17 de agosto de 2018, Sexta-feira: Por isso, eu vos digo: quem despedir a sua mulher – a não ser em caso de união ilegítima – e se casar com outra, comete adultério”

Leitura: Ez 16,1-15.60.63

Na leitura de hoje, Ezequiel apresenta uma alegoria (pensamento figurativo numa sucessão de metáforas) denunciando a infidelidade do povo à aliança com Javé, seu Deus.

Esta alegoria narra toda a história de Jerusalém como esposa infiel de Javé (cf. Os 2,4-25; Is 1,21; Jr 2,2). Jerusalém, desposada (v. 8; cf. Rt 3,9) e elevada à realeza por Javé Deus (vv. 9-14), se alia às nações, comete adultério, servindo a outras divindades; por isso será castigada com a pena de morte para adúlteras (vv. 15-43; cf. Lv 20,10; Dt 22,22-24; Dn 13; Jo 8,4s). A linguagem, que descreve a infidelidade de Jerusalém a Javé, mostra o olhar masculino sobre as mulheres prostituídas.   

A Bíblia do Peregrino (p. 2040) introduz: Neste capítulo, Ezequiel desenvolve, em imagem matrimonial, amplo quadro histórico de Jerusalém. Pelo que sabemos, Oséias, Isaías e Jeremias o precederam. Oséias 1-2 começa em plena situação conjugal; Jeremias 2-3 remonta ao noivado, com sabor melancólico; Ezequiel remonta ao nascimento, ligando a imagem ao tema popular do bebê enjeitado. Se Jeremias vai concatenando imagens originais e expressivas, Ezequiel se detém em detalhes realistas, até brutais. Oséias compõe um poema concentrado e bem articulado; Jeremias abre o flanco a amplificações; Ezequiel constrói uma alegoria de correspondências intelectuais.

A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: ”Filho do homem, mostra a Jerusalém suas abominações (vv. 1-2).

Ezequiel recebe o encargo de fiscal, como Is 58. A Bíblia do Peregrino (p. 2040) comenta: O delito cresce na boca do fiscal: pelos antecedentes, pela teimosia, por outros agravantes. A pena invoca a lei e acrescenta detalhes que agravarão a infâmia. Porque o ofendido fala e questiona, a sentença não assume tom objetivo e contido, mas soa intensamente pessoal, a paixão poética de Ezequiel encarna a reação pessoal de Deus, o mistério revelado do seu amor.

Dirás: Assim fala o Senhor Deus a Jerusalém: Por tua origem e nascimento és do país de Canaã. Teu pai era um amorreu e tua mãe uma hitita (v. 3).

Jerusalém era cidade cananeia, possessão dos jebuseus, antes de ser conquistada por David (Js 10,1-5; Jz 1,21; 2Sm 5,6-10). Na versão bíblica, os cananeus eram gente mal afamada por suas práticas cultuais e imorais (Lv 18,3.24-30; Gn 9,25 Canaã no lugar de Cam). “Amorreu” significa ocidental; designa grupos semitas da região (Nm 21,13; Js 10,5); o povo indo-germânico dos “hititas” formava grupos de população estabelecidos em Canaã no tempo dos patriarcas (Gn 23; 25,9s; 26,34; 27,46) e se misturou com os semitas (cf. 2Sm 11,3). Para Israel, o termo hitita designa sem mais a população cananeia (cf. Gn 15,20; Ex 3,7.8; Dt 7,1 etc.).

Dita de Jerusalém, a genealogia não é inverossímil; dita de Israel, não é real. É, antes, um julgamento religioso global: sua origem é pagã e até ilegítima. A cidade conservará sempre, no dizer de Ez, algo dessa origem pagã necessariamente iníqua.

E como foi o teu nascimento? Quando nasceste, não te cortaram o cordão umbilical, não foste banhada em água, nem esfregada com salmoura nem envolvida em faixas. Ninguém teve dó de ti, nem te prestou algum desses serviços por compaixão. Ao contrário, no dia em que nasceste, eles te deixaram exposta em campo aberto, porque desprezavam a tua vida. Então, eu passei junto de ti e vi que te debatias no próprio sangue. E enquanto estavas em teu sangue, eu te disse: “Vive!” (vv. 4-6).

