio; o de que o ouvinte da palavra deve praticá-la (1,22-25; cf. 4,11). Paulo sempre se refere às “obras da lei” mosaica ou judaica, não às obras simplesmente; não admite que tais obras sejam condição para a salvação e menos ainda que estabeleçam um direito a ela. Tiago, por sua vez, pensa em obras que um cristão realiza já no seu contexto da sua fé. A chave está na distinção: as obras (da lei judaica) como meio para assegurar para si a justiça perante Deus, ou as obras (de homens livres) como consequência da fé.

Imaginai que um irmão ou uma irmã não têm o que vestir e que lhes falta a comida de cada dia; se então alguém de vós lhes disser: “Ide em paz, aquecei-vos”, e: “Comei à vontade”, sem lhes dar o necessário para o corpo, que adiantará isso? (vv. 15-16).

Dando exemplo concreto, o autor se refere mais uma vez aos pobres, como no início deste capítulo (cf. vv. 1-9; e a instrução de Pr 3,27s em seu contexto). Estas obras de misericórdia são citadas em Mt 25,35s (dar de comer aos famintos, vestir os nus).

Assim também a fé: se não se traduz em obras, por si só está morta (v. 17).

Tg não está contrapondo fé e obras, mas fé viva e fé morta (sem acompanhado por atos). Lit.: “está morta em si mesma”, pode-se traduzir também: “completamente”, incapaz de salvar para vida eterna.

Em compensação, alguém poderá dizer: “Tu tens a fé e eu tenho a prática!” Tu, mostra-me a tua fé sem as obras, que eu te mostrarei a minha fé pelas obras! (v. 18).

“Alguém poderá dizer” ao interlocutor dos vv. 14 e 16, que Tiago passa a refutar (cf. Gl 5,6) e cujo argumento talvez se estenda talvez até v. 20, intimando o autor a provar que ele, homem das obras, também tem realmente a fé.

A Bíblia Tradução Ecumênica (TEB, p. 2371) comenta: A ênfase posta num agir do crente revela mais uma vez um ambiente judeu-cristão, semelhante ao de Mt (5,16.20; 7,12—27; 12,50; 18,23-35; 25,31-46)… Trata-se de um ponto de vista que parece bem posterior à problemática paulina. Contra o judaísmo que tendia diluir a fé entre as obras, Paulo – às voltas com os judaizantes – reivindica o primado da fé, distinguindo-a de seus frutos ou de suas obras. Tg coordena fé e obras da fé, integrando a contribuição da crítica de Paulo, e, provavelmente reagindo contra uma interpretação extremista de Paulo.

A Bíblia Sagrada Edição Pastoral (p. 1492) resume: O único meio de salvação é a fé, a adesão a Jesus Cristo. Essa fé, porém, não é coisa teórica ou mero sentimento interior; é o compromisso que se manifesta concretamente em atos e fatos visíveis (cf. Mt 7,21) … Ao falar de prática da Lei, Paulo afirma que nenhuma observância de regras pode levar à salvação, e que a fé é o princípio de toda a vida cristã. Tiago, por sua vez, salienta que a fé se traduz no amor, e este realiza atos concretos. Paulo diz a mesma coisa: “a fé age por meio do amor” (Gl 5,6).

Em 1517, nasceu o protestantismo, quando o monge Martim Lutero iniciou seu protesto contra certos abusos na Igreja Católica. De fato, valorizava-se muito os santos, as relíquias, as imagens e as obras (sacramentos, coletas, dízimo, indulgências para financiar a construção da basílica de S. Pedro em Roma) em detrimento da pregação da palavra de Deus e sua aceitação (fé). Lutero era professor do NT e criticou a Igreja com as palavras de Paulo em Rm e Gl: “O homem não se justifica pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo” (Gl 2,16; cf. Rm 3,20-31; Gl 2,16; 3,2.5.11s; Fl 3,9).

