17 de janeiro de 2018 – Quarta-feira, 2ª semana

Leitura:  1Sm 17,32-33.37.40-51 

A história que ouvimos hoje, o combate de Davi e Golias, representa a vitória do fraco sobre o forte, pela confiança (fé) no Senhor Javé, Deus de Israel (v. 45). Era lida pelos reis de Judá para estimular seus exércitos na guerra (cf. 2Rs 18,19s; Is 36-37; 1Mc 3,41; 4,30). Possivelmente havia na base uma história popular que foi apropriada pelos reis de Judá e atribuída a seu ancestral Davi.

Este cap. 17 apresenta suas dificuldades. O relato desconhece tudo o que precede: apesar de 16,14-23 onde Davi entra na corte como músico, Saul ainda não conhece Davi (sobretudo nas vv. 12-31 que faltam na antiga versão grega da Setenta). Outra dificuldade é, conforme 2Sm 21,19, era Elcanã de Belém, um dos valentes de Davi, que matou o filisteu Golias de Gat, e essa tradição parece ser a mais antiga.

A tradição primitiva do cap. 17 só falava de uma vitória de Davi sobre um adversário anônimo, “o filisteu” (29 vezes no cap.). Poder-se-ia pensar numa vitória de Davi sobre um soldado filisteu que a tradição confundiu com outro. O nome de Golias foi acrescentado aos vv. 4 e 23 (não aparece na parte escolhida pela liturgia de hoje). Por outro lado, a vitória sobre Golias se supõe em 19,5; 21,10; 22,10.13.

Apesar das dificuldades, o autor do livro tinha razão ao conservar este capítulo: é uma narrativa clássica. Clássica porque se incorporou à tradição ocidental como uma das páginas favoritas do AT. E, se quisermos, também por seu indubitável parentesco com a épica de Homero (a guerra de Troia, Ilíada). A armadura do gigante, toda em bronze – só a ponta da lança era de ferro (vv. 5-7) –, o desafio, o duelo singular, são detalhes mais frequentes na Ilíada do que na Bíblia. É um combate entre dois campeões, que deve pôr fim à guerra e decidir a sorte dos dois povos (cf. vv. 8-10; cf. ainda 2Sm 2,12-17; 21,15-22; 23,20-21). Saul prometeu sua filha e riquezas se alguém vencesse o gigante que desafiava e zombava Israel (vv. 8-10.16.24s) Mas nenhum soldado teve coragem de lutar com este filisteu Golias com mais de 2,80m de altura usando uma couraça de 60kg (cf. v. 4).

Davi foi conduzido a Saul e lhe disse: “Ninguém desanime por causa desse filisteu! Eu, teu servo, lutarei contra ele”. Mas Saul ponderou: “Não poderás enfrentar esse filisteu, pois tu és só ainda um jovem, e ele é um homem de guerra desde a sua mocidade” (vv. 32-33).

Nossa leitura entra no meio da história, onde a primeira narrativa volta (o v. 32 se liga ao v. 11). Depois as duas traduções estão misturadas. A Bíblia do Peregrino (p. 523) comenta: Não carece de ironia o fato de apresentar o jovem pastor animando o rei: é presunção ou ingenuidade? A resposta de Saul o toma no segundo sentido.

Davi respondeu: “O Senhor me livrou das garras do leão e das garras do urso. Ele me salvará também das mãos deste filisteu”. Então Saul disse a Davi: “Vai, e que o Senhor esteja contigo” (v. 37).

Davi recorda sua coragem como pastor que defendeu suas ovelhas. No Antigo Oriente, a imagem do pastor é metáfora comum para rei. Ez e Jr comparam as lideranças corruptas com maus pastores que não cuidam nem defendem seu rebanho; Deus mesmo vai pastoreá-lo (cf. Ez 34; Jr 23,1-6; cf. Sl 23; Jo 10).

As feras são símbolos dos inimigos poderosos (reis, reinos; cf. Dn 7; Sl 22). A reposta de Davi soa quase como estribilho de um possível salmo (cf. Sl 18,18), de marcado paralelismo (cf. 2Tm 4,17s).

Em seguida, tomou o seu cajado, escolheu no regato cinco pedras bem lisas e colocou-as no seu alforje de pastor, que lhe servia de bolsa para guardar pedras. Depois, com a sua funda na mão, avançou contra o filisteu (v. 40).

Os preparativos são descritos com minúcia, como as armas de Golias no começo. O rei Saul vestiu Davi com sua própria armadura, mas Davi não conseguiu caminhar com ela, não estava acostumado (vv. 38-39). Quando é o próprio Senhor quem combate, os meios humanos se tornam irrisórios; é motivo frequente da guerra santa (cf. vv. 45-47; 7,2-8; 14,6).