Oseias também remontou à infância do povo de Israel (Os 11: Efraim). O fato de expor ou abandonar crianças, sobretudo meninas, não era tão raro na antiguidade: restava na cidade a esperança de que alguém as adotasse, no campo ficavam expostas à feras. Humanamente, a criatura estava abandonada, nascida para morrer; “nem esfregada com salmoura” (o sal fortifica, diz-se, o recém-nascido) e “exposta em campo aberto” onde o Senhor Javé atravessa a solidão, e sua passagem é salvadora (Dt 32,10; Jr 31,2; Os 9,10). Pronuncia uma palavra, “vive!”, quase criadora, como benção eficaz: a criatura deverá a vida a esse imperativo de Deus. A criança permanece manchada de sangue e cresce como um selvagem, até a aliança do Sinai, descrita sob a figura de um casamento (vv. 8s).

Eu te fiz crescer exuberante como planta silvestre. Tu cresceste e te desenvolveste, e chegaste à puberdade. Teus seios se firmaram e os pelos cresceram; mas estavas inteiramente nua. Passando junto de ti, percebi que tinhas chegado à idade do amor. Estendi meu manto sobre ti para cobrir tua nudez. Fiz um juramento, estabelecendo uma aliança contigo – oráculo do Senhor – e tu foste minha (vv. 7-8).

No início, a cidade, como centro urbano cananeu vegetava, comparável a tantas outras cidades de Canaã. A menina não tem uma vida cultivada, apenas vegetativa, “como planta silvestre”. Mas o Senhor conhece o lugar: passa de novo e a reconhece. Cobre-a. “Estendi meu manto” (lit. minha asa; cf. Dt 32,11); é o gesto que Rut pede (Rt 3,9). Com sua pura iniciativa a toma como noiva, como “esposa de aliança” (cf. Pr 2,17; Ml 2,14), com “juramento”.

Este conto poético de uma menina abandonada desde o nascimento, encontrada por um transeunte generoso que a adota e um dia fez dela sua esposa, devia parecer menos inverossímil aos ouvintes de Ez do que a nós, p. ex., o casamento muito precoce das jovens.

Banhei-te na água, limpei-te do sangue e ungi-te com perfume. Eu te revesti de roupas bordadas, calcei-te com sandálias de fino couro, cingi-te de linho e te cobri de seda (vv. 9-10).

São tarefas da família da noiva, que o noivo desempenha aqui com tecidos e matérias próprios de um rei ou do templo (Ex 26-29; Sl 45). A escolha do rei Davi fez do povoado jebuseu a capital de Israel e cidade do Senhor; ali estabeleceu seu palácio real e o santuário.

Eu te enfeitei de joias, coloquei braceletes em teus braços e um colar no pescoço. Eu te pus um anel no nariz, brincos nas orelhas e uma coroa magnífica na cabeça. Estavas enfeitada de ouro e prata, tuas vestimentas eram de linho finíssimo, de seda e de bordados. Eu te nutria com flor de farinha, mel e óleo. Ficaste cada vez mais bela e chegaste à realeza (vv. 11-13).

Depois de Davi, com Salomão, vem a época gloriosa e próspera de Jerusalém. Presentes de casamento enfeitam a noiva na cerimônia (Gn 24.22.29.47; Ct 3,11; 4,4; cf. Is 3,18-23). A referência aos alimentos parece interromper o curso da descrição, a não ser que se atribua a esses alimentos o poder de embelezar as formas (cf. Sl 104,15); também pode estar sob influxo de Os 2,10.

Tua fama se espalhou entre as nações por causa de tua beleza perfeita, devido ao esplendor com que te cobri – oráculo do Senhor (v. 14).

É um versículo de resumo e transição, lembrando que a beleza da esposa permanece dom de Deus.

Mas puseste tua confiança na beleza e te prostituiste graças à tua fama. E sem pudor te oferecias a qualquer passante (v. 15).

Em v. 15 muda o sujeito, descreve-se a correspondência dela (cf. Dt 32,15). A confiança em si mesma é começo de pecado (cf. 33,13; Is 30,12; 47,10; Jr 13,25; 17,5; Sl 49,7; 62,11 etc.). A atitude da esposa é inversa à que os salmistas descrevem (cf. Sl 13,6; 25,2; 26,1; 37,3-5 etc.).

Is 1,21 supõe uma primeira época de fidelidade; Jeremias coloca a fidelidade no deserto; Ezequiel salta violentamente das núpcias à infidelidade. Já na época de Salomão, começa a manter relações com seus vizinhos: os egípcios, desde a época salomônica, mais tarde os assírios, babilônios etc.. Com estes povos, Jerusalém, a cidade do Senhor, busca alianças que são outros tantos atos de infidelidade; são adultérios ou gestos de prostituição, como se costuma dizer a partir de Os.

