19 de agosto de 2017 – Sábado, 19ª semana

Leitura: Js 24,14-29

Toda esta grande narrativa desde a “saída” (em grego: êxodo) do Egito até a “conquista” (ocupação) da terra é finalizada com a conclusão da aliança em Siquém. A cidade-santuário Siquém (17,7; 20,7) era, pela sua posição central geográfica (entre os montes Ebal e Garizim, cf. 8,30-35) e seu significado histórico (Gn 12,6; 33,18-20; 1Rs 12,1.25) um lugar favorável à reunião das tribos.

O povo de Israel se forma a partir da fusão de nômades e campesinos das montanhas e o(s) grupo(s) vindo do Egito na mesma fé em Javé Deus. É uma aliança entre os que trazem uma proposta de uma nova sociedade e os descontentes com o sistema social vigente dominada pelos cananeus politeístas nas cidades da planície fértil. Essa aliança feita em nome de Javé integra todo um grupo que era marginalizado pelo sistema.

O último capítulo do livro de Josué apresenta a grande assembleia em Siquém em três partes: Na primeira, Josué apresenta as intervenções de Javé em favor de Israel desde Abraão até a entrega da terra prometida (vv. 2-13; leitura de ontem). Hoje ouvimos a segunda e a terceira parte: a assembléia se pronuncia por Javé contra os deuses estrangeiros (vv. 14-24), em seguida conclui-se a aliança e a sua lei é escrita (vv. 25-28).

Na segunda parte da aliança em Siquém, Josué dialoga com o povo com o objetivo de levá-lo a um compromisso consciente e responsável. A aceitação radical e global, que é o fundamento da aliança, se chama fé (cf. Gn 15,6; Mt 8,10; Mc 1,15; Rm 1,17), aqui é “servir ao Senhor” (quatorze vezes empregado nessa leitura!).

Agora, pois, temei ao Senhor e servi-o com um coração íntegro e sincero, e lançai fora os deuses a quem vossos pais serviram na Mesopotâmia e no Egito, e servi ao Senhor (v. 14).

No Dt e Js, temer e amar a Deus é servi-lo e guardar seus mandamentos (cf. 22,5; 23,11.14; Dt 6,2.4-6; 10,12; etc.).

Como o serviço é exclusivo (cf. Mt 6,24; Lc 16,13), o povo deve retirar do seu meio os outros deuses (e suas imagens; cf. Gn 35,2-4); existe uma tradição bem atestada da idolatria de Israel no Egito, cf. Ez 20,7-8; 23,3). Javé é ciumento, não aceita ser um deus entre outros nem o primeiro lugar da série; há de ser o único (cf. Dt 4,35.39; 6,4; Is 43,10-11; 44,6; 45,5.18.22; etc.). A arqueologia revelou que por muito tempo se adorava outros deuses em Israel; na reforma do rei Josias (640-609), que insistiu no culto unicamente a Javé, muitos desses lugares e símbolos pagãos foram destruídos (2Rs 23).

Contudo, se vos parece mal servir ao Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir: se aos deuses a quem vossos pais serviram na Mesopotâmia, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais. Quanto a mim e à minha família, nós serviremos ao Senhor” (v. 15).

“Escolhei hoje a quem quereis servir”. Se a condição de v. 14 é exigente demais, o povo terá de fazer uma nova escolha. Josué põe alguns clãs (provavelmente aqueles que não desceram ao Egito) diante de uma opção que definirá sua integração nas tribos da aliança ou sua rejeição: decidir a favor do Senhor (Yhwh, Javé Deus do êxodo e da conquista) e contra as divindades cananeias (“dos amorreus”) e mesopotâmicas.

Na Bíblia, quem costuma “escolher”, é Deus e não o homem (cf. Jo 15,16). O verbo escolher introduz aqui o tema da liberdade. A aliança deve ser aceita com um ato de liberdade responsável, não indiferente.

“Eu e minha família”, lit. minha casa. Casa significa todos que moram nesta casa, a família (em At 16,15.31, Paulo não batiza a casa, mas a família). A “casa” de José pode ser a grande família e pode abranger toda uma tribo. Segundo Nm 13,16 e 1Cr 7,20-27, Josué pertence à tribo de Efraim e por isso à “casa de José” (José teve dois filhos: Manassés e Efraim; cf. Gn 48).

