19 de outubro de 2017 – Quinta-feira, 28ª semana

Leitura: Rm 3,21-30

Paulo nos apresenta hoje um texto capital e denso que descreve a justiça de Deus revelada na ação de Jesus Cristo. Todos são pecadores, dizia a conclusão precedente (cf. leitura de ontem). Toda humanidade está perdida no pecado; os judeus estavam sob o jugo da Lei de Moisés, e os gentios (nações pagãs) sob a escravidão do Império Romano. Agora o apóstolo aponta a solução afirmando que todos podem receber de Deus a justiça (justificação, absolvição, salvação), pela fé em Jesus como Messias (Cristo).

Em todas as religiões, as pessoas experimentam os pecados como diminuição ou ameaça de vida para si ou para outros. Por isso, num sacrifício, tentam de impor a culpa a um substituto (geralmente um animal) para aplacar a ira dos deuses e recuperar a vida para si. Os cristãos experimentaram esta vida definitiva pela morte sangrenta da cruz e ressurreição de Cristo. Foi a morte de Jesus que teve o efeito que os sacrifícios judaicos e pagãos intentavam. Assim os cristãos interpretaram a morte de Jesus como expiação dos pecados e revelação do poder salvífico e da justiça de Deus que o homem deve aceitar com fé e confiança.

Paulo apresenta a tese central da sua carta, a “justificação” pela graça de Deus e da fé do homem, que gerou tanta polêmica entre Igreja católica e a Reforma protestante por Martinho Lutero em 1517 (segundo ele, o que salva é só a fé, a graça e a Bíblia). Em 1999, no “Documento de convergência”, as duas Igrejas católica e luterana se entenderam finalmente a respeito da Justificação.

A Nova Bíblia Pastoral comenta: O argumento parte da constatação comum em toda a Escritura: só Deus é justo e capaz de tornar alguém justo (cf. Sl 143,2). Ainda que a humanidade peque, Deus permanece fiel a si mesmo, e recupera a falha humana, pois ele quer salvar a todos. Com a “justificação”, Deus eleva o ser humano, retirando-o da sua situação de pecado e conduzindo-o até as alturas da Divindade. Acontece uma espécie de embate entre a humanidade perdida e Deus em sua gratuidade. Naturalmente, isso só acontece unicamente pela graça divina através de Jesus Cristo. Ao ser humano se pede a aceitação através da fé.

Agora, sem depender do regime da Lei, a justiça de Deus se manifestou, atestada pela Lei e pelos Profetas; justiça de Deus essa, que se realiza mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os que têm a fé (vv. 21-22a)

A justiça de Deus, ou seja, o indulto outorgado de Deus, se manifestou. A fé exclui a Lei (de Moisés) como condição para se salvar, mas está atestada nos escritos (“lei e profetas” significam o AT todo; por ex. Is 7,9; 28,16).

A fé exclui o orgulho, ou seja, a auto-complacência, o alegar méritos e direitos para obter de Deus a justiça (cf. a parábola em Lc 18,9-14). “Sem (depender da) lei”: porque o Messias (Cristo) é o “fim (ou finalidade) da lei” (10,4; cf. 2Cor 3,14). Esse testemunho pode ser ler em muitos lugares, p. ex. Lv 26,44s; Dt 30,1-6; Jr 31,31-34; Ez 20,40-44.

Pois diante desta justiça não há distinção: todos pecaram e estão privados da glória de Deus e a justificação se dá gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Jesus Cristo (vv. 22b-24).

A circuncisão e a lei distinguem: a fé não distingue, ou seja, não exclui ninguém (cf. 2,11).

“Todos pecaram e estão privados da glória de Deus”. A “glória”, em hebraico kabod, é o peso da importância e responsabilidade (Gn 13,1s; Ex 17,11s), a honra (Ex 20,12; Eclo 3,11; Sl 8,6) e na esfera de Deus o esplendor e brilho da sua presença. A Bíblia de Jerusalém (p.2123) comenta: “Glória” no sentido bíblico (Ex 24,16), é a presença de Deus comunicando-se ao homem de modo mais o menos íntimo, bem por excelência dos tempos messiânicos (cf. Sl 85,10; Is 40,5, etc.).

A glória divina reside em meio ao povo, primeiro no deserto do Sinai (Ex 16,7; 24,16; 33,18.22) e na tenda de Reunião (Ex 40,34s), depois no Templo de Jerusalém (1Rs 8,11; Is 6,3–5; Ez 1,28) e se afasta por causa da infidelidade (Ez 10,18s; 11,22s). O templo, embora ainda esteja de pé quando Paulo escreve esta carta, não garante mecanicamente a presença do Senhor (cf. Jr 7 e 26; em 586 foi destruído pelos babilônios, e em 70 d.C o será definitivamente pelos romanos).

