18 de fevereiro de 2018 – Quaresma 1º Domingo Ano B

1ª Leitura: Gn 9,8-15

Nas primeiras leituras dos domingos da Quaresma percorremos a história da salvação, hoje no 1º domingo ouvimos sobre a aliança com Noé; no 2º domingo, sobre o sacrifício de Abraão (Gn 22); no 3º, os dez mandamentos no monte Sinai (Ex 20); no 4º, sobre a destruição do templo e o exílio; no 5º, a promessa de uma nova aliança (Jr 31).

Ouvimos hoje sobre o final do dilúvio, primeira catástrofe global na Bíblia. Enchestes destruidoras marcaram a memória de muitos povos e originaram várias narrativas de dilúvio, por ex. o mito da “terra sem males” dos índios guarani. No Oriente Médio, cerca de 1800 a.C., havia duas ou mais narrativas na Mesopotâmia (região entre os rios Eufrates e Tigre, antiga Babilônia, atual Iraque), que influenciaram os autores bíblicos.

Uma teoria mais recente (W. Ryan e W. Pitman em 1996) alega um aumento do nível do mar no fim das eras glaciais que causou uma grande invasão de águas do oceano Atlântico pela estreita de Gibraltar formando assim o mar mediterrâneo, que, bem mais tarde, irrompeu também pela estreita de Istanbul, formando o mar Negro (cerca de 7150 a.C.). A atual Turquia com o monte Ararat (onde a arca de Noé encalhou, cf. 8,6) está no meio entre os dois mares, e de lá nascem os rios Eufrates e Tigre que irrigam a “Mesopotâmia” (lit. “entre rios”; antiga Assíria e Babilônia, atual Iraque).

A narração bíblica (Gn 6,5-9,17) combina duas traduções (fontes literárias), uma usa o nome Yhwh (“Javé”, traduzido comumente por “Senhor”), outra refere-se a Elohim (traduzido por “Deus”). A primeira é mais antiga, a segunda é chamada “sacerdotal” e foi escrita durante e depois o exílio na Babilônia (séc. Vi e V).

Na leitura de hoje ouvimos o final do diluvio na segunda narrativa. Como convém para uma tradição “sacerdotal”, apresenta-se no final da narrativa uma “benção” e o sinal da primeira “aliança” de Deus para com os seres humanos.

Disse Deus a Noé e a seus filhos: “Eis que vou estabelecer minha aliança convosco e com vossa descendência, com todos os seres vivos que estão convosco: aves, animais domésticos e selvagens, enfim, com todos os animais da terra, que saíram convosco da arca. Estabeleço convosco a minha aliança: nenhuma criatura será mais exterminada pelas águas do dilúvio, e não haverá mais dilúvio para devastar a terra” (vv. 8-11).

No relato mais antigo, não se falava de uma aliança no final do dilúvio, mas da promessa de Javé de não mais amaldiçoar a terra e destruir todos os viventes por causa do homem (8,21s). Na tradição sacerdotal (9,1-17), Deus renova a bênção da fecundidade e o senhorio do ser humano sobre a criação (vv. 1-2.7; cf. Gn 1,28-30 sacerdotal), mas muda as condições de vida: Como o homem (Noé na arca) salvou todas as espécies de animais, pode agora alimentar-se da carne deles (contra 1,29), mas Deus reserva para si a soberania sobre a vida: o homem não deve comer o sangue dos animais, considerado a sede da vida (Lv 17,11-14; cf. At 15,20), e Deus pedirá conta da vida (sangue derramado) do homem (vv. 3-6). Na interpretação judaica, esta aliança e estes mandamentos (vv. 1-7) valem para todos os homens, não só para os judeus, também para os pagãos.

Aliança é uma promessa (geralmente mútua, as vezes com juramento ou documento), um contrato, um pacto. Na Bíblia, a iniciativa vem de Deus, o soberano é ele que se compromete a cumpri-la, é uma promessa/aliança mais unilateral do que bilateral, apesar da condição do povo cumprir a exigências (leis, decretos). Uma aliança pode ser concluída com um ritual (Gn 15) e/ou uma refeição (Ex 24).

