17 de outubro de 2017 – Terça-feira, 28ª semana

Leitura: Rm 1,16-25

Nos dois primeiros versículos da leitura de hoje (vv. 16-17), Paulo enuncia o tema central da carta, que será desenvolvido até 8,39, e que constitui o resumo de toda a sua pregação: o Evangelho é a força de Deus que salva. Condição única para isso é o homem entregar-se a Deus mediante a fé. Fora da fé, o homem não tem outro meio para se libertar da condição de pecador: nem a Lei de Moisés, nem ritos, nem sistemas filosóficos, nem poderes cósmicos ou humanos. A fé, porém, não é atitude passiva; é a certeza firme e contínua de que o projeto de Deus se realizou em Jesus Cristo e continua realizando-se no meio dos homens. A fé leva o fiel a viver uma nova dinâmica de vida; o homem deixa de ser receptor passivo e se torna, junto com Deus, agente ativo de salvação dentro da história.

Eu não me envergonho do Evangelho, pois ele é uma força salvadora de Deus para todo aquele que crê, primeiro para o judeu, mas também para o grego (v. 16).

Os judeus são os primeiros na economia da histórica da salvação (Rm 9-11), para sua glória como para sua condenação, porque “a salvação vem dos judeus” (Jo 4,22; cf. Rm 2,9s; Mt 10,5s; 15,24; Mc 7,27; At 13,5). Mas a salvação está aberta “para todo aquele que crê, primeiro para o judeu, mas também para o grego”.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2119) comenta sobre a fé na visão de Paulo:

A fé é um ato pelo qual o homem se entrega a Deus, que é ao mesmo tempo verdade e bondade, como à fonte única da salvação. Ela se apóia sobre sua verdade e sua fidelidade a suas promessas (Rm 3,3s; 1Ts 5,24; 2Tm 2,13; Hb 10,23; 22,11) e sobre seu poder para realizá-las (Rm 4,17-21; Hb 11,19). Após a longa preparação do AT (Hb 11), tendo Deus falado através do seu Filho (Hb 1,1), é em seu Filho que doravante é preciso crer (cf. Mt 8,10; Jo 3,11), e depois dele no “querigma” (Rm 10,8-17; 1Cor 15,1-2; Fl 1,27; Ef 1,13) anunciado pelos apóstolos (Rm 1,5; 1Cor 3,5; cf. Jo 17,20), segundo o qual Deus ressuscitou Jesus dos mortos e o fez “Kyrios” (Senhor: cf. Rm 4,24s; 10,9; At 17,31; 1Pd 1,21; cf. 1Cor 15,14,17), oferecendo por meio dele a vida a todos os que neles creem (Rm 6,8-11; 2Cor 4,13s; Ef 1,19s; Cl 2,12; 1Ts 4,14). A fé no nome de Jesus (Rm 3,26; 10,13; cf. Jo 1,12; At 3,16; 1 Jo 3,23), Cristo (Gl 2,16; cf. At 24,24; 1Jo 5,1), Senhor (Rm 10,9; 1cor 12,3; Fl 2,11; cf. At 16,31) e Filho de Deus (Gl 2,20; cf. Jo 20,31; 1Jo 5,5; At 8,37; 9,20) é a condição indispensável da salvação (Rm 10,9-13; 1Cor 1,21; Gl 3,22; Is 7,9; At 4,12; 16,31; Hb 11,6; Jo 3,15-18). A fé não é mera adesão intelectual, mas confiança e obediência (Rm 1,5; 6,17; 10,16; 16,26; cf. At 6,7) a uma verdade de vida (2Ts 2,12s) que engaja todo o ser na união com Cristo (2Cor 13,5; Gl 3,26; cf. Jo 1,12). Sendo que a fé conta só com Deus, ela exclui toda autossuficiência (Rm 3,7; Ef 2,9) e se opõe ao regime da Lei (Rm 7,7) e sua busca vã (Rm 10,3; Fl 3,9) de uma justiça merecida pelas obras (Rm 3,20.28; 9,31s; Gl 2,16; 3,11s): a verdadeira  justiça que só ela obtém é a justiça salvífica de Deus (Rm aqui; 3,21-26), recebida como um dom gratuito (Rm 3,24; 4,16; 5,17; Ef 2,8; cf. At 15,11). Assim ela corresponde à promessa feita a Abraão (Rm 4; Gl 3,6-18) e abre a salvação a todos, também aos gentios (Rm 1,5.16; 3,29s; 9,30; 10,11s; 16,26; Gl 3,8). Ela é acompanhada pelo batismo (Rm 6,4), se exprime por uma profissão aberta (Rm 10,10; 1Tm 6,12) e frutifica pelo amor (Gl 5,6; cf. Tg 2,14). Ainda obscura (2Cor 5,7; Hb 11,1; cf. Jo 20,29) e acompanhada pela esperança (Rm 5,2), ela deve crescer (2Cor 10,15; 1Ts 3,10; 2Ts 1,3) na luta e nos sofrimentos (Fl 1,29; Ef 6,16; 1Ts 3,2-8; 2Ts 1,4; Hb 12,2; 1Pd 5,9), na firmeza (1Cor 6,13; Cl 1,23; 2,5.7) e na fidelidade (2Tm 4,7; cf. 1,14; 1Tm 6,20) até o dia da visão e da posse (1Cor 13,12; cf. 1Jo 3,2).