Esta glória, privilégio do povo judeu (Rm 9,4) voltaria na época messiânica (Ez 43,1-9), caracterizaria a comunidade nova, santa e purificada e atraia todas as nações que se põem a caminho (Is 60,1-3). No NT, encontramos elementos das teofanias em Lc 2,9; Ap 22,10s; em Jesus, se manifestou a glória de Deus (Jo 1,14; 1Cor 2,8); pela sua morte, Jesus redimiu o mundo levando-o a glória (Hb 2,5-10), os redimidos participam desta glória (Rm 8,17; Fl 4,19; Jo 17,22) e esperam pela sua manifestação plena que ainda não se realizou (Mc 8,38; Rm 9,22s).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2176) comenta: Paulo estende a todos os homens e aplica à pessoa e obra de Jesus Cristo tema da privação e do dom dessa glória. Jesus é o Senhor da glória (1Cor 2,8). A glória de Deus está sobre a face de Cristo (2Cor 4,6), pois ele é imagem de Deus (2Cor 4,4). Todos os homens estão privados desta glória (Rm 3,23), mas ela é comunicada a todos os crentes por Jesus Cristo. Desde agora são revestidos com ela, como que por antecipação, à medida que são transformados à imagem do Cristo (2Cor 3,18) à espera da glorificação total da parusia (Rm 8,18.21.30).

“A justificação se dá gratuitamente”, os pecadores são absolvidos “sem merecê-lo”, logo de “graça” (cf. Ex 21,2.11; Is 52,3), “em virtude da redenção realizada em Jesus Cristo”. Só em Rm, as palavras “justificar” ou “justificação” ou “justiça” aparecem mais de quarenta vezes (cf. também Gl e Fl).

Paulo a emprega em quatro sentidos: 1. Deus é justo, fiel a si mesmo e seu desígnio (1,17; 3,5.21.26; 10,3; 2Cor 5,12); 2. Esta justiça, ele exerce para com o homem num veredicto de graça que só requer a obediência da fé (1,5); 3. O ato gratuito de Deus cria no homem a vida nova, no Espírito (8,2; 1Cor 1,30) produzindo frutos para Deus (6,13-20; 7,4; Fl 4,11); 4. Na relação delicada entre justificação gratuita e juízo final em que o homem será julgado segundo as suas obras (2,5s.12.27; 14,10-12; 2Cor 5,10; cf. Tg 2,14-26), mas na primazia da fé em Deus que justifica e em Cristo morreu e intercede por todos (8,30-39; Fl 3,8-14).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2123) comenta a “redenção realizada em Jesus Cristo”: Iahweh [Javé] tinha “resgatado” Israel, libertando-o do cativeiro do Egito para fazer dele um povo que lhe pertencesse como sua herança (Dt 7,6). Anunciando a “redenção” do cativeiro da Babilônia (Is 41,14), os profetas tinham deixado entrever uma libertação mais profunda e mais universal através do perdão dos pecados (Is 44,22; cf. Sl 130,8; 49,8-9).

Esta redenção messiânica realizou-se em Cristo (1Cor 1,30; cf. Lc 1,68; 2,38). Deus Pai, através de Cristo, ou o próprio Cristo “libertou” o novo Israel da escravidão da lei (Gl 3,13; 4,5) e do pecado (Cl 1,14; Ef 1,7; Hb 9,15), adquirindo-o para si (At 20,28), tornando-o seu (Tt 2,14), comprando-o (Gl 3,13; 4,5; 1Cor 6,20; 7,23; cf. 2Pd 2,1). O preço desse resgate e desta aquisição foi o sangue de Cristo (At 20,28; Ef 1,7; Hb 9,12; 1Pd 1,18s Ap 1,5,9). Inaugurada no Calvário e já garantida pelo sinal do Espírito (Ef 1,14; 4,30), esta redenção só se completará na Parusia [volta triunfal de Cristo] (Lc 21,28), com a libertação da morte pela ressurreição dos corpos (Rm 8,23).

Deus destinou Jesus Cristo a ser, por seu próprio sangue, instrumento de expiação mediante a realidade da fé. Assim Deus mostrou sua justiça em ter deixado sem castigo os pecados cometidos outrora, no tempo de sua tolerância (vv. 25-26a).