E Deus disse: “Este é o sinal da aliança que coloco entre mim e vós, e todos os seres vivos que estão convosco, por todas as gerações futuras. Ponho meu arco nas nuvens como sinal de aliança entre mim e a terra. Quando eu reunir as nuvens sobre a terra, aparecerá meu arco nas nuvens (vv. 12-14).

Esta é a primeira aliança de Deus com os seres humanos na Bíblia. O sinal da aliança com Noé e “todos os seres vivos” é o “arco íris”, conveniente no final das chuvas; o dilúvio foi a primeira chuva relatada na Bíblia (antes só se menciona manancial e rios, cf. 2,5s.10-14).

A Bíblia do Peregrino (p. 26) comenta: Segundo a teoria das fontes, o autor Sacerdotal marca a sua história com três grandes alianças ou compromissos de Deus, cada qual com seu sinal. A primeira é com Noé e seu sinal é cósmico, o arco-íris (Is 54,9); a segunda com Abraão, e seu sinal é a circuncisão; a terceira com Moisés, seu sinal é o sábado.

Então eu me lembrarei de minha aliança convosco e com todas as espécies de seres vivos. E não tornará mais a haver dilúvio que faça perecer nas suas águas toda criatura” (v. 15).

Esta “lembrança” de Deus já se mencionou em 8,1, no fim do dilúvio. É um termo técnico na teologia dos textos “sacerdotais”, que exprime a atualização da presença salutar de Deus em meio a seu povo; o termo é equivalente de um “memorial” (cf. Ex 12,14).

 

2ª Leitura: 1Pd 3,18-22

A 2ª leitura se liga com a 1ª, mencionando a arca de Noé e comparando-a com a salvação pelo batismo. O autor da carta, provavelmente um discípulo de Pedro, escreve na “Babilônia” (cifra para Roma, cf. 5,13; Ap 17-18) no final do séc. I aos migrantes cristãos, que sofrem perseguição e discriminação. Exorta à perseverança, associando seus sofrimento aos de Cristo. Dentro do tema favorito da carta, o sofrimento inocente, introduz uma profissão ou instrução batismal, mas no meio (vv. 19-20) contém um dos textos mais enigmáticos do Novo Testamento (NT).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2274) comenta: Todo este trecho (3,18-4,6) contém os elementos de uma antiga profissão de fé: a morte de Cristo (3,18), a descida à mansão dos mortos (3,19), a ressurreição (3,21d), o sentar-se à direita de Deus (3,22), o julgamento dos vivos e dos mortos (4,5).

Cristo morreu, uma vez por todas, por causa dos pecados, o justo, pelos injustos, a fim de nos conduzir a Deus. Sofreu a morte, na sua existência humana, mas recebeu nova vida pelo Espirito (v. 18).

O que está claro no texto são os vv. 18 e 21-22. Primeiro menciona em v. 18 a morte redentora de Cristo, de alcance universal e definitivo, “uma vez por todas” (cf. Hb 6,6; 9,26), que conduz os seres humanos para Deus; “o justo, pelos injustos”, consumando a reconciliação (2Cor 5,20). Depois, a morte de Jesus aconteceu por sua “existência humana” (de carne), mas na ressurreição foi vivificado “pelo Espírito” (cf. Jo 6,63; Rm 8,10s; 1Cor 15,44).  

No Espírito, ele foi também pregar aos espíritos na prisão, a saber, aos que foram desobedientes antigamente, quando Deus usava de longanimidade, nos dias em que Noé construía a arca. Nesta arca, umas poucas pessoas – oito – foram salvas por meio da água (vv. 19-20).

A frase de v. 19 é continuação de v. 18; a nossa Liturgia a separou e repete “no Espírito” do v. 18. A Bíblia de Jerusalém (p. 2274) comenta: Alusão provável à descida de Cristo ao Hades (cf. Mt 16,18+), entre a sua morte a sua ressurreição (Mt 12,40; At 2,24.31; Rm 10,7; Ef 4,9; Hb 13,20), ao qual foi “em espírito” (cf. Lc 23,46), ou, antes, segundo o espirito (Rm 1,4+), enquanto a sua “carne” estava morta na cruz (Rm 8,3s).