A “prostituição” pode significar a infidelidade, correlativa da imagem conjugal, ou referir-se à prostituição sagrada, pode designar a idolatria como infidelidade ao Deus único e ciumento. É expressão frequente na literatura profética e muito frequente em Ezequiel.

Por motivos de brevidade, nossa liturgia reduziu bastante este capítulo, omitindo detalhes desta prostituição e do castigo. Os vv. 1-43 estão articulados segundo o esquema clássico de delito e castigo (com uma divisão depois de v. 34). Os vv. 45-58 saltam para o tema das duas irmãs (os dois reinos Israel e Judá), próprio do cap. 23. Os vv. 59-63 anunciam a reconciliação. Nossa liturgia apresenta apenas os vv. 1-15, omite o castigo e vai logo à reconciliação (vv. 60.63).

Eu, porém, me lembrarei de minha aliança contigo, quando ainda eras jovem, e vou estabelecer contigo uma aliança eterna. É para que te recordes e te envergonhes, e na tua confusão não abras mais a boca, quando eu te houver perdoado tudo o que fizeste, – oráculo do Senhor Deus” (vv. 60.63).

Depois desta alegoria trágica, alguém (Ezequiel depois de 586, ou um discípulo no pós-exílio) acrescentou uma última palavra de consolo e esperança. Não para anular o que precede, mas para colocá-lo num horizonte mais largo. Hoje temos de ler essas linhas unidas às precedentes, para que tenham sentido; mas temos de ler o que precede desembocando neste final. Vários elementos asseguram a união de ambas as peças.

O tema é uma “nova aliança”, uma renovação da antiga que se torna “aliança eterna” (cf. 37,26; Jr 31,3.31-34; Is 55,3; 59,21; 61,8; Hb 13,20). A alegoria termina, como em Oséias, pelo perdão gratuito do esposo que firma uma nova aliança. Assim se anunciam as núpcias messiânicas, cuja imagem será retomada pelo NT.

Jerusalém foi infiel, por isso justamente castigada. Mas o Senhor é fiel a si mesmo (cf. 2Tm 2,13), a seu compromisso, e torna a receber a sua esposa infiel (Os 2,16-25). Só que ela não pode voltar com a atitude de antes. Ao ver a própria culpa e suas consequências, se ela se sente “envergonhada” (lit. seu rubor se intensifica) e fracassada ao receber o perdão imerecido, e não vai “abrir mais a boca”. Abrir a boca é sinal de insolência ou de animosidade (Sl 35,21; Lm 2,16; 3,46); pelo contrário, ficar calado (Is 52,15; Jó 5,16; Sl 107,42) ou pôr a mão na boca (Jó 21,5; 40,4) mostra atenção respeitosa ou a convicção de estar enganado (pela sedução de Eva, o silêncio convém as mulheres piedosas em 1Tm 1,11s, mas Paulo admitiu a fala profética delas nas assembleias em 1Cor 11,5s).

O terrível pecado exalta assim a incrível misericórdia. Já não poderá alegar mérito, nem confiar na própria beleza (cf. a graça e o perdão em Rm 5,20; Lc 15,11-32; Jo 8,1-11). A memória humilde de Jerusalém responderá à maneira compassiva (60) do Senhor.

 

Evangelho: Mt 19,3-12

No capítulo 19, o evangelista Mt voltou a copiar da sua fonte Mc (Mc 10), apresentando palavras de Jesus sobre família (casamento), crianças e propriedade (cf. Mc 10,1-31). No evangelho de hoje, falando da indissolubilidade do matrimônio (também no sermão da montanha, 5,31-32), Mt acrescentou dois detalhes importantes, a cláusula do divórcio em caso de fornicação (v. 9) e a opção pelo celibato (v. 12).

Jesus já está no caminho a Jerusalém e passa por Transjordânia (19,1). “Numerosas multidões o seguiram, e Jesus aí as curou” (v. 2). Em vez de ensinamentos no início (Mc 10,1), Mt apresenta curas, porque Jesus não só ensina, mas pratica a misericórdia. Este detalhe pode ajudar na interpretação e pastoral desta questão, porque, antes de tudo, é a misericórdia e a compaixão que deve valer também para pessoas casadas, solteiras, viúvas, divorciadas, homossexuais e celibatárias.

Alguns fariseus aproximaram-se de Jesus, e perguntaram, para o tentar: “É permitido ao homem despedir sua esposa por qualquer motivo?” (v. 3).