O “instrumento de expiação” (lit. “propiciatório”, cf. Ex 25,17; cf. Hb 9,5; 1Jo 2,2; 4,10) era a placa de ouro que recobria a “arca da aliança”. No grande dia da expiação (Yom kippur; Lv 16), o propiciatório era aspergido com sangue (Lv 16,15). O sangue de Cristo cumpriu na realidade a purificação do pecado que este rito só podia significar (cf. também o “sangue da aliança” em Ex 24,8 e Mt 26,28p).

“Sem castigo os pecados cometidos outrora”; este meio-perdão, uma espécie de não imputação, só tinha sentido em vista do perdão definitivo da destruição total do pecado pela justificação do homem (outra tradução “em vista de perdoar os pecados”).

Assim ainda ele demonstra sua justiça no tempo presente, para ser ele mesmo justo, e tornar justo aquele que vive a partir da fé em Jesus (v. 26b).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2124) comenta: Este “tempo presente” é o tempo fixado por Deus no seu designo de salvação (At 1,7) para a obra redentora de Cristo (Rm 5,6; 11,30; 1Tm 2,6; Tt 1,3), que se realiza “na plenitude dos tempos” (Gl 4,4) “uma vez por todas” (Hb 7,27), e inaugura a era escatológica (cf. Mt 4,17p; 16,3p; Lc 4,13; 19,44; 21,8; Jo 7,6.8);

“Para ser ele mesmo justo”, ou seja, para Deus ser ou mostrar-se “justo”, isto é, exercer a sua justiça salvífica (cf. 1,17), justificando o homem conforme suas promessas.

Onde estaria, então, o direito de alguém se gloriar? – Foi excluído. Por qual lei? Pela lei das obras? – Absolutamente não, mas, sim, pela lei da fé (v. 27).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2123) comenta o “direito (motivo) de alguém se gloriar”: A palavra grega… exprime a atitude do homem que tira o motivo de louvor das suas próprias obras, apóia-se sobre elas e pretende conseguir sua destinação sobrenatural por suas próprias forças. Atitude censurável, porque o homem não conquista a justiça, mas a recebe com um dom. E o ato de fé, mais do que qualquer outro, exclui tal auto-suficiência, porque através dele o homem atesta explicitamente sua insuficiência radical.

“Pela lei da fé”: expressão árdua e audaz, que une fé com lei, como se dissesse: lei sim, contanto que seja a lei da fé.  Paulo opõe a lei, “escrita em tabuas” (2Cor 3,3) à fé (1,16), à lei interior “gravada no coração” (cf. Jr 31,33), “agindo pelo amor” (Gl 5,6), que é a “lei do Espírito” (8,2; cf. “a lei dos homens livres” em Tg 1,25; 2,12).

Com efeito, julgamos que o homem é justificado pela fé, sem a prática da Lei judaica (v. 28).

“Justificado pela fé, sem a prática da Lei judaica” (cf. Gl 2,16); está em forte contraste com a religiosidade da Lei de Dt 6,25: “Ficaremos justificados diante do Senhor nosso Deus, se pusermos em prática todos os mandamentos que nos ordenou”.

Acaso Deus é só dos judeus? Não é também Deus dos pagãos? Sim, é também Deus dos pagãos. Pois Deus é um só (vv. 29-30a).

A lei da fé inclui a todos enquanto a lei judaica e a circuncisão diferenciavam as pessoas. Tenha-se em conta o título corrente “Deus nosso”, que parece fazer de Javé um Deus nacional (Mq 4,5); mas como Dt 6,4 afirma que é “um só”, único (Mc 12,29), é portanto, de todos. Ninguém pode privatizar Deus, ele é único para a todas as nações, também “Deus dos pagãos”. Em v. 31 (omitido na liturgia), Paulo afirma que com isso não anula a lei, mas a confirma, porque esta, em si mesma, contém a proposta de salvação universal.

 

Evangelho: Lc 11,47-54

O segundo “ai” da sequência dirigida agora aos “mestres da lei” (vv. 45-52) critica não só as falhas desta categoria, mas pronuncia um julgamento sobre a geração descrente que não aceita o messias enviado a ela.

“Ai de vós, porque construís os túmulos dos profetas; no entanto, foram vossos pais que os mataram. Com isso, vós sois testemunhas e aprovais as obras de vossos pais, pois eles mataram os profetas e vós construís os túmulos (vv. 47-48).

O costume de erigir mausoléus ou monumentos funerários é documentado (de Raquel: Gn 35,20; de Sobna: Is 22,16; do poderoso: Jó 21,32). Este “ai” se refere à veneração aos profetas. Para este fim, os fariseus e os mestres lei construíam túmulos e sepulcros. Os túmulos de Amós e Habacuc eram lugares de romaria na época de Jesus. O que está errado nisso? Nada, se estes monumentos documentassem uma mudança de pensamento, a conversão que as gerações negaram quando ouviram as palavras dos antigos profetas. Mas a fala dos mestres da lei demonstra que são filhos dos pais que mataram os profetas. Agora vão tramar contra Jesus (v. 53s; 6,11). A veneração dos profetas é retrógrada e hipócrita quando não se aceita o chamado de Deus expresso em Jesus.