Podemos pensar no artigo do Símbolo dos Apóstolos: entre sua morte e ressurreição, Cristo “desceu à mansão dos mortos”, mas não é tal claro assim. O texto diz que Jesus “foi também pregar aos espíritos na prisão (ou almas encarceradas)”.

Há duas interpretação possíveis dos espíritos na prisão (ou almas encarceradas), “que foram desobedientes antigamente, quando Deus usava de longanimidade (ou: paciência)”: quer contemporâneos de Noé considerados no judaísmo como piores dos pecadores (cf. Gn 6,5-10 só fala da maldade do coração deles e da perversão e violência generalizadas, enquanto Noé era o único justo e íntegro), quer os anjos decaídos como responsáveis pelos pecados dos seres humanos (cf. os livros apócrifos: Henoc e Jubileus)

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2388) comenta o termo “pregar/proclamar”: verbo técnico visando a pregação cristã, muitas vezes em paralelismo com “evangelizar” (cf. 4,6). Muito Padres da Igreja vira aí a expressão do apelo universal à salvação. Ao passo que outros textos do NT (At 12,3; Rm 10,7; Ef 4,8-10) limitam-se a mencionar uma descida de Jesus à mansão dos mortos, afirmação esta consignada no Símbolo dos Apóstolos, esta texto é o único que menciona uma intervenção de Cristo junto aos espíritos. Entretanto, alguns autores entendem esta pregação como uma simples proclamação da vitória contra as potências infernais (cf. 3,22; Ef 1,20-21).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2274) comenta: Os “espíritos em prisão” aos quais ele “pregou” (ou “anunciou”) a salvação são, segundo alguns, os demônios acorrentados de que fala o livro de Henoc (alguns, corrigindo o texto, atribuem esta pregação a Henoc e não a Cristo): nesta ocasião eles foram então submetidos ao seu domínio de Kyrios (v. 22; cf. Ef 1,21s; Fl 2,8-10), enquanto aguardavam sua sujeição definitiva (1Cor 15,24s). Outros querem ver neles os espíritos dos mortos que, embora punidos no dilúvio, são, entretanto, chamados para a vida pela “paciência de Deus” (cf. 4,6). Mt 27,52s contém uma alusão semelhante a uma libertação dos “santos”, operada por Cristo, entre a sua morte e sua ressurreição. Esses “santos” eram justos que esperavam a sua vinda (cf. Hb 11,39s; 12,23), para estarem com ele na “santa cidade” escatológica.

A Bíblia do Peregrino (p. 2910s) comenta: O enigmático está nos vv. 19-20, ou seja, a pregação de Jesus às “almas encarceradas” de antepassados. O enigma não foi resolvido até agora, antes, tem provocado múltiplas explicações conjecturais. Entre todas, proponho uma leitura baseada na mentalidade do AT sobre a existência no além-túmulo.

Quando morre, o homem “desce” pelo sepulcro ao Xeol, mundo subterrâneo e tenebroso dos mortos, que possuem uma existência umbrática (como “os fantasmas” do nosso folclore). Cf. Is 14; Ez 32 etc. (Não tem sentido no AT dizer que o corpo inerte fica no sepulcro e a alma separada “desce ao inferno”.).

Nesse mundo dos mortos encontram-se, como grupo representativo, homens contemporâneos de Noé, a quem o patriarca anunciava o dilúvio e não lhe deram atenção. Por não darem atenção morreram (cf. Ez 33), enquanto que a família de Noé, por crer em Deus, se salvou. Jesus Cristo, partilhando a sorte de todos os homens, desce ao mundo dos mortos, não para permanecer, mas para “proclamar” a libertação (cf. Is 61,1) …

Com o que foi dito não respondemos às perguntas: a) O “cárcere” é um tempo de espera dos condenados até comparecer a julgamento? (Cf. Is 24,21-22 em contexto escatológico.) b) Proclama-lhes a liberdade ou a condenação definitiva por sua culpa ancestral? c) Refere-se aos “espíritos” humanos, aos angélicos, a todos? (cf. Is 24,21 “exércitos do céu e reis da terra”.) d) Realiza-se a visita entre a morte e a ressurreição ou o “proclama” já glorificado? e) Respondem os espíritos reconhecendo Jesus Cristo como Senhor? Conforme Fl 2,10-11 e cf. Sl 22,30. f) A paciência de Deus durava só quanto a arca era construída, ou se prolonga até a vinda do Messias? Conforme Rm 2,4. Finalmente, leia-se aqui 4,6.