Nele, com efeito, a justiça de Deus se revela da fé para a fé, como está escrito: O justo viverá pela fé (v. 17).

Na Bíblia, a palavra “justiça” significa estar em relação certa, em proporção harmoniosa, permanecer fiel à aliança. Deus é justo quando emprega seu poder em favor do povo e do indivíduo (cf. Sl 71,2; 98; 143). O homem e o povo são justos quando guardam os preceitos da aliança, os mandamentos.

No evangelho se revela a justiça de Deus, mas “do céu se revela a ira de Deus” (v. 18). Ira é ato judicial de condenar um culpado. “Justiça de Deus” não é uma justiça “distributiva”, que recompensa as obras, mas uma justiça salvífica (cf. Is 56,1) de Deus (cf. 3,26), que realiza sua promessa da salvação pela graça (cf. 4,25), oferecendo perdão, indulto, anistia, restabelecendo assim uma relação “justa”. O evangelho “revela”, promulga esta indulto oferecido por Deus, o põe em vigor e o aplica. Esta é a “força” (v. 16) ou validade jurídica do evangelho. A única condição é a fé, confiar em Deus e aderir a Jesus, messias e salvador. Esta justiça “se revela da fé para a fé”, talvez signifique que a fé seja condição necessária para esta revelação.

O evangelho oferece assim “salvação” (v. 16) e vida que os profetas já anunciaram (cf. Jr 31,33ss; Ez 36,22-28). Paulo cita a versão grega de Hab 2,4; em hebraico se traduz: “o justo viverá por sua fidelidade” (cf. Os 2,22; Jr 5,1.3; 7,28; 9,2 etc.)., i. é., à Deus, à sua palavra e sua vontade, mas na versão grega da LXX, “fidelidade“ se tornou “fé”. Outra vez, Paulo cita Hab 2,4 em Gl 3,11; cf. Hb 10,38).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1369) comenta: Segundo o contexto original de Hab 2,4, a fé consiste numa atitude ativa de resistência diante das dificuldades. Graças a esta atitude, que é fiel está pronto a colaborar com o plano de Deus, em vista da salvação, ou seja, realizar a vida nova para toda a humanidade.

Por outro lado, a ira de Deus se revela, do alto do céu, contra toda a impiedade e iniquidade dos homens que em sua iniquidade oprimem a verdade (v. 18).

Ao tema da justiça de Deus revelada no evangelho (vv. 16s), tema que será retomado em 3,21s, sucede o tema antitético: fora do evangelho, só há um lugar para a “ira de Deus” (cf. Sf 1,15; Sb 13,1-9; Sl 7,7-12 etc.), tanto no mundo dos gentios (vv. 18-32), como no mundo judaico (2,1-3,20). Essa ira se manifesta em primeiro lugar pela multiplicação dos pecados e explodirá no Juízo final (2,6; Mt 3,7 etc.). O delito é enunciado, primeiro de modo genérico: todo tipo de “impiedade” (contra Deus) e “iniquidade” (injustiça contra os seres humanos). Como Deus é justo, não pode suportar atitudes injustas.

Já no AT a ira de Deus (Nm 11,1 etc.) era contraposta à sua justiça (Mq 7,9; Sl 85,5-12). Também aqui ela é ainda provocada pelo pecado (2,5-8; 4,15; 9,22; Ef 5,6; Cl 3,6; cf. 1Ts 2,16; Jo 3,36), de modo que Cristo livra dela aqueles que nele crêem e que Deus justifica (5,9; cf. 1Ts 1,10; 5,9).