Este, que se vinha aproximando mais e mais, precedido do seu escudeiro, quando pôde ver bem Davi desprezou-o, porque era muito jovem, ruivo e de bela aparência. E lhe disse: “Sou por acaso um cão, para vires a mim com um cajado?” E o filisteu amaldiçoou Davi em nome de seus deuses (vv. 41-43).

Golias compara Davi a uma criança, por isso a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB) traduz: “tez clara” em vez de “ruivo” (lit. vermelho, rosado; cf. 16,12; Gn 25,25). Golias zomba da desproporção; “cão”, em sentido depreciativo; os pastores ainda não usavam cães domésticos.

E acrescentou: “Vem, e eu darei a tua carne às aves do céu e aos animais da terra!” (v. 44)

Esta maldição é uma frase comum que Davi repetirá em seguida (cf. v. 46; Dt 28,26; 1Rs 14,11; 16,4; 21,24; Jr 7,33; 16,4; 19,7; 34,20). É vergonhoso e considerado maldição ficar sem sepultura (cf. Tb 1,15-20).

Davi respondeu: “Tu vens a mim com espada, lança e escudo; eu, porém, vou a ti em nome do Senhor Todo-poderoso, o Deus dos exércitos de Israel que tu insultaste! Hoje mesmo, o Senhor te entregará em minhas mãos, e te abaterei e te cortarei a cabeça, e darei o teu cadáver e os cadáveres do exército dos filisteus às aves do céu e aos animais da terra, para que toda a terra saiba que há um Deus em Israel. E toda esta multidão de homens conhecerá que não é pela espada nem pela lança que o Senhor concede a vitória; porque o Senhor é o árbitro da guerra, e ele vos entregará em nossas mãos” (vv. 45-47).

O discurso de Davi é uma confissão teológica que reconhece o Senhor como protagonista (cf. Sl 20,8s: “Uns confiam nos carros… nós, porém, invocamos o nome de Javé, nosso Deus…”).

Ritmicamente, às três armas do filisteu se opõem o Senhor com seu nome e título: o “Senhor dos Exércitos”, hebr. Yhwh=Javé Sebaot, aqui traduzido por “Senhor Todo-poderoso”, é o “Deus dos exércitos de Israel”, mas também dos exércitos celestes, astros, anjos e todas as forças cósmicas (cf. Gn 2,1). O título aparece pela primeira vez em 1Sm 1,3 e está ligada ao culto da arca em Silo; a arca continha as tábuas da lei, os dez mandamentos (cf. Ex 25,10-22) e Davi como rei transportará a arca para sua nova capital Jerusalém (2Sm 6).

A intervenção divina levará a um reconhecimento universal e local (cf. 2Rs 19,19, “que todos os reinos da terra saibam que Tu és Deus, Javé”). Está claro quem são os rivais do duelo, no qual Davi é modesto representante, executor do fato já consumado (cf. Ex 15,3; 2Cr 20,15: “Esta guerra não é vossa, mas de Deus”). Os povos antigos consideravam a guerra não apenas um conflito entre homens, mas entre deuses (cf. a guerra de Troia). O gigante filisteu cairá (v. 49) como a imagem do Dagon (deus filisteu) caiu diante da arca que representa Javé (cf. 5,1-4).

Logo que o filisteu avançou e marchou em direção a Davi, este saiu das linhas de formação e correu ao encontro do filisteu. Davi meteu, então, a mão no alforje, apanhou uma pedra e arremessou-a com a funda, atingindo o filisteu na fronte com tanta força, que a pedra se encravou na sua testa e o gigante tombou com o rosto em terra (vv. 48-49).

A Bíblia do Peregrino (p. 523) comenta: Talvez o filisteu não conhecesse a funda como a arma de combate, e imagina que Davi vem desarmado. Ele precisa aproximar-se, ao menos para o tiro seguro do arco, enquanto que Davi ajudava a manter certa distância; por isso vem a ser estranho que corra até ele. Talvez se possa traduzir “correu para as filas, ao aproximar-se o filisteu”.

E assim Davi venceu o filisteu, ferindo-o de morte com uma funda e uma pedra. E, como não tinha espada na mão, correu para o filisteu, chegou junto dele, arrancou-lhe a espada da bainha e acabou de matá-lo, cortando-lhe a cabeça. Vendo morto o seu guerreiro mais valente, os filisteus fugiram (vv. 50-51).

Os versículos 49 e 51 empregam a técnica conhecida de articular a ação em momentos preciosos e rápidos, com acumulação verbal (cf. 4,10s); o versículo 50, ao invés, é como um comentário que faz coro ao princípio de que Deus está ao lado dos fracos e oprimidos contra os prepotentes, “o Senhor dá a vitória sem espada” (cf. Jz 3,21; 15,15; Ex 14-15). Também expressa a oposição pastor (pessoa simples) – guerreiro profissional, morto pela própria espada (cf. 2Sm 23,21; Mt 26,52; o inimigo degolado por Judite, cf. Jt 13,8).

