19 de Outubro de 2018, Sexta-feira: Milhares de pessoas se reuniram, a ponto de uns pisarem os outros. Jesus começou a falar, primeiro a seus discípulos: “Tomai cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia (v. 1).

Leitura: Ef 1,11-14

A carta aos Efésios começa com um hino de rara beleza e grande profundidade. Ontem ouvimos a maior parte, hoje só o final dele. A Nova Bíblia Pastoral (p. 1427) comenta este hino:

No original grego, trata-se de um período só, com altos conceitos para a vida cristã (Cl 1,15-20). Apresenta uma espécie de síntese da história da salvação. A terminologia é da aliança, com palavras e conteúdos do AT. Pertence ao gênero benção, também chamado “bendito”. O Pai é a fonte de tudo, o Filho é o redentor, e o Espírito é quem confirma a obra da salvação. A igreja é projetada para o ideal do Reino, como sonho de salvação para a humanidade toda. Começa por um bendito ao Pai por ter chamado os cristãos a participarem de sua santidade, no amor (vv. 3-4), e por tê-lo adotado como filhos através de Jesus (v. 5). Segue o louvor pela graça da redenção (vv. 6-8), e por ter dado a conhecer o mistério de sua vontade, que é o seu plano de amor (vv. 9-10). Acrescenta mais um louvor por ter feito o povo de Israel sua herança (vv. 11-12), e também por ter levado de Israel sua herança (vv. 11-12), e também por ter levado o evangelho da salvação às nações (v. 13). O último louvor se dirige ao Pai, pelos dons do Espírito Santo (v. 14).      

Em Cristo nós recebemos a nossa parte. Segundo o projeto daquele que conduz tudo conforme a decisão de sua vontade, nós fomos predestinados a sermos, para o louvor de sua glória, os que de antemão colocaram a sua esperança em Cristo (vv. 11-12).

Aqui começa a distinção “nós = os judeus, que “esperávamos um Messias (Cristo)” (v. 12), e “vós” = os pagãos (v. 13), introduzindo a ideia de Israel e das nações que ocupará um lugar de tanta importância nesta carta.

É a quinta bênção neste hino: a eleição (cf. v. 4) de Israel que se torna “herança” de Deus e sua testemunha na expectativa messiânica. Paulo pertence a este povo; por isso usa aqui “nós’, enquanto os destinatários desta carta eram pagãos, ou seja, gentios, não judeus.

“Em Cristo nós recebemos a nossa parte” lit.: nele também nós fomos designados pela sorte. (variação: nele também nós fomos chamados.). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2266) comenta:

À luz do AT, essa expressão pode ser compreendida de dois modos: 1: “nele também nós recebemos a nossa parte”. 2: “nele também nós fomos escolhidos como o seu quinhão”.

A primeira tradução evoca a ideia da terra prometida atribuída por Deus a Israel como parte da herança do povo eleito (Dt 3,18). Esta ideia é transportada para o NT, onde a terra prometida passa a ser o céu (cf. a herança celeste). Ela é familiar a Paulo (Rm 8,17; Gl 3,29; 4,7). Ela será explicada no v. 14 (“o adiantamento da herança”) e no v. 18…

A segunda tradução apóia-se no fato de que o próprio Israel era considerado como a parte que Deus adquire para si para que se tornasse o seu bem próprio, o seu “quinhão” (Ex 34,9).

Nele também vós ouvistes a palavra da verdade, o evangelho que vos salva. Nele, ainda, acreditastes e fostes marcados com o selo do Espírito prometido, o Espírito Santo, o que é o penhor da nossa herança para a redenção do povo que ele adquiriu, para o louvor da sua glória (vv. 13-14).

Terceira estrofe com a sexta bênção: o chamado dos gentios (nações pagãs) a partilharem da redenção antes reservada a Israel. No começo se refere aos pagãos, que, embora não esperassem um messias prometido, acolheram o evangelho como mensagem autêntica, “palavra da verdade”.