Paulo criticava os fariseus que achavam que a salvação viria unicamente pelo cumprimento (obras) da Lei judaica (circuncisão, sábado etc.). Mas Paulo não descartou a prática (obra) da caridade como cumprimento da lei (Rm 13,8-10; Gl 5,6.14; cf. 1Cor 13). Lutero entendeu por obras a tradição (leis, sacramentos, devoções etc.) da Igreja Católica e queria voltar às origens (só a Bíblia e a fé, sem tradição e sem “obras”), por isso as igrejas protestantes se chamam “evangélicas”.

Lutero aceitou só a Bíblia Hebraica (Sagrada Escritura do judeus) como AT, deixando fora os sete livros de escrita grega (Tb, Jdt, 1-2Mc, Sb, Eclo, Br). Não gostou da carta de Tg, porque valoriza demais as obras, mas não podia deixá-la fora, porque faz parte do NT desde o início do cânone (séc. II e III).

Em 1999, a Igreja Católica junto com a Igreja Evangélica Luterana publicou um “Documento de Consenso” sobre a justificação (que era o pivô da separação há 500 anos). Conciliando os pontos de vista de Paulo e Tiago, este documento afirma o primado da fé, mas assegura que fé autêntica deve produz obras de caridade.

 

Evangelho: Mc 8,27-35

Chegamos a uma parte chave de Mc, por isso há de lembrar que é o evangelho mais antigo e ao mesmo tempo o mais curto com apenas 16 capítulos. Não apresenta a infância de Jesus nem as aparições do ressuscitado (apenas o túmulo vazio; 16,9-20 é um anexo posterior). Mc começa com o batismo de Jesus que revela (somente ao próprio Jesus) quem ele é: o Filho de Deus (1,10-11). Isto é a meta do Ev: mostrar que Jesus é o “Cristo, Filho de Deus” (1,1), mas é em que sentido?

Na primeira metade do Ev, Jesus demonstra seu poder, cura e atua milagres na Galileia até ser aclamado de “Cristo-Messias” por Simão Pedro (8,29). Mas a partir daí Jesus começa anunciar sua paixão e morte em Jerusalém (8,31; 9, 31, 10,33). O segredo do messias e a incompreensão dos próprios discípulos são características do Ev de Mc.

Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de Cesareia de Filipe (v. 27).

Antes de ir ao sul para cumprir sua missão Jerusalém, Jesus e os discípulos encontram-se no ponto mais setentrional da sua trajetória, em Cesareia de Filipe, que era uma cidade construída junto às nascentes do Jordão, em 2 ou 3 a.C., por Herodes Filipe em honra de César Augusto.

No caminho perguntou aos discípulos: “Quem dizem os homens que eu sou?” Eles responderam: “Alguns dizem que tu és João Batista; outros que és Elias; outros, ainda, que és um dos profetas” (v. 28).

A pergunta de Jesus força os discípulos a fazer uma revisão de tudo o que ele realizou no meio de povo. Esse povo não entendeu quem é Jesus.

O título “profeta”, que Jesus não reivindicou senão de maneira indireta e velada (6,4p; Lc 13,33), mas as multidões lhe deram sem hesitar (v. 28p; cf. 6,15p; Mt 21,11.46; Lc 7,16. 39; 24,19; Jo 4,19; 9,17), tinha valor messiânico, pois o espírito de profecia, extinto desde Malaquias (último livro profético do AT), devia reaparecer, segundo a opinião dominante entre os judeus, como sinal da era messiânica, seja na pessoa de Elias (9,12-13; Mt 17,10p), seja sob a forma de uma efusão geral do Espírito (At 2,17-21.33, citando Jl 3,1-5). De fato, no tempo de Jesus sugiram muitos (falsos) profetas (13,6p; Mt 24,11.24p; etc.). Quanto a João Batista, esse foi realmente profeta (Mt 11,9p; 14,5; 21,26p; Lc 1,76), mas como precursor vindo com o espírito de Elias (Mt 11,10p.14; 17,12p); ele negou (Jo 1,21) ser “o profeta”, que Moisés tinha predito (Dt 18,15.18). Este profeta, a fé cristã só reconheceu na pessoa de Jesus (At 3,22-26; Jo 6,14; 7,40). Contudo, por ter-se disseminado na Igreja primitiva o carisma da profecia, após o Pentecostes (At 11,27), este título deixou, bem cedo, de ser aplicado a Jesus, cedendo o lugar a títulos mais específicos da cristologia.

