19 de fevereiro de 2018 – Segunda-feira, Quaresma 1ª semana

Leitura: Lv 19,1-2.11-18

O texto dessa leitura é tirado de uma coleção de diversas leis e prescrições juntadas sobre o lema: “Sede santos, porque eu, o Senhor é santo” (v. 2).

Este livro de Levítico (Lv) trata de sacrifícios e rituais, leis da pureza e tabus, mas apresenta também normas para conduta e ética social. “Levítico” provém do nome Levi, a tribo de Israel que foi escolhida para exercer a função sacerdotal (tribo de Moisés e Aarão, primeiro sumo sacerdote, cf. Ex 2,1-10; 6,16-20; 28,1; 32,26; Nm 8,15s; Dt 33,8).

Nossa leitura faz parte da “lei da santidade” (17,1-26,46), em que partes de códigos sacerdotais pré-exílicos são relidos e ampliados no pós-exílio. O temor de Javé (19,14.32; 25,17.36.43), como reverência à santidade de Deus (19,2; 20,26; 21,8; 22,32), é entendido pelos sacerdotes como pureza cultual e étnica (cf. Ez 20,41; 36,23.38; 37,28; 39,27) e agora exigido de todo povo (cf. 11,45-45; Ex 19,6). O cap. 19 é uma releitura baseada nos 10 mandamentos, a prática do amor solidário e as demandas proféticas (vv. 9-18.32-36) são integradas e subordinadas à lei do puro e impuro.

O Senhor falou a Moisés, dizendo: ”Fala a toda a comunidade dos filhos de Israel, e dize-lhes: Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (vv. 1-2).

Em Lv, só na ocasião da consagração dos sacerdotes (8,3-5) e aqui, Moisés recebe a ordem do Senhor de falar diretamente a “toda comunidade dos filhos de Israel” (v. 1). A atitude moral do povo é tal importante para sua comunhão com Deus quanto à mediação do sacerdócio.

Fundamento na ordem humana é a santidade de Deus. Um exemplo atual: O estado moderno é laico e tem dificuldade de fundamentar seus próprios princípios, p. ex.: sem Deus, em que se fundamenta a liberdade e a igualdade dos seres humanos? Baseando-se na ciência biológica da época, o nazismo declarou a superioridade da raça branca e alemã e considerava os judeus como praga que deveria ser extinta. Esta visão deturpada resultou na Segunda Guerra Mundial e no extermínio (“holocausto”) de seis milhões de judeus nos campos de concentração nazistas. Mas se existe Deus, que é Pai e Criador, todos os seres humanos têm a mesma dignidade de filhos e filhas e há de reinar fraternidade entre eles.

O homem em suas relações com os semelhantes se abre à transcendência última de Deus, e sua conduta responsável e social está fundamentada na santidade de Deus.

Não furteis, não digais mentiras, nem vos enganeis uns aos outros. Não jureis falso por meu nome, profanando o nome do Senhor teu Deus. Eu sou o Senhor (vv. 11-12).

A fórmula repetida “Eu sou o Senhor” (vv. 3.4.10.12.14.16.18) torna consciente a orientação transcendente da conduta. Várias prescrições deste capítulo têm vínculos com o decálogo (“dez palavras”, ou seja, dez mandamentos; cf. vv. 3-4.11-13.30; Ex 20; Dt 5) e defendem o pobre e o fraco (vv. 9-10.14).

Nossa leitura saltou uns versículos (vv. 3-10) e apresenta uma série compacta de preceitos para com o próximo. Os vv. 11-15 contêm nove proibições (na tradução “não” ou “nem”) e concluem com o mandamento positivo (“temerás teu Deus”); em vv. 16-18 estão outras novas proibições que também terminam com um mandamento positivo (“amarás teu próximo”); cada uma das duas partes tem a assinatura “Eu sou o Senhor” no meio e no final.