O que depois diz o Espírito vale para todos os crentes sem distinção. O Espírito Santo “prometido” concentra todas as promessas e é comunicado no batismo (At 13,26p). É um “selo” (“fostes marcados”, lit.: selados): sinal de autoridade e posse (Gn 28,18; 1Rs 21,8), garantia (Jr 32,10-14); quem o traz gravado mostra a quem pertence e quem o protege (2Cor 1,22). É “garantia” ou “penhor” (2Cor 5,5), adiantamento ou antecipação de uma entrega: de que um dia herdaremos o reino; de que, como posse divina, um dia seremos libertados (Rm 8,23).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2197) comenta: O dom do Espírito coroa a execução do desígnio divino e sua exposição em forma trinitária. Iniciado a partir de agora, de maneira misteriosa, enquanto o mundo antigo dura ainda, atingirá a plenitude quando o reino de Deus se estabelecer de maneira gloriosa e definitiva, na Parusia de Cristo (cf. Lc 24,49; Jo 1,33; 14,26).

Ser “herdeiros” ou ser herança (cf. v. 11). Ambos os sentidos se encontram no AT: Israel herda a terra (Ex 23,30; Dt 19,3; Js 14,1) e é herança de Deus (Dt 9,29; 32,9; Sl 78,71). “Redenção do povo que ele adquiriu”, lit. libertação da aquisição. Expressão ambígua, significa ou a “libertação que consistiria na aquisição” (o povo entra na posse da herança na hora da libertação final), ou a “libertação da aquisição” (que Deus fez, quando adquiriu o povo para si (cf. v. 11; 1Pd 2,9).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2197) comenta: Lit. “do povo da sua propriedade”. Essa expressão que ocorre também em Tt2,14 e 1Pd 2,9; é eco de Ex 19,5 e Dt 14,2. É a propriedade que Deus adquiriu pelo sangue de seu Filho: o povo dos eleitos. Paulo retoma aqui – depois dos termos “benção”, “santos”, “eleição”, “adoção”, “redenção”, “feitos sua herança”, “promessa” – outra noção veterotestamentária, ampliando-a e aperfeiçoando-a pela aplicação ao novo Israel, isto é, a Igreja.

Agora nós cristãos somos herdeiros (Rm 8,17.28-29), “para o louvor da sua glória” que é a meta de todo desígnio de Deus (cf. vv. 6.12).

 

Evangelho: Lc 12,1-7

Continuamos acompanhando Jesus no caminho para Jerusalém no Evangelho de Lc. No cap. 12, Lc apresenta vários ensinamentos de Jesus que se encontram dispersos em Mt. Todos eles visam a definir o testemunho que os discípulos devem prestar ao seu Mestre. O v. 1b é de Mc 8,14; o resto é de outra fonte (Q) comum com Mt 10,26-31.

Alertando contra a hipocrisia dos fariseus, Jesus apela para que ninguém tenha medo de testemunhar o compromisso com o messias dos pobres em toda e qualquer ocasião. Mesmo a morte, não deve ser temida, pois Deus é o Senhor da vida.

Milhares de pessoas se reuniram, a ponto de uns pisarem os outros. Jesus começou a falar, primeiro a seus discípulos: “Tomai cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia (v. 1).

“Milhares de pessoas se reuniram…”; mudando de cenário, Lucas faz com que a advertência seja ouvida por todo o mundo; ou seja, pela massa submissa aos fariseus, que agora escuta Jesus como novo mestre e profeta. “Começou a falar, primeiro a seus discípulos”, ou: “Começou a falar a seus discípulos: ‘Em primeiro lugar, tomai cuidado…’”. Lc começa, várias vezes, frases por: “Primeiramente” (9,61; 10,5; 17,25).

A palavra grega hipocrisia em Lc só aparece em 6,42; 12,1.56; 13,15; aqui pretende ser síntese das atitudes denunciadas no cap. anterior (11,37-54); é falsidade, consciente ou não, dissimular o interior como o exterior, inverter a escala de valores, confundir ao invés de esclarecer. Mais que um delito específico é um arbítrio, um “fermento” que penetra e corrompe toda a massa (Ex 12,15; 1Cor 5,7).