E o povo respondeu, dizendo: ”Longe de nós abandonarmos o Senhor, para servir a deuses estranhos. Porque o Senhor, nosso Deus, ele mesmo, é quem nos tirou, a nós e a nossos pais, da terra do Egito, da casa da escravidão. Foi ele quem realizou esses grandes prodígios diante de nossos olhos, e nos guardou por todos os caminhos por onde peregrinamos, e no meio de todos os povos pelos quais passamos. O Senhor expulsou diante de nós todas as nações, especialmente os amorreus, que habitavam a terra em que entramos. Portanto, nós também serviremos ao Senhor, porque ele é o nosso Deus” (vv. 16-18).

Quem responde é um povo que já se comprometeu com Javé. Se o povo não obedecer ao Deus vivo, torna-se idolatra, não há meio-termo na mentalidade bíblica. O povo reitera a profissão de fé de Josué liturgicamente, num estilo deuteronômio (cf. vv. 2-13; leitura de ontem).

Então Josué disse ao povo: ”Não podeis servir ao Senhor, pois ele é um Deus santo, um Deus ciumento, que não suportará vossas transgressões e pecados (v. 19).

É uma advertência realista que supõe experiências concretas da parte do povo e a pregação profética. Deus “santo” (Lv 19,2; Is 6,3), “ciumento” (Ex 20,5; 34,14; Dt 4,24; 5,5; 6,15; Na 1,2), não tolera transgressões (Ex 23,21; Na 1,2-3).

Josué adverte para o povo não se comprometer apenas superficialmente e fazer um juramento leviano. Mas o povo insiste e depois não obedece (cf. Jz 2,11-15 e toda história deuteronomista até 2Rs 25), assim atrai a desgraça que acontece na época dos autores, as guerras contra os assírios e babilônios que resultam na perda da terra (reino do Norte em 722, reino do Sul em 587) e no exílio. A culpa não é de Deus, mas do povo que não sabia valorizar o dom da terra e seu doador divino. Assim entendemos que os textos de Js não pregam a violência na ocupação da terra, mas a conversão.

Se abandonardes o Senhor e servirdes a deuses estranhos, ele se voltará contra vós, e vos tratará mal e vos aniquilará, depois de vos ter tratado bem” (v. 20).

A sequência histórica de benção seguida de maldição tornou-se simples alternativa entre as duas consequências possíveis da atitude diante da aliança (cf. Dt 30,15-20; Lv 26).

O povo, porém, respondeu a Josué: ”Não! É ao Senhor que serviremos”. Josué então disse ao povo: ”Sois testemunhas contra vós mesmos de que escolhestes o Senhor para servi-lo”. E eles responderam: ”Sim! Somos testemunhas!” (vv. 21-22).

Josué provoca o povo para escolher, porque a aliança pressupõe liberdade (cf. Ex 20,2s). Insiste num juramento, invocando testemunhas. Os vv. 21-22 podem ser mais recentes do que v. 27, onde a testemunha contra o povo é uma pedra.

Na aliança do Moab, Moisés invocou testemunhas como “céu e a terra” e deixa como testemunha o “código da lei” (Dt 31,28s).

”Sendo assim”, disse Josué, ”tirai do meio de vós os deuses estranhos e inclinai os vossos corações para o Senhor, Deus de Israel”. O povo disse a Josué: ”Serviremos ao Senhor, nosso Deus, e seremos obedientes aos seus preceitos” (vv. 23-24).

Resume-se o apelo e a decisão. O povo é posto diante de uma escolha e de um compromisso: ou ser fiel a esse Deus e ao projeto dele, deixando os ídolos de sistemas sociais injustos; ou voltar atrás. Não há meio-termo: ou se cria uma sociedade justa e fraterna, onde todos possam gozar a vida e a liberdade, ou se volta a repetir um sistema social onde o povo é reduzido à escravidão e à morte. A atitude de tirar os ídolos (as imagens de deuses estrangeiros) e professar a fé no único Deus ( cf. Gn 35,2-4) é semelhante a liturgia batismal, renunciar ao demônio e professar a fé na Santíssima Trindade.

Naquele dia, Josué estabeleceu uma aliança com o povo, e lhes propôs preceitos e leis em Siquém. Josué escreveu estas palavras no Livro da Lei de Deus. A seguir, tomou uma grande pedra e levantou-a ali, debaixo do carvalho que havia no santuário do Senhor. Então Josué disse a todo o povo: ”Esta pedra que estás vendo servirá de testemunha contra vós, pois ela ouviu todas as palavras que o Senhor vos disse, para que depois não possais renegar o Senhor, vosso Deus” (vv. 25-27). 