A série inicia aqui com delitos contra o patrimônio (v. 11 “furtar”, cf. Dt 5,19; “defraudar”, cf. Lv 5,21), seguido pelo juramento falso que faz geralmente em prejuízo do próximo (vv. 12.16; cf. o caso famoso de Nabot em 1Rs 21).

Não explores o teu próximo nem pratiques extorsão contra ele. Não retenhas contigo a diária do assalariado até o dia seguinte. Não amaldiçoes o surdo, nem ponhas tropeço diante do cego, mas temerás o teu Deus. Eu sou o Senhor (vv. 13-14).

Em v. 13, proíbe-se a exploração da mão de obra (cf. Dt 24,14; Jr 22,13; Ml 3,5). O salário era pago no fim da jornada e não devia atrasar, porque os operários viviam do trabalho diário.

Em v. 14, visa-se a proteção dos deficientes contra maldades; um surto não pode responder a maldições. Sem o respeito para com o próximo, em particular com o pobre (imigrante, vv. 10.33-34; assalariado, v. 13; deficiente físico, v. 14; idoso, v. 32) é a própria coesão da comunidade que está ameaçada.

Não cometas injustiças no exercício da justiça; não favoreças o pobre nem prestigieis o poderoso. Julga teu próximo conforme a justiça. Não sejas um maldizente entre o teu povo. Não conspires, caluniando-o, contra a vida do teu próximo. Eu sou o Senhor (vv. 15-16).

A “justiça” deve ser imparcial (cf. v. 15; cf. Ex 23,1-3.6-8; Dt 1,16; Sl 82,2; Pr 24,23) e favorecer nem o rico nem o pobre (na pratica, o rico tem muito mais recursos para litigar). A justiça de Deus, porém, vai mais além das exigências da nossa justiça cívica e social, é conformidade com a vontade de Deus. Suas exigências de perfeição na vida cotidiana, nas relações com Deus e com os homens, serão cada vez mais precisas e íntimas, e Jesus as aprofundará ainda mais (cf. Mt 3,15; 5,17.20; Rm 1,17 etc.).

Não tenhas no coração ódio contra teu irmão. Repreende o teu próximo, para não te tornares culpado de pecado por causa dele. Não procures vingança, nem guardes rancor aos teus compatriotas. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor (vv. 17-18).

Aqui em v. 17, se fala do “coração” em que não deveria ter “ódio contra teu irmão”. A justiça civil ou penal não pode sancionar sentimentos como o ódio ou a cobiça, mas estes podem levar a delitos mais graves (cf. Mt 5,21-26). Deve-se repreender o próximo (cf. Ez 3,16-21; Mt 18.15-20p; Tg 5,19s), mas não por ressentimento: “Não procures vingança nem guardes rancor aos teus compatriotas” (v. 18a; Mt 5,38-41; 18,21-35).

A série destes preceitos culmina no mandamento “Amarás teu próximo como a si mesmo”. Este último, Jesus declarou como o maior mandamento combinando-o com Dt 6,4s (Mc 12,28-42p); também para Rabi Aquibá (50-135 d.C.) este é um princípio fundamental da lei. No AT, se entende por “próximo” o compatriota, o irmão na fé ou o imigrante. Só com Jesus, este amor torna-se universal (cf. Lc 10,29-37: parábola do bom samaritano).

 

Evangelho: Mt 25,31-46

A pergunta “o que será no fim do mundo ou no fim da nossa vida?” sempre preocupava a humanidade. Teremos que prestar conta sobre a nossa conduta ou fará nenhuma diferença, a maneira como tratamos os outros? Haverá um julgamento próprio para os cristãos? Ou Deus tratará todo mundo igual?

No final do discurso sobre a parusia (volta de Cristo no fim do mundo, caps. 24-25), o evangelho de Mt responde a estas perguntas com uma parábola de Jesus, ou melhor, com um discurso imaginado aos discípulos, uma descrição profética do juízo final. Aliás, é a única cena dos quatro evangelhos que mostra qual será o conteúdo do juízo final. Como antecedentes literários pode-se comparar Jr 8,32-35; Dt 27,12-18,14; Is 24,21-22; 65,13-15; Dn 12,2; Sb 4,20; 5,16.

(Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:) Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda (vv. 31-33).

O “Filho do homem” (cf. Dn 7,13s) chegará “em sua glória” (16,27; 19,28); é Jesus na sua vinda (parusia) no fim do mundo (24,30-31.37.39.44). Nas parábolas do casamento, era o “filho do rei” (22,2; cf. 25,1-12), agora é o “Rei” (vv. 34 etc.) a quem o Deus Pai confiou o julgamento. Na monarquia absoluta, o rei era também juiz supremo (cf. Sl 72,1); não existia ainda a democracia atual com sua divisão dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário).

Acompanhado de sua corte “de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso” (v. 31; cf. Dn 7,9-10; Dt 33,2; Zc 14,5; Jd 14-15) para um grande julgamento de “todos os povos da terra” (v. 32). Este juízo final, segundo Jl 4,11-12,16, acontecerá no vale de Josafá perto de Jerusalém.

“Assim como um pastor” (imagem para o rei, líderes políticos ou religiosos, cf. Ez 34 e Davi em 1Sm 16-17) “separa” (cf. Lv 20,25; Is 56,3) “as ovelhas dos cabritos” (cf. Ez 34,17; Ex 12,5). “As ovelhas à sua direita” (lado preferido, cf. 26,64; Sl 110,1; Dt 27,12-13); está preferência é transcultural: a mão direita é considerada a mais hábil, pura e honesta; com ela se come, jura, saúda, escreve e fecha contratos, enquanto com a mão esquerda se fazia as coisas menos nobres. Na linguagem da política atual, porém, os termos “esquerda” e “direita” têm outra origem: na assembleia dos deputados franceses no século XVII, ao lado direito sentavam os conservadores e ao lado esquerdo, os que queriam mudanças.

Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: “Vinde benditos de meu Pai! Recebei como herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar” (vv. 34-36).

O critério da separação não são coisas excepcionais (cf. 7,22), mas as seis “obras da misericórdia” que se pode ilustrar com textos do AT e do NT (por ex. Is 58,6s; Pr 19,17; Jó 22,6-7; 31,31s; Eclo 7,32-35; Mt 5,7; 9,13; 12,7; 23,23): ajudar os famintos e os sedentos (10,42; Lc 3,11; 14,12-14; At 6,1-3; Rm 12,20; 1 Cor 11,33; cf. Jo 4,7; Sl 42,3), exercer a hospitalidade (10,40-42; Gn 18,2ss; Lv 19,34; Rm 12,13; Cl 4,10; 1Pd 4,9; Hb 13,2; cf. Mt 10,14; Lc 9,53s), vestir pessoas necessitadas (Tb 4,16; Ez 18,16; Lc 3,11; 15,22; At 9,36.39; Tg 2,15-16), cuidar dos doentes (Lc 10,33-35; Mc 6,13; Tg 5,14).

Divergindo do judaísmo, Jesus não fala aqui da assistência à viúva nem da educação dos órfãos (talvez para não confundir o sentido amplo de “menores” em v. 40; cf. 18,1-5; Mc 9,36s; Tg 1,27), nem do sepultamento dos mortos (cf. 26,10; Tb 1,17.19; Mc 15,42-47; At 8,2), mas menciona, em acréscimo, a visita aos prisioneiros (cf. 2Tm 1,16-18; Hb 13,3).

Na tradição cristã das obras da misericórdia, Lactâncio (250-320) acrescentou a sétima: “enterrar os mortos” (cf. Tb 1,17–20), St.º Agostinho (354-431) introduziu o paralelo entre as “obras espirituais” e as corporais; S. Tomás de Aquino (1225-1274) sistematizou-as. As sete obras espirituais da misericórdia (CIC 2447) são: aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos. Na arte cristã, as sete obras da misericórdia foram apresentadas contrastando os sete pecados capitais (orgulho, gula, avareza, luxúria, ira, inveja e preguiça).