Como esta sentença visa aos fariseus, pode ser ligada à seção precedente. Mas o início do versículo introduziu uma nova cena, e a passagem seguinte convida a interpretar essa diretiva como um primeiro apelo a falar abertamente sem levar em conta a opinião das pessoas.

Não há nada de escondido, que não venha a ser revelado, e não há nada de oculto que não venha a ser conhecido. Portanto, tudo o que tiverdes dito na escuridão, será ouvido à luz do dia; e o que tiverdes pronunciado ao pé do ouvido, no quarto, será proclamado sobre os telhados (vv. 2-3).

Diante da falsidade, simulação e hipocrisia, recomenda-se a sinceridade, tendo em conta o resultado (cf. Eclo 24,21.24). É convite e advertência de que um dia serão arrancadas máscara e disfarce.

Mt 10,27 opõe a palavra do próprio Jesus, ainda em segredo, à pregação pública de seus discípulos, que terá lugar mais tarde (cf. Mt 10,5s; 28,19; cf. Mc 4,22). Lc só fala da palavra dos discípulos; ele opõe a palavra deles, sem repercussão no passado, à sua proclamação pública no futuro; assim, ele anuncia a passagem da sua atuação reservada de Pentecostes (At 2), à sua pregação ulterior. Outra data significativa na história é o Edito de Milão em 313 d.C. pelo qual César Constantino encerrou a perseguição dos cristãos no Império Romano e deu lugar a evangelização com apoio do estado.

“Será proclamado sobre os telhados”, lugar usual, no Oriente, para as conversas e a divulgação das notícias. Hoje é metáfora da evangelização pela TV e internet (antenas parabólicas etc.).

Pois bem, meus amigos, eu vos digo: não tenhais medo daqueles que matam o corpo, não podendo fazer mais do que isto. Vou mostrar-vos a quem deveis temer: temei aquele que, depois de tirar a vida, tem o poder de lançar-vos no inferno. Sim, eu vos digo, a este temei (vv. 4-5).

Em Lc, essa instrução dirige-se aos “meus amigos”, provavelmente aos discípulos (v. 1; Jo 15,15), e exorta à coragem de confessar publicamente Jesus. Na boca de Jesus são palavras proféticas, na pena de Lucas refletem perseguições já experimentadas (por ex. a morte de Estêvão e de Tiago e processos diversos; cf. At 7; 12,2 etc.). Uma palavra dessa nos mostra que os membros da comunidade estavam perseguidos e contavam com o perigo concreto do martírio (cf. 2Mc 6,30).

A Bíblia do Peregrino (p. 2498) comenta a primeira exortação de não temer: A frase clássica de encorajamento “não temais” tem aqui uma explicação. Ver a vocação de Jeremias: “Não tenhas medo deles, caso contrário, eu te farei ter medo deles” (Jr 1,17-18), o encargo de Isaías (Is 8,12-13), a vocação de Ezequiel: “Não tenhas medo deles… ainda que te rodeiem espinhos e te sentes sobre escorpiões” (Ez 2,6). O fogo aniquila o que a morte deixa; mata-se e depois se queima totalmente: “mataram a fera, esquartejaram-na e atiraram ao fogo” (Is 66,24; Dn 7,11). Equivale a dizer que não alcançará a vida futura (cf. Ap 19,20; 20,14-15; 21,8).

“O poder de lançar-vos no inferno”, só Deus tem esse poder, por isso Lc insiste no temor de Deus: é a ele que se deve “temer”. Lc sublinhou muitas vezes esta atitude (1,50; 18,2.4; 23,40; At 10,2.22.35).