O divórcio já era bastante discutido no judaísmo, já que na Lei está escrito: ”Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente, escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair de casa em liberdade“ (Dt 24,1).

Poderia se discutir somente o aspecto jurídico: “por qualquer motivo”, ou seja, o que seria “coisa inconveniente”. Nas escolas dos fariseus havia duas opiniões: o rigoroso Shammai admitia divórcio só em caso de adultério, o liberal Hillel por motivos mais fúteis (ex. não cozinhar bem). O profeta Malaquias reclamou da prática do divórcio (Ml 2,13-14.16). Mas não se podia negar que havia o direito de se divorciar, ao não ser que alguém quisesse invalidar a Lei. Por isso, a pergunta dos fariseus é “tentadora”. Se Jesus negasse o direito do divórcio, estaria contra a Lei de Moisés.

Jesus respondeu: “Nunca lestes que o Criador, desde o início os fez homem e mulher? E disse: “Por isso, o homem deixará pai e mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne”? (vv. 4-5).

Mt reestruturou o diálogo de Mc: Jesus cita logo dos dois primeiros capítulos de Gênesis (Gn 1,27; 2,24). Em vez de entrar no detalhe legalista, Jesus apresenta primeiro a vontade primordial do Pai, como base da lei (a “Lei de Moisés” são os cinco primeiros livros, Gn inclusive). A primeira frase de Gn 1,27 refere-se ao primeiro casal: Deus criou um Adão e uma Eva (não quatro mulheres para Adão; a poligamia é permitida em outras culturas, ex. no Islã, um homem pode se casar com até quatro mulheres).

Olhando para o conjunto do AT (Antigo Testamento) vemos a mulher como auxiliar dado por Deus ao homem (Gn 2,18; cf. Pr 18,24; 19,14; Eclo 36,29-31), mas também o homem deve auxiliar e cuidar da sua esposa (cf. Ex 21,7-11; Dt 20,7; 24,5; 1Sm 1,8), ele é responsável pela mulher (mesmo sem união legítima, cf. Ex 22,15; Dt 22,8-9.13-21.29; 21,10-14).

De modo que eles já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe” (v. 6).

Depois de citar a Bíblia, Jesus tira sua conclusão. Subentende-se que foi Deus que uniu o casal criando a afeição e atração de ambos que se confirma numa celebração religiosa do matrimônio. Outras religiões ou filosofias explicavam a atração sexual através de um único ser humano, macho e fêmeo ao mesmo tempo, que foi dividido em duas partes e por isso o macho e a fêmea se atraem e querem se unir de novo. Na Bíblia, é Deus que criou, desde o início, homem e mulher e, como Jesus salienta, quer sua união permanente. Aliás, não apenas o homem é imagem de Deus, mas a mulher igualmente, ou melhor, a comunhão dos dois (cf. Gn 1,26s).

Os fariseus perguntaram: “Então, como é que Moisés mandou dar certidão de divórcio e despedir a mulher?” Jesus respondeu: “Moisés permitiu despedir a mulher, por causa da dureza do vosso coração. Mas não foi assim desde o início (vv. 7-8).

Os fariseus insistem na sua pergunta reforçando-a com a menção da certidão de divórcio de Dt 24,1. Jesus não nega a lei do divórcio (que era uma proteção para a mulher demitida não ser considerada fugitiva), mas afirma que a lei do divórcio era concessão “por causa da dureza do coração” do homem, não é expressão da vontade divina. Dureza do coração (cf. Dt 10,16; Jr 4,4; Ez 3,7; Eclo 16,10) no AT significa desobediência por causa do coração insensível aos preceitos divinos. Moisés concedeu o divórcio por causa do coração duro do homem em seu estilo de vida insensível a respeito do que Deis queria em relação à mulher.

Pelo mesmo motivo existe o divórcio no Código civil de muitos países, mas para pessoas religiosas fica evidente a vontade de Deus (que, aliás, é também a vontade dos filhos, que os esposos permaneçam unidos).

Por isso, eu vos digo: quem despedir a sua mulher – a não ser em caso de união ilegítima – e se casar com outra, comete adultério” (v. 9).

Na terceira antítese do sermão da montanha (5,31s), Jesus já deu a mesma resposta, uma norma que se entende na Igreja Católica não só como ética do coração, mas como lei canônica. A tradução da liturgia “a não ser em caso de união ilegítima” não corresponde ao original grego. A palavra grega porneia, não significa “união ilegítima” entre parentes (cf. Lv 18; At 15,20.29), mas um mau comportamento sexual que pode ser muitas coisas (a Bíblia Pastoral traduz: “fornicação”); em 5,32, que fala de mulheres casadas, designa o ato sexual fora do casamento, então adultério.