À arca corresponde o batismo, que hoje é a vossa salvação (v. 21a).

 “À arca corresponde (lit. é antítipo), cf. 1Cor 10,6) o batismo”. A salvação de poucas pessoas na arca, “por meio da água”, é tipo ou imagem da realidade correspondente (antítipo), que é a imersão batismal na água. Na tradição cristã, o número “oito” torna-se símbolo da ressurreição (no domingo, i. e: no primeiro dia da semana ressuscitou, no oitavo apareceu a Tomé) e da nova vida no batismo (cf. Rm 6,4; muitos batistérios construídos tem forma octogonal).

Pois o batismo não serve para limpar o corpo da imundície, mas é um pedido a Deus para obter uma boa consciência, em virtude da ressurreição de Jesus Cristo (v. 21b).

Não é mero banho físico, mas transformação da consciência orientada para Deus.

O batismo “em virtude da ressurreição de Jesus Cristo” (cf. Rm 6,4) inclui um “pedido”, formulado pelo neófito por ocasião do seu batismo; pode se traduzir “compromisso” pessoal, concreto e solene, ou “engajamento”, sentido atestado nos documentos profanos e muito ligado a liturgia batismal; para obter uma “boa consciência”, não mais turbada (Sl 32,2).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2274) comenta: A água do diluvio, que permitiu a algumas pessoas que se salvassem, simboliza a economia da Lei antiga, cujas prescrições rituais em geral se limitavam a assegurar uma purificação simplesmente exterior e “carnal”. No caso do batismo, ao contrário, não há nenhuma limitação à sua eficácia na regeneração da alma.

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 2388) comenta: Alusão quer às práticas de purificação dos mistérios pagãos, quer à circuncisão judaica (cf. Cl 2,11), ou então, aos numerosos ritos de purificação do judaísmo (cf. Nm 8 e 19).

Ele subiu ao céu e está à direita de Deus, submetendo-se a ele anjos, dominações e potestades (v. 22).

Voltamos ao “Credo”, depois da ressurreição, Jesus “subiu ao céu e está à direita de Deus” (At 1,10; Ef 1,20s). A tradução latina Vulgata acrescenta: “aceitando a morte a fim de que nos tornássemos herdeiros da vida eterna”. Também o senhorio universal e glorificação, “submetendo-se a ele anjos, dominações e potestades”, é uma possível alusão a uma confissão de fé (Fl 2,9-11; Ef 1,20s).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2274) comenta: As “Dominações e as Potestades” designavam funcionários do poder civil (Lc 20,20; 12,11; Tg 3,1). Compara-se assim a corte divina a uma corte humana (Cl 2,10.15; Ef 3,10). Essas “dominações” eram encarregadas especialmente de funções judiciárias, o que explica o papel de acusador que tinha Satanás junto de Deus (Jó 1; Zc 3,1-5; Ap 12,7-12). Por outra parte, Jesus pode ser chamado de nosso “advogado” junto de Deus (1Jo 2,1-2).   

Evangelho: Mc 1,12-15

O evangelho do 1º domingo da quaresma sempre apresenta a tentação de Jesus no deserto que durou “quarenta dias”. O evangelho de Mc é o mais antigo e mais curto do que os de Mt e Lc que escreveram já usando Mc como fonte. Mc não contou nada da infância de Jesus, mas começou com João Batista no deserto e o batismo de Jesus. Este batismo precede à tentação no deserto.

A vitória de Jesus sobre o Satanás no deserto o torna capaz de recuperar o paraíso trazendo o Reino de Deus para os homens.