No AT, o “temor de Deus” está relacionado ao amor a Deus (cf. Dt 6,5; 10,12.20; 13,5). O temor e o amor convergem na obediência à sua vontade (expressa na Lei, cf. 6,10; 12,50; 22,36s; Jo 14,21.23; 1Jo 4,16-18). Teologicamente, o temor a Deus está relacionado ao seu poder imenso, sua soberania. O que consola os discípulos não é a imortalidade da pessoa (alma, cf. Mt 10,28), mas a soberania de Deus, enquanto o poder dos homens está limitado apenas ao corpo visível.

Não se vendem cinco pardais por uma pequena quantia? No entanto, nenhum deles é esquecido por Deus. Até mesmo os cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Não tenhais medo! Vós valeis mais do que muitos pardais” (vv. 6-7).

Correlativo de não temer é confiar. Com dois exemplos, Jesus apresenta o poder de Deus que se manifesta na sua providência (cf. vv. 24.27p: corvos e lírios e v. 31p).

Curioso é que seja a mesma personagem (Deus) a que pode ditar sentença de condenação e a que cuida dos desvalidos (cf. Is 66,1s) como de pássaros indefesos. “Cinco pardais por uma pequena quantia”, lit. dois asses. Pardais eram as aves mais baratas no mercado, o frango dos pobres; o preço de dois pardais correspondia ao de um pão. Mt 10,29 diz dois pardais por uma asse; Lc reduz ainda mais o valor, forçando a imagem como em 5,36 e 11,12.

Para estipular o valor de um ser humano precisaria de muitos pardais. “Não tenhais medo! Vós valeis mais do que muitos pardais”. De ambos, Deus se ocupa paternalmente: um filho de Deus é mais que qualquer animal (cf. Sl 8; 36,7-10). “Nenhum deles é esquecido por Deus;” a morte do cristão não será em vão ou fortuita, terá um significado.

A Bíblia do Peregrino (p. 2498) comenta: Do paradoxo segue-se que o que se deve realmente temer é fazer-se merecedor da condenação; em outras palavras, a pessoa teme a si mesma, não os outros, cujo poder alcança só esta vida, não a “segunda morte” (Ap 21,8). O Salmo 36 mostra o cuidado de Deus por “homens e animais”, em geral e em particular; o Salmo 104 o desenvolve.

“Até mesmo os cabelos de vossa cabeça estão todos contados”. Os cabelos da cabeça são minúsculos e exemplo proverbial de algo incontável (Sl 40,13; 69,5). Tudo está nas mãos de Deus (Sl 31,6.16). Em Lc, as testemunhas de Jesus não perderão “um só fio de cabelo” (21,18; 1 Sm 14,45). Deus, o Senhor sobre o corpo e a alma, é também um Pai que ama e sustenta a comunidade na perseguição, como ela é sustentada pelo Espírito (v. 12). O poder e o amor de Deus estão juntos, influem o temor de Deus e libertam do medo diante os homens.

Poderia concluir que nada nos acontece por acaso ou sem a vontade do nosso Pai celeste. Mas isso não quer dizer que Deus queira as guerras, os assaltos, as traições e mortes violentas, etc. O sentido da frase de Jesus é consolar-nos em grandes perigos com a afirmação de que Deus é nosso Pai. Não devemos interpretar essa frase fora do seu contexto e nem insistir na especulação sobre a realidade do mundo e o mistério de Deus que ultrapassa os nossos limites (teodiceia).

O site da CNBB comenta: As autoridades religiosas do tempo de Jesus eram autoridades poderosas e opressoras, que se valiam da ocupação romana e dos privilégios obtidos por ela para oprimir o povo, de modo que o povo era duplamente oprimido: pelos romanos e pelo poder religioso instituído. A religião realizava exatamente o contrário daquilo que o próprio Deus queria. Quando Jesus fala que devemos ter cuidado com o fermento dos fariseus, ele nos diz também que devemos nos preocupar para não sermos contaminados pela hipocrisia, pela sede de poder e pela busca de privilégios pessoais, para que também nós não façamos da nossa religião um meio de opressão, mas sim subamos em cima dos telhados e denunciemos todos os falsos valores da vivência religiosa.

 

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