Depois de enunciar o pecado genérico (v. 18), desenvolve-se o processo. Primeira fase: O homem “conhece” (naturalmente, sem revelação) a Deus, e não o “reconhece” como é devido, (“não ter dado glória”). Segunda fase: como castigo, Deus abandona o homem e o “entregue as suas paixões” (três vezes: vv. 24.26.28). Terceira fase: um catálogo de vícios tirado da cultura grega (vv. 29-31) que resulta na acusação “réus (dignos) de morte” (v. 32); os pagãos não podem alegar a rejeição nem a atenuante da ignorância.

Pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto aos homens: Deus mesmo lho manifestou. Suas perfeições invisíveis, como o seu poder eterno e sua natureza divina, são claramente conhecidas através de suas obras, desde a criação do mundo (vv. 19-20).

Paulo supõe um conhecimento “natural” (pela razão, sem revelação) de um Deus único e pessoal, implicando a consciência de uma obrigação de oração e de adoração.

Assim, eles não têm desculpa por não ter dado glória e ação de graças a Deus como se deve, embora o tenham conhecido. Pelo contrário, enfatuaram-se em suas especulações, e seu coração insensato se obscureceu: alardeando sabedoria, tornaram-se ignorantes e trocaram a glória do Deus incorruptível por uma figura ou imagem de seres corruptíveis: homens, pássaros, quadrúpedes, répteis. Por isso, Deus os entregou com as paixões de seus corações a tal impureza, que eles mesmos desonram seus próprios corpos. Trocaram a verdade de Deus pela mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, que é bendito para sempre. – Amém (vv. 20c- 25).

Paulo usa um modelo de pregação judaica no mundo pagão enfatizando a fé no único Deus e criador e criticando os ídolos e costumes pagãos (cf. At 17,24-29; 1Cor 1,21; Ef 4,17-19; Sb 11,15; 12,24; 13,1-9; Eclo 17,9; Dt 4,16-18; 29,28; Ex 32-34; Is 40,26-28; Jr 2,5.9.11; Sl 94,11; 106,20). As pessoas impiedosas e injustas “trocaram a verdade de Deus pela mentira” (v. 25), o que se torna a pior da idolatrias.

A fórmula bíblica “Deus os entregou”, repetida três vezes, quer sublinhar que o erro religioso culpável traz consigo as piores desordens no campo moral e social. Já em si mesmo o pecado traz consigo seu fruto e sua sanção (cf. Is 64,6; Sb 11,15-16; 12,23-27). – Paulo julga e condena o mundo pagão, mas não as intenções das pessoas, das quais só Deus é juiz (2,16; 1Cor 4,5; 5,12-13), e Rm 2 supõe que mais de um gentio observe a lei natural inscrita em seu coração (2,14-15). Mas o ser humano deve se reconhecer pecador.

O termo hebraico “Amém”, herdado do AT (cf. Sl 41,14; 72,19; 106,48; Ne 8,6 etc.), passou para o uso da Igreja cristã (9,5; 11,36; 16,27; 1 Cor 14,16; Ap 1,6-7; 22,20-21, etc.). Usado também por Jesus (Mt 5,18 etc.), tornou-se em seguida como um nome próprio, enquanto ele é testemunha verdadeira das promessas de Deus (2Cor 1,20; Ap 1,2.5; 3,14).

O não reconhecimento do único Deus (v. 19s) traz desvios intelectuais e morais (por ex. relações não naturais como o homossexualismo era entendido na época, cf. vv. 26s). A leitura de hoje se concentra na falha de não reconhecer Deus a partir das suas obras, através da razão (sem a revelação da Palavra de Deus que foi dada aos judeus). S. Tomás de Aquino desenvolveu cinco vias deste conhecimento natural de Deus. Contra o ateísmo, o Concílio Vaticano I fixou como dogma que a existência de Deus pode ser reconhecida pela luz natural da razão. Bento XVI dedicou boa parte da sua obra à relação fé e razão (cf. a encíclica Lumen Fidei concluída por Papa Francisco).

 

Evangelho: Lc 11,37-41

Nos próximos dias ouvimos críticas duras de Jesus aos fariseus. Lc as copia de Mc 7,2.5 e 12,38s e da sua outra fonte comum com Mt, chamada Q (cf. Mt 23,25s).