O Espírito levou Jesus para o deserto (v. 12).

Jesus acabou de ser batizado por João Batista e ao sair da água (vv. 9-11), ouviu uma voz do céu dizendo “Tu és o meu filho amado” (cf. Is 42,1; Sl 2,7), e (em Mc somente Jesus) viu o Espírito, “como uma pomba, descer sobre ele” (sinal de paz e amor, cf. Ct 1,15; 2,14; Is 11,1-9). Em Gn 8,8-12 é a pomba que anuncia o fim do dilúvio e início da nova vida na terra, trazendo um ramo novo de oliveira no bico.

O Espírito, do qual Jesus está repleto, o impele para o deserto; o Filho de Deus se deixa levar pelo Espírito (cf. o correlativo em Rm 8,14: “Todos os que se deixam levar pelo Espírito de Deus são filhos de Deus”; o Espírito arrebata o profeta em Ez 3,14; 1Rs 18,12; 2Rs 2,16). Jesus já estava no deserto com João Batista, mas depois do batismo não vai festejar com sua família em Nazaré, de onde saiu (1,9), mas fica no deserto, impelido pelo Espírito Santo que o leva ao confronto com o espírito mau, Satanás.

Em dezembro de 2017 o Papa Francisco questionou umas traduções do penúltimo pedido do Pai Nosso, alegando que Deus não nos tenta, mas Satanás. Verdade, mas Deus não nos poupa (nem o próprio filho, cf. Hb 4,15) de situações de tentação, como um professor precisa aplicar provas para o aluno aprender e progredir. Aqui é o próprio Espírito (1ª causa) que leva Jesus ao deserto onde será tentado por Satanás (2ª causa).

O deserto (cf. v. 3) é lugar de encontro com Deus (1,35), como os israelitas (Ex 19), e também de submeter-se à prova (Dt 8). O deserto é austeridade (cf. 1,3-6; 6,35s; 8,4), lugar dos demônios (cf. Lv 16; Lc 11,24p), mas também lugar de retiro (6,31s; cf. Elias em 1Rs 17,2-6; 19). A vida no deserto, durante os quarenta anos do Êxodo, aparecia como um ideal perdido; em Os 2,16, Javé Deus fala a sua esposa infiel (Israel): “Eis que vou, eu mesmo, seduzi-la, conduzi-la ao deserto e falar-lhe ao coração…”

E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e ali foi tentado por Satanás (v. 13a).

Os “quarenta dias” são tomados como base de nossa “quaresma” litúrgica. Correspondem aos dias dos exploradores da terra prometida (Nm 14) e aos quarenta anos do povo no deserto (Dt 2,7), mais ainda aos quarentas dias de Moisés e de Elias no Sinai/Horeb (Ex 24,18; 34,28; 1Rs 19,8); Em Jn 3,4 é o tempo de conversão e penitência que aplaca a ira de Deus sobre a cidade de Nínive. Moisés estava no monte Sinai por “quarenta dias sem comer pão nem beber água” (Ex 34,28; Dt 9,9), mas Mc não fala nada de jejum de Jesus (só depois Mt 4,2p).

Mc omite, ou ignora, o pormenor das três tentações (cf. Mt 4,1-11; Lc 4,1-13), que Mt e Lc colheram de outra fonte (chamada “Q”, uma coleção catequética que se perdeu na história, mas se deixa reconstruir através de Mt e Lc).

Tentação na Bíblia pode significar provação (através de uma situação sofrida, cf. Jó) ou tentação (para pecar).

“Satanás” é o rival (3,23.26; 4,15; 8,33), que procura frustrar ou desvirtuar o projeto de Deus (cf. Jó 1-2); antes de começar sua atividade messiânica, Jesus tem de ser provado e comprovado.

Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam (v. 13b).

Jesus supera a prova como se pode deduzir pelo convívio pacífico com os animais selvagens, como Adão antes da queda (Gn 2,15.19s; cf. o “filho do homem/Adão” em Sl 8). A vitória sobre as tentações se expressa mediante à alusão às feras que evoca o ideal messiânico, anunciado pelos profetas, de um retorno à paz paradisíaca (cf. Is 11,6-9; 65,25), associada ao tema do retiro no deserto (cf. Os 2,16).