É por isso que a sabedoria de Deus afirmou: Eu lhes enviarei profetas e apóstolos, e eles matarão e perseguirão alguns deles, a fim de que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas, derramado desde a criação do mundo, desde o sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e o santuário. Sim, eu vos digo: serão pedidas contas disso a esta geração (vv. 49-51).

Agora a sabedoria personificada e preexistente fala (cf. Pr 8; 9,3) como os profetas anunciaram o julgamento sobre esta geração interpretando a história de Israel como desobediência e teimosia permanentes. Para Lc, o próprio Jesus é porta-voz da sabedoria divina (cf. Jo 1,1.14 que identifica a sabedoria/palavra de Deus com Jesus). Como as gerações anteriores, os mestres da Lei também se negam a converter e matarão de modo violenta os “profetas e apóstolos” (Mt 23,34: “profetas, sábios e escribas”, cf. Jr 18,18) que Jesus enviará a eles. Lc pode pensar nos primeiros mártires cristãos, o diácono Estêvão e o apóstolo Tiago, irmão de João (At 7; 12,2). O julgamento já começou com o envio dos profetas e apóstolos, só falta o pronunciamento da sentença. Agora serão pedidas contas do sangue derramado (2Sm 4,11; Sl 9.13; Ez 33,6.8s). Os nomes de Abel e Zacarias representam o início e o fim deste tempo descrito no AT (Gn 4,8; 2Cr 24,20s). Provavelmente terminou esta série de ais com o anúncio do julgamento contra Jerusalém (cf. Mt 12,37-39; em Lc só em 13,34s).

Ai de vós, mestres da Lei, porque tomastes a chave da ciência. Vós mesmos não entrastes, e ainda impedistes os que queriam entrar” (vv. 52).

Lc ainda anexa o último dos três ais contra os mestres da Lei. Com sua formação superior, eles têm a chave do conhecimento, podem revelar o sentido das Escrituras e assim abrir o acesso a Deus. Mas em vez disso obstruíram este caminho para si e para o povo. Sua interpretação da Lei causa o contrário do que dizem, em vez de guiar, seduzem e desviam. Em Mt 23,13 “bloqueiam o reino dos céus”, sua doutrina determina quem entra e com quais condições. Em Mt 16,19, porém, Jesus, o Filho de Deus e representante deste reino, entrega as chaves do mesmo a Simão Pedro. Este e os outros apóstolos vão enfrentar a hostilidade de representantes do judaísmo contra a pregação libertadora do evangelho do reino, documentada em vários episódios dos Atos dos Apóstolos.

Quando Jesus saiu daí, os mestres da Lei e os fariseus começaram a tratá-lo mal, e a provocá-lo sobre muitos pontos. Armavam ciladas, para pegá-lo de surpresa, por qualquer palavra que saísse de sua boca (vv. 53-54).

O final do evangelho de hoje se refere à situação inicial de v. 37s, a refeição na casa de um fariseu. Os fariseus se sentem desafiados e continuam acompanhando Jesus, porém, com a intenção de “pegá-lo”. Só querem conseguir provas para uma acusação pública. O conflito continua, a morte de Jesus é só uma questão de oportunidade.

A cultura da morte odeia tudo o que está relacionado com a vida e nega seus valores, trata mal quem age assim, provoca quem procura viver retamente, arma “ciladas para pegá-lo de surpresa”. Mas todo aquele que de fato é do Reino de Deus enfrenta todas essas dificuldades e luta pela vida, sabendo que Deus é o seu grande parceiro nesta luta e que a vida triunfará sobre o pecado e a morte.

O site da CNBB comenta: A sociedade humana é a sociedade da morte e procura destruir todas as iniciativas que promovem a verdadeira vida. Como o Reino de Deus é o Reino da Vida, ele sofre perseguições e rejeição por parte do mundo. O mundo odeia tudo o que está relacionado com a vida e nega seus valores, trata mal quem age assim, provoca quem procura viver retamente, arma ciladas para pegá-los de surpresa. Mas todo aquele que de fato é do Reino de Deus enfrenta todas essas dificuldades e luta pela vida, sabendo que Deus é o seu grande parceiro nesta luta e que a vida triunfará sobre o pecado e a morte.

 

Voltar