Enquanto Jesus falava, um fariseu convidou-o para jantar com ele. Jesus entrou e pôs-se à mesa. O fariseu ficou admirado ao ver que Jesus não tivesse lavado as mãos antes da refeição (vv. 37-38).

Jesus acabou seu discurso anterior e é convidado por um fariseu. Em Lc, Jesus aceita dos fariseus convites para refeições (7,36; 11,37; 14,1; outras refeições cf. 5,29; 10,38) e aproveita a ocasião para ensinar. Como em 7,39 (cf. 5,30; 15,2), o fariseu se admira com a conduta liberal de Jesus (cf. Mc 7,2.5) que omite a lavagem das mãos costumeira entre os judeus antes das refeições.

Entre as muitas observâncias, algumas se referem a lavatórios e abluções cotidianas (cf. Jt 12,7-9), baseiam-se em leis do culto para sacerdotes, mas os fariseus levam ao extremo tentando impor ao povo todo (Ex 30,18-21; 40,12.31-32;Lv 15; Nm 19; Dt 21,6; Eclo 34,25; Hb 9,10). Não se trata de higiene, mas de pureza ritual, diferente de uma purificação do coração (conversão; cf. Is 1,16; 4,4; Ez 36,25; Mc 1,4; Hb 6,2; 1Pd 3,21). Lc omite a questão judaica da lei e da tradição (tema de Mc 7 e Mt 15) e passa para um assunto mais genérico.

O Senhor disse ao fariseu: “Vós fariseus, limpais o copo e o prato por fora, mas o vosso interior está cheio de roubos e maldades (vv. 39).

O fariseu não falou nada ainda, mas Jesus começa seu novo discurso contra a hipocrisia dos líderes religiosos, a contradição entre fora e dentro que encontrou sua expressão eloquente nos ritos de purificação. A frase surpreende porque em vez de lavar as mãos se fala de copo e prato (um indício que Lc costurou aqui a cena de Mc 7 com a fonte Q, cf. Mt 23,25s) e passa logo para o interior do ser humano. Enquanto por fora se celebra a perfeição, por dentro, no coração reina a corrupção e a maldade (cf. 16,14; Mc 12,40).

Insensatos! Aquele que fez o exterior não fez também o interior? (v. 40).

Uma pergunta retórica que destaca o coração como centro de responsabilidade religiosa. Não se deve supor dualismo antropológico (corpo/alma), mas Deus criou o ser humano como um todo e como pessoa ética (cf. 1Sm 15,22; Os 6,6). A exclamação “insensatos” lembra a polêmica judaica contra os ímpios e materialistas (12,20; 1Cor 15,36; 2Cor 11,16.19; 12,11; Ef 5,17) e provoca o partido dos fariseus que concebe a si mesmo como “educador dos ignorantes e mestre dos que não sabem” (Rm 2,20).

Antes, dai esmola do que vós possuís e tudo ficará puro para vós” (v. 41).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.2002) comenta a “esmola”: Tema particularmente caro a Lc, que é o único que a apresenta-lo aqui como em 12,33; 16,9; 19,8; At 9,36; 10,2.4.31; 11,29; 24,17 ( e em paralelo com Mt e Mc, em 6,30; 18,22; 21,1-4). É, portanto, mais provável que a transformação em relação ao v. paralelo de Mc 23,26 seja obra de Lc.

O próprio Lc atualiza a atitude do coração concretizando-a na “esmola”, talvez uma referência ao “prato” de v. 39. Limpando o próprio prato, mas negando comida para o próximo é uma contradição. O amor e a misericórdia são mais importantes do que todos os outros preceitos da lei (cf. v. 42; 10,25-37; Mt 23,23; 25,31-46). A consciência, ou seja, um coração que não se prende no legalismo já sabe o que é certo e errado e “tudo ficará puro para vós” (cf. Tt 1,15).

O site da CNBB comenta: O Evangelho que nos é proposto para a reflexão a partir da liturgia de hoje é altamente questionador no que diz respeito à nossa fé e à nossa vivência religiosa. Para quem crê verdadeiramente, o importante não é a prática exterior, pois esta prática só encontra seu verdadeiro sentido quando é uma expressão do que realmente se crê e se vive, caso contrário, caímos na insensatez: celebramos o que não vivemos nem construímos, e revelamos valores que não são nossos, nem são importantes para nós. O Evangelho de hoje exige de nós coerência entre o que celebramos e o que vivemos, para que as nossas celebrações não sejam ritos vazios e estéreis, mas espírito e verdade.

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