Não se descreve com detalhes o ritual da conclusão da aliança que costumava incluir um sacrifício (cf. Ex 15,25; 24,3-11;). O texto da aliança é escrito para validade e deposto no santuário para sua conservação. A expressão “Livro da Lei” encontra-se em Dt 28,61; 29,20; 30,10; js 8,31.34; 23,6.26; 2Rs 22,1 etc.

Conferindo solenidade e durabilidade ao protocolo da aliança, Moisés escreveu em lousas de pedra (“tábuas da lei”) e as colocou na arca, e esta no santuário da tenda (cf. Ex 24,12; 25,16.21s; 32,15; 34,28; 40,20). Não diz aqui, que Josué escreveu na pedra (cf. e estela famosa do código de Hamurabi, rei da Babilônia em 1750 a.C.). Podemos imaginar Josué escrevendo num pergaminho (pele de animal) que foi enrolado depois e guardado num vaso no santuário, porque a forma de um livro (páginas separadas e com capa) só se inventou no século III d.C.

Em alianças internacionais invocava-se como testemunhas os deuses de ambas as partes. Aqui, o povo é testemunha, e o será a pedra erguida (cf. Ex 24,4; contra Dt 16,22). A ideia de que a pedra “ouviu” e a menção de uma árvore sagrada (“carvalho”; cf. Gn 12,6; 13,8 etc.) sugerem uma tradição mais antiga, porque eram costumes cananeus que a reforma de Josias (640-609) aboliu (2 Rs 23). Comparar com o monte de pedras testemunhas (Gn 31,48.52); o altar testemunho (Js 22,26-29); a estela testemunho (Is 19,19s).

Em seguida, Josué despediu o povo, para que fosse cada um para suas terras (v. 28).

Despedir cada um para sua terra, significa na narrativa idealizada que a missão de Josué foi cumprida, que todas as famílias têm sua casa e seu terreno onde morar. Hoje, o conflito entre israelenses e palestinos é um conflito de terra e política, mas do que um conflito religioso.

Como os povos no Oriente Médio, também nós estamos longe do ideal narrado. A maioria do povo brasileiro não tem casa própria nem terra. A concentração de terra aumentou ainda desde o tempo da ditadura. 1% de proprietários ocupam quase a metade do pais (dados de 2011: 0,91% de propriedades rurais detém 44,42% de toda área ocupada o pais). Onde foi parar a reforma agrária (cf. a partilha da terra entre as tribos em Js 13-21)?

Depois desses acontecimentos, morreu Josué, filho de Nun, servo do Senhor, com a idade de cento e dez anos (v. 29).

No princípio do livro, Moisés era o “servo do Senhor (Javé)” e Josué era só ministro de Moisés. Ao morrer, Josué é canonizando, ou seja, declarado “servo do Senhor” como homenagem à uma vida eleita e dedicada ao cumprimento de uma missão. Moisés e Aarão morreram antes de entrar na terra (cf. Dt 20 e 34). Josué e Eleazar, seus sucessores, morrem na terra prometida.

O v. 31 (omitido pela nossa liturgia) mostra que enquanto os líderes estavam vivos, o povo permaneceu fiel a Javé e ao seu projeto. Este versículo prepara o livro dos Juízes que leremos na próxima semana. Os vv. 28-31 são repetidos quase textualmente no começo da segunda introdução ao livro dos Juízes (2,6-10). Isso sublinha a unidade redacional dos dois livros.

 

Evangelho: Mt 19,13-15

No evangelho de hoje, Mt continua copiando a instrução sobre a família do evangelho de Mc, em que Jesus abençoa as crianças (Mc 10,13-16). Em 18,1-4, Mt já antecipou boa parte deste encontro (cf. o evangelho de terça-feira passada e Mc 10,15).

Levaram crianças a Jesus, para que impusesse as mãos sobre elas e fizesse uma oração (v. 13a).