Jesus não é tentado só no final dos quarenta dias (Mt 4,2). mas o tempo todo; os anjos o servem, ou seja alimentam durante este período (como Elias no deserto, cf. 1Rs 19,1-8).

Os anjos estão a seu serviço o que exprime a proteção divina (1Rs 19,7-8; Tb; cf. Sl 91,11s, citado na narrativa paralela em Mt 4,6p). É como se dissesse que os anjos de Deus estão a serviço do “Filho de Deus” (vv. 1.11); em 13,27 estão a serviço do “Filho do Homem”. Hb 1,4-14 ilustra teologicamente a relação dos anjos com Jesus Cristo. Em textos apócrifos (fora da Bíblia) da época, Satanás tornou-se rebelde porque sendo anjo (espírito criado) não queria “servir” ao ser humano (Adão) feito de carne, como Deus havia ordenado. A cena de Adão convivendo com as feras e alimentado pelos anjos se encontra nos apócrifos Apocalipse de Moisés 16,24; Vida de Adão e Eva 4,37-39).

Doado do Espírito Santo, Jesus Cristo (messias) vence o Satanás e renova a terra, transformando o deserto em jardim (Éden; cf. Is 32,15); ele é o “novo Adão” (cf. Jo 20,15; 1Cor 15,21s; Rm 5,12-21) que recupera o paraíso e torna presente (próximo) o “reino de Deus” (v. 15). Tendo vencido Satanás no deserto, Jesus será capaz de expulsar os demônios no meio dos homens (vv. 23-28.34; 3,11s; 5,1-20; 9,14-28): amarrado o chefe dos demônios (3,22-28), os subordinados não têm mais poder. A vitória de Jesus no deserto antecipa sua vitória definitiva no final dos tempos sobre Satanás (2Ts 2,3-12; Ap 19,19s; 20,2.10)

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1225) comenta: Jesus nem iniciou sua missão e já se vê confrontado com o poder do mal. Está no deserto, como Israel no passado (cf. Ex 17,1-7). Esta cena anuncia que o caminho que Jesus vai trilhar será marcado por conflitos. Por assumir esse caminho sem recuar é que ele será crucificado. Mas Deus está com ele e o sustenta.

Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (vv. 14-15).

Como a tentação é narrada em apenas dois versículos, nossa liturgia prefere acrescentar mais dois que já ouvimos há um mês atrás (3º Domingo do Tempo Comum), mas pelo tema quaresmal da “conversão” caem muito bem aqui.

O evangelista separa o tempo e o espaço de Jesus e do Batista. Mesmo comprovada sua missão como messias no batismo e na tentação, Jesus não começou pregar, enquanto João ainda atuava na beira do rio Jordão. Será por coincidência ou por respeito? Em Jo 1, Jesus, Pedro e André já eram discípulos no âmbito de João Batista. Quando o Batista foi “preso” (lit: entregue, cf. 9,31; 10,33; 14,41), o grupo se desintegrou e voltou à sua pátria “Galileia” (cf. 1,9; Jo 1,43s). Como o menino Jesus obedeceu a seus pais (Lc 2,51), Jesus poderia ter respeitado seu mestre João (apesar de ser superior a ele, cf. Mt 3,14s; Jo 1,30), antes de começar sua própria pregação. A menção da prisão do Batista traz a expectativa de que Jesus anuncie uma mensagem de esperança e libertação. Mc resume a pregação de Jesus em poucas palavras: Jesus não anuncia a si mesmo (cf. 1,1: “evangelho de Jesus”), mas o “evangelho de Deus”, ou seja, o “Reino de Deus”.

“Anunciar o evangelho de Deus” corresponde à linguagem da missão helenista (1Ts 2,9; cf. Gl 2,2), enquanto “anunciar o Reino de Deus” à tradição da Palestina (Mt 10,7; Lc 10,9).