Evangelho: Mc 3,1-6

Ouvimos a última das cinco controvérsias em seguida com os fariseus na Galileia (cf. Mc 2 e os comentários dos dias passados) e mais uma vez sobre a questão do sábado.

Jesus entrou de novo na sinagoga. Havia ali um homem com a mão seca (v. 1).

Jesus entra “de novo na sinagoga”, provavelmente em Cafarnaum onde já havia curado um possuído na sinagoga. Outra vez encontra-se ali um doente (v. 1; cf. 1,21), desta vez “um homem com a mão seca”, sem vida, endurecida, sem movimento, sem possibilidade de agir.

Alguns o observavam para ver se haveria de curar em dia de sábado, para poderem acusá-lo (v. 2).

Esta narrativa não obedece ao esquema habitual de relatos sobre milagres (encontro com o doente e descrição dos sintomas, algum obstáculo, gesto ou palavra de cura, demonstração da cura, aclamação do povo), porque o interesse aqui está mais na controvérsia do que na cura.

Jesus disse ao homem da mão seca: “Levanta-te e fica aqui no meio!” (v. 3).

Jesus chama o doente: “Levanta-te e vem para o meio” (v. 3; cf. o lema da CF 2006 sobre pessoas com deficiência). Jesus coloca os doentes e necessitados no centro da atenção, contrariando uma sociedade que costuma marginalizá-los.

E perguntou-lhes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram (v. 4).

Jesus desafia os rivais (v. 2 não diz quem são; só v. 6) e coloca a questão ética: “Fazer o bem ou fazer o mal, salvar uma vida ou deixá-la morrer?” (cf. Dt 30,15). Os rabinos permitiam infringir a lei do sábado, que proibia qualquer trabalho (Ex 20,8-11; Dt 5,12-15), para prestar socorro alguém em perigo de morte: aqui não é o caso. Mas Jesus estende o princípio a qualquer cura e a qualquer boa ação feita no dia de sábado, pois não curar equivale matar, sacrificar a saúde de um infeliz, não fazer o bem equivale a fazer o mal. Jesus tende a pôr o sábado a serviço do homem (2,27), do bem e da vida (cf. Jo 5,17-18). Os adversários, porém, pensam que se deve sacrificar o homem à instituição, mas por falta de argumento “eles nada disseram” (v. 4c).

Jesus, então, olhou ao seu redor, cheio de ira e tristeza, porque eram duros de coração; e disse ao homem: “Estende a mão.” Ele a estendeu e a mão ficou curada (v. 5).

Mc anotou com frequência o olhar de Jesus “ao seu redor” (v. 5; cf. v. 34; 10,23; 11,11; cf. Lc 6,10), desta vez “cheio de ira e tristeza”. Jesus parece unir uma cólera divina (frequente no AT, cf. Sl 95,11 etc.), por causa da dureza do coração dos adversários, a uma compaixão humana (cf. 1,41 na tradução da Bíblia Pastoral). Mais uma vez, Jesus cura um deficiente apenas com sua Palavra (cf. 2,1-12p; Mt 8,8p) e “a mão ficou curada” (v. 5d).

Ao saírem, os fariseus com os partidários de Herodes, imediatamente tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-lo (v. 6).

Em vez da admiração e aclamação do povo, Mc anota a reação negativa, a decisão de matar o benfeitor Jesus. Os fariseus não podiam empreender uma ação contra Jesus sem o poder político de Herodes Antipas (seu pai era Herodes Grande que matava os recém nascidos em Belém, segundo Mt 2). Antipas era governador da Galileia e da Pereia, mandou prender João Batista (1,14; 6,17) e, conforme Lc 13,31, era hostil a Jesus (cf. Mc 8,15; Lc 23,8-12). Os herodianos tornarão a encontrar-se com os fariseus em 12,13, desta vez em Jerusalém para apanhar Jesus numa pergunta sobre o imposto a César. Lá também os sumos sacerdotes, anciãos e doutores da lei vão procurar o poder político, o governador da cidade, Pôncio Pilatos, para conseguirem matar Jesus (15,1).

O site da CNBB resume: A vivência legalista e proibitiva da religião é uma das maiores manifestações da dureza de coração que pode acontecer na vida das pessoas. Quando isso acontece, as pessoas não são capazes de descobrir os valores que devem marcar o nosso relacionamento entre nós mesmos e entre nós e o próprio Deus, e a religião acaba por se tornar um mero cumprimento de obrigações e de ritos, numa verdadeira bruxaria. Esta forma de religião acaba por ter como um dos seus principais fundamentos a relação de poder, o autoritarismo e a estratificação social a partir da fé das pessoas. É por isso que as autoridades do tempo de Jesus procuram descobrir a maneira como haveriam de matá-lo.

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