Em Mc 10,13 “traziam-lhe crianças para que as tocasse”, mas que tipo de toque? Para curar (cf. Mc 1,41; 5,27-31; 6,56)? Mas há toques indecentes (pedofilia). Mt especifica este toque e acrescenta a oração (cf. Mc 10,16). No judaísmo, havia o costume de abençoar (cf. Gn 27; 48; Nm 6,22-27; Dt 33; 1Sm 23,21 etc.) nas casas pelos pais, no culto pelos sacerdotes; o rabino abençoava seus alunos; esperava-se que o messias abençoasse seu povo (cf. 1Cr 16,2). Os filhos pediam a benção dos pais e uma oração.

Os discípulos, porém, as repreendiam (v. 13b).

Mulheres (cf. 15,23; 2Rs 4,27), mendigos e deficientes (20,31p) e também crianças foram rejeitados com frequência, porque não valiam muito na antiguidade. Os filhos eram importantes como herdeiros para assumirem as tarefas depois, como adultos, mas não se valorizava muito a fase da infância.

Então Jesus disse: “Deixai as crianças, e não as proibais de virem a mim, porque delas é o Reino dos Céus” (v. 14).

Enquanto as religiões antigas têm admiração pelos anciãos, sua sabedoria e suas experiências, Jesus nos apresenta como exemplo as crianças, sua humildade, sua confiança filial sem preconceitos (já em 18,2-4.10).

E depois de impor as mãos sobre elas, Jesus partiu dali (v. 15).

Mt e Lc resumem mais e omitem uns detalhes que Mc descreveu: a indignação de Jesus com os discípulos antes, e seu abraço às crianças depois (cf. Mc 10,14.16). Em Mt só consta que Jesus fez o foi pedido: “impor as mãos” (especificando o gesto da benção de Mc 14,16) antes de “partir dali” e encontrar-se em seguida com o homem rico (cf. evangelho de segunda-feira próxima).

As crianças fazem parte da família judia e com ela da comunidade. Josué leu a lei de Moisés a toda “assembleia de Israel, inclusive para mulheres e crianças” (Js 8,35). Em Ne 8,2s, Esdras leu o livro da lei “para homens, mulheres e para todos os que tinham o uso da razão” (geralmente crianças na idade escolar, critério para começar a catequese da Eucaristia). Entre as igrejas, a Católica e a Ortodoxa e algumas igrejas evangélicas históricas (Luterana, Anglicana) batizam crianças, outras (Batista, Pentecostais, etc.) só batizam adultos ou adolescentes (geralmente a partir de 12 anos).

O batismo de crianças baseia-se na prática do apóstolo Paulo que batizava famílias inteiras (cf. At 16,15.33), tornando supérfluo a circuncisão dos meninos (cf. Gn 17; At 15). O batismo de crianças foi considerado tal importante para salvação que St.º Agostinho criava a doutrina do “limbo”, ou seja, um espaço próprio onde crianças não batizadas deveriam ficar após a morte, porque o céu seria somente para os batizados, sob alegação de Jo 3,5: “Se alguém não nasce da água e do Espírito, não entrará no Reino de Deus”. Mas Jesus falou isso a um adulto que podia escolher (Nicodemos já era velho; cf. Jo 3). Apenas o “pecado original” (teorizado por Agostinho) pesaria contra as crianças inocentes, mas não batizadas (cf. a responsabilidade individual em Ez 18, leitura de hoje no ano par).

O Papa Bento XVI aboliu recentemente esta doutrina do limbo que excluiu crianças inocentes do reino de Deus. No evangelho de hoje, Jesus declara as crianças (batizadas ou não) como exemplos para entrar no reino e critica aqueles que as impedem a vir a Ele que representa o reino. Podemos concluir que Jesus quer que crianças não batizadas estejam também com Ele no céu, mas critica aqueles que “impedem” (ou enrolam!) o batismo (cf. At 8,36; 10,47; 11,17).

O site da CNBB comenta: Muitas vezes, pelo fato de procurarmos viver de forma coerente os valores do Evangelho e percebermos os erros e os problemas que existem no mundo de hoje por parte de muitas outras pessoas que não tiveram a oportunidade de conhecer Jesus como nós o conhecemos, corremos o risco de fazer exatamente o contrário daquilo que Jesus exige de nós. Pode acontecer que nos coloquemos como intermediários entre Jesus e as pessoas não para aproximá-las dele, como é a sua vontade, mas para impedir que se aproximem dele por não serem dignas, negando a elas a oportunidade da graça da conversão e da vida nova em Cristo.

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