Então ele perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “Tu és o Messias” (v. 29).

Os discípulos, porém, que acompanham e veem tudo que Jesus tem feito, reconhecem agora, através de Pedro, que Jesus é o Messias.

“Cristo” não é um nome, é título, tradução grega da palavra hebraica “Messias” (já é a pronúncia grega do aramaico mashiah) e quer dizer, “ungido”, consagrado por uma unção (crisma – o óleo; cristo – o ungido). Quem foi ungido no AT (Antigo Testamento)? Reis, sacerdotes e raramente profetas (1Rs 19,15-16; Is 61,1; cf. Lc 4,18). Quanto aos membros do sacerdócio, não parece que unção lhes tenha sido conferida antes da época persa. Os textos sacerdotais antigos a reservavam ao sumo sacerdote (Ex 29,7.29; Lv 4,3.5.16; 8,12). Depois foi estendida a todos os sacerdotes (Ex 28, 41; 30,30; 40,15; Lv 7,36; 10,7; Nm 3,3).

Nos textos históricos antigos, a unção é reservada ao rei (1Sm 10,1s; 16,1-13; 1Rs 1,39; 2Rs 9,6; 11,12). Esta unção confere ao rei um caráter sagrado: ele é o Ungido de Javé (1Sm 24,7; 26,9.11.23; 2Sm 1,14.16; 19,22),. Aplicado muitas vezes pelos Salmos a Davi e à sua dinastia, este título tornou-se o título por excelência do Rei do futuro, o Messias, do qual Davi era o protótipo, e o NT (Novo Testamento) o atribui a Cristo Jesus.

Na Bíblia, a esperança do messias iniciou-se 1000 anos antes de Jesus. Em 2Sm 7,12-16 Deus prometeu a Davi que sua dinastia e seu trono permaneceria para sempre. O oráculo ultrapassa o sucessor de Davi, Salomão, e deixa entrever um descendente privilegiado em que Deus se comprazerá. É o primeiro elo das profecias sobre o messias, filho de Davi (Is 7,14; 9,5-6; 11,1-5; 42,1; Jr 23,5-6; Mq 4,14; Ag 2,23). Mas a maioria dos sucessores no trono de Davi não seguiu os caminhos de Deus, e o resultado disso foi o exílio (cf. 1-2Rs). Depois do exílio não houve mais reis da descendência de Davi em Israel. O rei Herodes não era nem judeu (era idumeu, de um povo vizinho ao sul da Judéia), mas instituído por imposição de César Augusto. No povo, porém, a esperança de um messias salvador que libertasse Israel dos seus opressores como fez Davi, se mantinha viva (existe até hoje entre os judeus).

Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a seu respeito (v. 30).

Messias ou Cristo é designação judaica do salvador esperado. Mc compreende esse título no sentido novo que lhe confere sua aplicação a Jesus (9,41; 12,35-37). Em Mc, só um homem reconhece Jesus como Messias: Pedro, mas logo é intimado ao silêncio (8,29-30; em Mt 16,17-19 é instituído “Papa” primeiro). Jesus só aprova esse título Messias/Cristo durante seu processo (14,61-62).

Estas imposições de silêncio são particularmente frequentes em Mc (cf. 1,34; 9,9; a respeito dos milagres, cf. também 1,45; 5,43; 7,36s.). Muitas vezes tal imposição não é respeitada, como se a irradiação do poder do Filho de Deus não pudesse ser contida. Aos demônios (1,25. 43; 3,12), aos curados (1,44; 5,43; 7,36; 8,26) e mesmo aos apóstolos (8,30; 9,9), Jesus impõe, sobre sua identidade messiânica, uma recomendação de silêncio que só depois de sua morte será suspensa (Mc 9,9p; Mt 10,27p).