Mt copiou esta norma já de Mc 10,11. Mas em Mc, como em Lc 16,18 e 1Cor 7,10s não há exceção, por isso, considera-se a versão de Mt posterior, uma adaptação pastoral para sua comunidade. Quando alguém se casa outra vez sem ser viúvo, o divórcio se torna definitiva. Por isso estas palavras não são só um apelo ao nosso coração (à nossa consciência, ao nosso amor). Já as primeiras comunidades cristãs tiraram conclusões jurídicas. Seguramente, Jesus não fundou uma igreja já com estatutos do direito canônico, mas aqui temos uma sentença de direito em potencial.

Mc e Lc não conhecem exceções algumas. Paulo não aboliu nem atenuou a proibição de Jesus, mas toma uma decisão pastoral num dilema entre mundo (cônjuge não-cristão) e comunidade cristã (cf. 1Cor 7,12-17), chamado de “privilégio paulino”. Semelhante Mt que não questiona a regra de Jesus, mas demonstra com sua clausula – “a não ser por causa de fornicação”- uma exceção dentro desta regra.

Pode haver perdão e reconciliação depois de um adultério? (cf. Jo 8,10-11; 1Cor 7,10). Muitos judeus pensavam que em caso de adultério, o casamento já estava destruído. Fornicação era uma abominação que tornou a terra impura (cf. Lv 18,25.28; Dt 24,4: Os 4,2-3; Jr 3,1-3,9) e em caso de adultério precisava-se divorciar. Para Mt, a questão fica aberta (cf. 18,15-17.21s).

Já em Mc, a proibição de Dt 24,4 de não se casar outra vez com sua própria mulher divorciada estendeu-se a todas as mulheres divorciadas. “Quem se casa com a mulher divorciada, comete adultério” (Mc 10,11; Mt 5,32; 19,9; Lc 16,18). A consequência desastrosa para tais mulheres, Mt atenua com sua clausula: como na sua comunidade o divórcio só se concede em caso de adultério, então só é proibido casar-se com uma adúltera.

A posição católica a respeito do divórcio é conhecida. Não existe divórcio, e um segundo casamento nesta igreja só pode haver para viúvos. Mas em casos graves pode haver uma “separação de mesa, cama e residência”, porém mantendo o vínculo do matrimônio. Assim a posição católica está perto de Mt que não permite casar-se com uma adúltera. Depois se iguala a situação da mulher ao do homem. Mt (5,32; 19,9) e o AT se dirigiram verbalmente só aos homens. Se valer a mesma coisa para mulheres, então é proibido casar-se com homens adúlteros também. O divórcio judaico admitiu outros casamentos; Mt 5,32 e 19,9 com igualdade para os gêneros diz que não, o que coincide em muito com a posição católica, não em termos (divórcio permitido só em caso de adultério, mas não segundo casamento com adúlteros), mas de fato (só separação de mesa, cama e residência).

Na Igreja Ortodoxa, o divórcio possibilita um segundo casamento, mas só com penitência. O que destrói o casamento e serve de motivo para o divórcio, é o adultério (cf. 5,32; 19,9), mas pode haver outras razões. A possibilidade do segundo casamento não se vê como direito divino, mas como “concessão” por causa da fraqueza humana (cf. v. 8).

Para as igrejas protestantes, o casamento não é um sacramento, mas “coisa do mundo” (Lutero). Entendem Mt 5,32 e 19,9 como apelo ético aos corações, que se há de diferenciar do código civil. Lutero disse que o amor não precisava de leis. Isso possibilita um trabalho pastoral guiado pelo amor e não pela lei.

Mas ambas as igrejas sofrem com sua posição: Os católicos lamentam a dureza da sua doutrina e seu direito canônico que parecem contrariar o amor, o perdão e a misericórdia de Deus em casos concretos. Mas a ausência de um direito que regula o divórcio nas igrejas protestantes deixa o pastor sozinho nas suas decisões, geralmente ele escolhe o caminho de menor resistência aceitando e abençoando tudo. O amor, porém, precisa do apoio de leis para ajudá-lo a não aceitar e ocultar tudo. A posição católica está mais perto de Mt (5,32; 19,9), mas há uma certa tensão entre a norma de Mt e o centro da pregação de Jesus que é o amor incondicional de Deus aos seres humanos. Não é fácil ser justo (lei) e misericordioso (amor) ao mesmo tempo. É um dilema entre direito canônico e trabalho pastoral (ex. abençoar ou excluir da comunhão os casais de segunda união). Um pároco disse uma vez: “Melhor quebrar uma norma da Igreja do que o coração de um ser humano”. As normas, porém, devem orientar para o melhor do ser humano.