O teólogo W. Kasper atualizou as obras da misericórdia (físicas, psíquicas, sociais, culturais). O Papa Francisco declarou um Ano da Misericórdia (08.12.2015-20.11.2016). Como o papa enfatiza: Quando tocamos nas feridas dos pobres e doentes, tocamos nas chagas de Cristo que se fez pobre (cf. 2Cor 8,9).

Então os justos lhe perguntarão: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?” Então o Rei lhes responderá: “Em verdade eu vos digo, que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (vv. 37-40).

Jesus identifica-se com os “menores de meus irmãos” (v. 40) e com os “mais pequenos” (superlativo de menores em v. 45), que não são mais os discípulos de 10,40-42, mas todas as pessoas necessitadas.

Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos. Pois eu estava com fome e não me destes de comer; eu estava com sede e não me destes de beber; eu era estrangeiro e não me recebestes em casa; eu estava nu e não me vestistes; eu estava doente e na prisão e não fostes me visitar”. E responderão também eles: “Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou nu, doente ou preso, e não te servimos?” Então o Rei lhes responderá: “Em verdade eu vos digo, todas as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes!” Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna (vv. 41-46).

Como em Dt 27-28, a sentença é pronunciada em forma de benção e maldição: “benditos” (v. 34; cf. Sl 115,15; Is 65,23) e “malditos” (v. 41; cf. Jr 17,5; Sl 37,22). A sentença é “herdar o Reino” (v. 34; cf. 1Cor 6,9; 15,50; Gl 5,21; cf. Lc 12,82) ou o “castigo eterno” (v. 46), isto é o “fogo eterno” (v. 41; 18,8; cf. 13,40-43; Is 66,24; Dn 7,11; 12,2; Ap 20,10).

A cena nos faz compreender que muitos, mesmo sem conhecer a pessoa de Jesus, se ajustam aos valores dele, no esfera do amor ao próximo.

Então há salvação fora da igreja? O Concilio Vaticano II afirma: quem não conhece Jesus, mas segue a sua própria consciência (reconhecendo a lei natural, por ex. a Regra de Ouro em Mt 7,12) pode ser salvo, sim (cf. LG 16; cf. CIC 846-848). Então a fé não importa no juízo final? Importa, sim (cf. 10,32s), mas fé cristã significa compromisso com a pessoa concreta de Jesus, e onde está Jesus? Só no céu? Através da sua encarnação e sua cruz, ele se identifica com os seres humanos que sofrem, os pobres e necessitados, marginalizados por uma sociedade baseada na riqueza, no poder e no bem-estar egoísta.

Por isso, o julgamento será sobre a realização de uma prática de justiça em favor dos pobres, conforme a vontade do Pai (cf. 5,3; 7,21). Esta prática central da fé, desde o início apresentada por Mt como cerne da atividade de Jesus, é “cumprir toda a justiça” (3,15). A justiça de Deus é a misericórdia em Jesus. Ele será nosso juiz e espera que nós tenhamos a mesma opção preferencial pelos pobres que ele demonstrou por sua vida. “Bem-aventurados os misericordiosos, eles alcançarão misericórdia” (5,7).

O site da CNBB comenta: Jesus nos mostra no Evangelho de hoje que a verdadeira religião não é aquela que é marcada por ritualismos e cumprimento de preceitos meramente espirituais, afinal de contas ele não nos perguntará no dia do julgamento final se nós procuramos cumprir os preceitos religiosos, mas sim se fomos capazes de viver concretamente o amor. É claro que a religiosidade tem sentido, principalmente porque é através do relacionamento com Deus que recebemos as graças que nos são necessárias para a vivência concreta do amor, mas a religiosidade sozinha, desvinculada da prática do amor, é causa de condenação e não de salvação.

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