Jesus aparece ao arauto de Is 52,7: “Como são belos os pés dos mensageiro que anuncia a paz, do que proclama a boa nova (evangelho, cf. Is 61,1) e anuncia a salvação, do que diz a Sião: ‘O teu Deus reina’”.

No Antigo Oriente não havia estados democráticos, apenas monarquias (um rei ou imperador com todo poder em suas mãos). De maneira análoga no AT (Antigo Testamento), Deus é visto como “rei”, sentado no trono e cercado de uma corte celeste (anjos), governando toda a terra, a criação e as nações (cf. Sl 24; 145 etc.). De maneira especial, Deus é rei de Israel, seu povo escolhido. Atendendo ao pedido do povo, Deus concedeu um rei (monarca) para governar as doze tribos de Israel, mas não sem crítica e submetendo o rei à lei de Deus (cf. 1Sm 8). Ao segundo rei, Davi (cerca de 1000 a.C.), prometeu um descendente que governaria para sempre, o “messias” (rei “ungido”, 2Sm 7). Nos tempos difíceis, os profetas continuavam alimentando esta esperança por um messias salvador (Is 9,5s; 11,1-5; Jr 23,5-6 etc.). O termo e conceito próprio do “Reino de Deus” aparece pela primeira vez nas visões apocalípticas de Dn 2,44 e 7,14.

“O tempo já se completou” (v. 15); tem duas palavras gregas por tempo: chronos (duração, cf. Gl 4,4) e kairós (momento definido, certo); Mc usa o kairos que se completou, expressão apocalíptica para designar os momentos definidos por Deus (cf. Dn 7,22; Ez 7,12; 9,1; Lm 4,18; Ap 1,3; 1Pd 1,11). Deus fixou o tempo certo para a chegada de Jesus, é uma mudança de época, a grande virada do tempo, o “Reino de Deus está próximo”, mas em que sentido? É a parusia (vinda) triunfal do Filho do Homem no final dos tempos com raios, anjos, trombetas etc. (13,24-27)? Aqui ainda não, mas o Reino de Deus está presente já, a partir de agora começa se manifestar e crescer (cf. as parábolas do cap. 4) até a vida eterna (9,47).

Jesus é o “Filho do homem” (Mc 2,10.28 etc.) a quem Deus entregará este reino (cf. Dn 7,13s). Com ele, o reino “está próximo”; ele é o rei (Cristo=Messias) que representa este reino. Isto é o que a Igreja vai anunciar após a sua morte e ressurreição. Para Paulo, o centro da pregação já é o próprio Cristo, não mais o reino (cf. 1Cor 1,22-24; Gl 2,20 etc.).

Na história da Igreja, com o passar do tempo e a demora da parusia, o termo “reino de Deus” torna-se um termo da eclesiologia, ou seja, identifica-se mais e mais o reino com a Igreja, com a comunidade, onde Cristo se faz presente (aspecto presente do reino). No séc. 20, resgata-se o significado escatológico do reino (aspecto futuro). De fato, o termo Reino de Deus tem os dois significados, presente (desde já) e futuro (ainda não), e permanece um símbolo crítico contra absolutismo eclesial e mundano.

Como João Batista (v. 4), Jesus também anuncia a “conversão” (mudar de mentalidade, voltar-se a Deus), mas não com ameaças proféticas, sim com a “boa nova”. Os apóstolos continuarão esta pregação de conversão (6,12). A palavra grega “evangelho” (euaggelion) significa “boa mensagem” (cf. Is 40,9; 52,7), por ex. na ocasião de uma vitória ou do nascimento de um herdeiro, cf. Lc 2,10s). A pregação apostólica é a boa nova de Jesus Cristo (messias) morto e ressuscitado (cf. Rm 1,3s.9; 1Cor 15,2). Devemos “crer” (confiar) neste evangelho, nesta pessoa. Assim Mc entendeu a sua obra (cf. o título em 1,1), que se torna depois o protótipo de um novo gênero literário “Evangelho segundo …”, parecido à uma biografia, mas não quer passar informações neutras, sim convidar para fé: “Convertei-vos e crede no evangelho!”.

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