Os discípulos disseram a Jesus: “Se a situação do homem com a mulher é assim, não vale a pena casar-se.” Jesus respondeu: “Nem todos são capazes de entender isso, a não ser aqueles a quem é concedido (vv. 10-11).

Os discípulos se assustam diante da exigência de um vínculo indissolúvel (os fariseus já não intervêm). Em Mc 10,10, os discípulos precisam de um ensinamento privativo para aprofundar o assunto, e Jesus estende a mesma norma também para fora da Palestina, onde uma mulher podia se divorciar do esposo (Mc 10,11s).

Aqui em Mt, os discípulos entendem a norma, mas acham difícil cumpri-la, por isso seria melhor não se casar. Porque não é Pedro que fala em nome deles? Porque já era casado (8,16p; 1Cor 9,5)? A palavra mais difícil de entender é a seguinte (v. 12). Dado que fala de dom de Deus, parece referir-se ao regime exigente do “reino” e ao caso extraordinário dos “eunucos pelo reino”.

Com efeito, existem homens incapazes para o casamento, porque nasceram assim; outros, porque os homens assim os fizeram; outros, ainda, se fizeram incapazes disso por causa do Reino dos Céus. Quem puder entender, entenda” (v. 12).

A tradução da liturgia fala de “homens incapazes para o casamento”, atenuando a palavra “eunuco” (castrado). Jesus não retira o que disse antes, mas dá mais um passo, propondo outra situação que terá um lugar na sua comunidade: o celibato voluntariamente aceito como dom de Deus e motivado pelo reinado de Deus e sua pregação. O AT registra apenas o caso de Jeremias (Jr 16).

Um homem judeu tinha quase como obrigação casar-se e procriar. Não procriar era comparado com um derramamento de sangue, ou seja, diminuir e inibir a vida. A frase de Jesus pode ter origem numa polêmica contra ele: um rabino que não se casa parece um eunuco.

Em Israel, os eunucos eram excluídos do ofício sacerdotal (Dt 23,2; cf. Lv 22,24), mas podiam figurar como funcionários (2Rs 8,6; 9,32); ficaram em cargos importantes em cortes estrangeiras (At 8,26-40); em época posterior do judaísmo, abre-se a passagem para uma avaliação positiva (Is 56,3-5; Sb 3,14); entre os monges de Qumrã, alguns praticavam o celibato. Enquanto o apóstolo Pedro era casado, outro apóstolo, Paulo, enfatizava o caráter voluntário do celibato em 1Cor 7,7-9.25-38.

Na sua resposta, Jesus distingue três tipos de eunucos: dois são involuntários, são “incapazes” de procriar por natureza (por nascença, impotentes, homossexuais?) ou por intervenção humana (castração, trauma na educação,…), outros aceitam voluntariamente não se casar, e são motivados pelo reino (cf. 6,33). São eunucos no espírito (por vontade própria) e não no físico (por castração).

“Eunuco” não se deve entender ao pé da letra aqui e também não a recomendação de 18,8s (arrancar os membros que nos levam a pecar), como fez o teólogo Orígenes (sec. III) que se castrou de fato, mas depois descobriu que ainda continuava com pensamentos impuros na cabeça. Não podia arrancar a cabeça? Orígenes desenvolveu depois a interpretação alegórica (simbólica) da Bíblia, quer dizer, as palavras da Bíblia podem ter mais sentidos, além do literal.

O site da CNBB comenta: Quem comete adultério, peca duas vezes. O primeiro pecado é o da fornicação, do desrespeito da pessoa do outro ou da outra como templo do Espírito Santo, o que se constitui em profanação do sagrado, da propriedade divina pela consagração batismal. O segundo pecado é contra o vínculo matrimonial, é o rompimento de uma promessa que foi feita diante de Deus e da Igreja. E a causa de tão grave pecado encontra-se na dureza do próprio coração, que não é capaz de abrir-se à graça divina e aos verdadeiros valores e se torna escravo da luxúria, fazendo dela o verdadeiro deus da própria vida.

 

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