Como vulgarmente se fazia do Messias uma ideia nacionalista e guerreira, muito diferente daquela que Jesus queria encarnar, ele precisava usar de muita prudência, pelo menos nas terras de Israel (cf. 5,19), a fim de evitar infelizes mal-entendidos sobre sua missão (cf. Jo 6,15; Mc 4,10-13p). Essa recomendação do “segredo messiânico” pode corresponder a uma atitude histórica de Jesus, tema sobre o qual, de fato, Mc tinha gosto em insistir. Essa recomendação ocorre em Mt e Lc só nas passagens paralelas a Mc (exceção Mt 9,30) e com frequência, chegam mesmo a omiti-la.

A reação de Jesus não implica, segundo Mc, nenhuma desaprovação quanto ao título de Cristo, que ele vai aceitar em 14,62. Este título fica incluído na norma do silencio, tanto quando ao Filho de Deus e as demais expressões da fé da Igreja (cf. 1,34; 1,44) prematuras, segundo Mc, antes que a missão de Jesus se conclua pela morte e ressurreição (cf. 4,22; 9,9). Para compreender as insistências de Mc no segredo de Jesus, é preciso levar em conta não só as ambiguidades dos títulos messiânicos judaicos, insuficientes para definir a missão de Jesus, como também os progressos da fé da Igreja primitiva e o empenho de Mc em reler a vida terrestre de Jesus à luz da revelação da Páscoa.

Em seguida, começou a ensiná-los, dizendo que o Filho do Homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias (v. 31).

Doravante o ensinamento de Jesus versa sobre o modo pelo qual deve cumprir sua missão (vv. 31-33; 9,30-32; 10,32-34). Tal ensinamento, reservado aos discípulos (cf. 4,10s), empresta unidade a esta parte do livro até 10,45. Ele caracteriza uma segunda fase da revelação de Jesus, desta feita explícita (v. 32), após a das parábolas e milagres.

“O Filho do Homem deve sofrer muito”. Jesus junta a expressão apocalíptica de “Filho do Homem” (cf. Dn 7,13s) com a profecia de Is 53 sobre o “Servo de Javé”, que devia morrer para salvar seu povo dos pecados. Este texto profético de Is 53 sobre o sofrimento do ungido/messias (cf. Is 42,1; 61,1) é o quarto canto sobre o Servo de Javé e ápice de Deutero-Isaias (Is 40-55). Era usado muito no anúncio dos primeiros cristãos (citado em Mt 8,17; Lc 22,37; At 8,30-35; 1Pd 2,21-25; cf. Mt 26,28.63;27,29-31.38s.60; Jo 1,29; 19,5 etc.) para identificar a paixão de Cristo (cf. Sl 22).

“… ser rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e escribas” Trata-se dos membros do Grande Sinédrio, colégio de 71 membros, que governava o povo judeu. Ele constava dos representantes da aristocracia leiga (os anciãos), das grandes famílias sacerdotais (os sumos sacerdotes), entre os quais se elegia o Sumo Sacerdote, e dos escribas ou intérpretes da lei (na maioria com tendência farisaica). O Sinédrio era presidido pelo Sumo Sacerdote em exercício (Caifás). Aqui, Mc não diz aqui de que maneira Jesus será morto, mas nos versículos seguintes já deixa claro que a pena de morte será a crucificação (v. 34).

“Três dias depois ressuscitar” pode significar “no terceiro dia”, contando sexta-feira, sábado e domingo (o Tríduo Pascal da liturgia começa na Quinta-feira Santa e termina no Domingo da Páscoa). O terceiro dia é tradicionalmente o dia da salvação (Os 6,2; Jn 2,1; Mt 12,40; cf. Ex 19,11.16).

Ele dizia isso abertamente. Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo. Jesus voltou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: “Vai para longe de mim, Satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens” (vv. 32-33).

A reação de Pedro (cf. 2Sm 20,20; 23,17; 1Cr 11,19) ilustra bem a dificuldade de associar o título de Cristo às perspectivas da paixão e da morte. Talvez isto esclareça a preterição, em Mc, desse título (além de “Santo” e “Filho de Deus”) até a paixão (só o centurião reconhecerá que o crucificado “era Filho de Deus” (15,39; cf. 1Cor 1,22-24). Opondo-se ao padecimento de Jesus, Pedro endossa o papel de “Satanás” (cf. Jó 1-2), que tenta desviar Jesus da obediência a Deus. Pedro acabou de abandonar a sua posição de discípulo que deve seguir, ou seja, caminhar atrás de Jesus (cf. 1,17,20; 8,34).

Chamou Jesus a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga (v. 34).

Em Mc, cada anúncio da Paixão é seguido primeiro por uma falta de compreensão por parte dos discípulos, e em seguida por palavras de Jesus, que tira as consequências para seus discípulos (8,32-38; 9,32-41; 10,35-45; cf. Lc 9,23 “para todos”): “renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz e seguir” (v. 34).

Depois de falar aos discípulos, Jesus fala a multidão. Pedro entendeu quem era Jesus (o messias), mas não estava disposto de viver este entendimento (vv. 22-33). Só entenderá Jesus, quem o seguir no sofrimento. Aqui aparece pela primeira vez a “cruz” no evangelho. Jesus deixa claro, que o destino do seu caminho é a cruz (em v. 31 só falou de rejeição e morte).  Só criminosos subversivos e escravos eram condenados à morte de cruz. Quem quiser seguir a Jesus, esteja disposto a se tornar marginalizado por uma sociedade injusta (perder a vida) e mais, a sofrer o mesmo destino de Jesus: morrer como subversivo (tomar a cruz).

Ao falar de “renunciar a si mesmo”, Mc não pensa num ideal de ascese ou masoquismo que se opõe à ideia de que felicidade é ser livre do sofrimento, mas significa seguir Jesus e orientar-se nele em vez dos próprios interesses, seguir ao ponto de custar a vida no martírio. “Renunciar” quer “dizer não, negar”, está ligado à profissão da fé (no batismo) ou negar Jesus como depois Pedro em Mc 14,66-72p. Renunciar a si mesmo não significa suicídio, porque neste a própria vontade ainda se sobrepõe à vontade de Deus.

Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la (v. 35).

Atrás disso está a experiência que se pode ganhar o mundo, mas perder a si mesmo (cf. v. 36). Pode se ganhar rios de dinheiro, mas morrer de repente (cf. a parábola em Lc 12,16-21 e Eclo 11,18s; Jó 2,4; Sl 49,8s). Pode-se perder a chance de ganhar a vida eterna, não renunciando a seus bens materiais (cf. 10,17-25).

Quem vive buscando bens e riquezas, nunca ficará satisfeito. Quem se doa aos outros, esquece de si mesmo e sente uma grande felicidade. A cruz, então, não é só um sacrifício. É o único modo para não perder a própria vida, não dissipá-la em coisas superficiais que não conduzem à felicidade. Diferente da sabedoria grega, não é a “vida” (em grego: zoé) na terra o bem maior, mas a “vida” transcendente (Mc usa a palavra grega psyqué) que depende do juízo final.

O site da CNBB comenta:

A resposta que damos à pergunta que Jesus faz aos discípulos e a cada um de nós no Evangelho de hoje mostra principalmente o significado que ele tem em nossas vidas e exige coerência no relacionamento que nós temos com ele. Para Pedro, Jesus é o Messias, o enviado de Deus, o Ungido, o Salvador, mas Pedro é incoerente no relacionamento, pois não quer submeter-se a ele e aceitar os caminhos da salvação. Assim também acontece conosco: dizemos que Jesus é amor, mas não amamos; que é Deus, mas não o servimos; que é o enviado do Pai, mas não o ouvimos; que é nosso irmão, mas não criamos fraternidade.

O Evangelho de hoje nos mostra um significado fundamental para entendermos o mistério da cruz. Jesus diz: “renuncie a si mesmo e tome a sua cruz”. A cruz significa antes de tudo não ser mais nada para si e ser tudo para os outros. De fato, Jesus no alto da cruz já não tinha nada que fosse seu, a não ser a sua própria vida, e até ela nos é dada conforme ele mesmo nos diz: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou livremente”. Mas esse fato é o coroamento de toda a vida de Jesus que não se apegou ciosamente à sua condição divina, mas se fez homem, obediente até a morte e morte de cruz, vivendo totalmente para servir ao seu Pai e aos seus irmãos e irmãs, numa total oblação.

 

 

 

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