19 de setembro de 2016 – Segunda-feira, 25ª semana

Leitura: Pr 3,27-34

Nas próximas duas semanas, o plano litúrgico das leituras volta ao AT (Antigo Testamento), para livros sapienciais. “Sapienciais” é o nome dado a cinco livros do AT: Provérbios, Jó, Eclesiastes, Eclesiástico e Sabedoria. A esses são acrescentados dois livros poéticos: Salmos e Cântico dos Cânticos.

A Bíblia Pastoral explica o nome genérico “provérbio” (mashal) e introduz o livro dos Provérbios:

Agrupando ditos, sentenças e alguns desenvolvimentos maiores, o livro dos Provérbios é um verdadeiro resumo da sabedoria de Israel. Provérbio é uma frase curta, bem construída, que expressa uma verdade adquirida através da experiência e que se impõe pela forma breve e pela agudez das observações. Os provérbios são ensinamentos deduzidos da experiência que o povo tem da vida, e sua finalidade é instruir, esclarecendo situações de perplexidade e fornecendo orientações para a vida humana, como as setas de uma estrada (1,1-7).

Os Provérbios não foram todos escritos por um mesmo autor e não pertencem todos à mesma época. A maioria deles nasceu da experiência popular, que foi depois coletada, burilada e editada por sábios profissionais desde o tempo de Salomão (950 a.C.) até dois séculos depois do exílio (400 a.C.). Foram atribuídos ao rei Salomão por causa de sua fama de sábio (1Rs 3-5) mas, se olharmos atentamente os vários subtítulos que aparecem no livro, podemos facilmente distinguir nove coleções, provindas de tempos e mãos diferentes.

Também este livro é Palavra de Deus que transmite vida. Uma palavra que Deus comunica através das situações e acontecimentos de todo dia, que o povo capta em sua experiência, observação, reflexão e intuição, e depois expressa em sentenças simples, em geral bem mais profundas do que longos tratados sobre os diversos problemas da existência. O livro todo é um convite para valorizar não só a cultura popular, mas também, e principalmente, a percepção religiosa que o povo tem de uma Sabedoria que vem de Deus e é seu dom aos pequeninos; sabedoria que nem sempre é captada e compreendida pelos sábios e doutores (Mt 11,25).

Ouvimos hoje da primeira parte do livro que serve de introdução. É a parte mais recente, escrita provavelmente depois do exílio na Babilônia. Contém basicamente instruções de um mestre-pai/mãe (1,8) para os jovens sobre como percorrer o caminho da sabedoria. A própria Sabedoria, primeira criação de Deus (8,22-31; cf. Jo 1,1-18), comunica-se diretamente com as pessoas, apresentando a única oferta autêntica de vida. Nas dez instruções (1,8-19; 2,1-22; 3,1-12; 3,21-35; 4,1-9; 4,10-19; 4,20-27; 5,1-23; 6,20-35; 7,1-27), o ambiente familiar é fundamental para a educação e o aprendizado da sabedoria.

Meu filho (1,15; 3,1; 5,1; 6,1.20; 7,1; cf. 1,8; 2,1; 4,1; 9,32)

Nossa liturgia introduz a leitura acrescentando este título “meu filho” que se encontra em vários trechos, principalmente no início dos capítulos. O sábio instrui não tanto como mestre, mas sobretudo como pai e mãe.

O texto de hoje mostra o esforço dos mestres de sabedoria em Israel, nos tempos da reconstrução após o exílio, para unir a sabedoria com a fé em Javé. Esta fé empenha o sábio na construção de uma sociedade solidária e fraterna, de partilha, justiça e paz. Ainda que os perversos e violentos pareçam prosperar, não devem ser invejados, pois Deus está com os justos.

Não recuses um favor a quem dele necessita, se tu podes fazê-lo (v. 27).

Segundo o exemplo de Deus (Sl 84,12), “poder fazê-lo” é razão suficiente e exigência para fazer o bem; o contrário aparece em Mq 2,1. Eclo 4,1-6 é quase um comentário.

Não digas ao próximo: “Vai embora, volta amanhã, então te darei”, quando podes dar logo! (v. 28).

A Bíblia do Peregrino observa: A propósito da urgência, ver o preceito de Ex 22,25. Nós dizemos: “É melhor um ‘toma’ que dois ‘te darei’ ”; “Tarde dar e negar andam juntos”.

O “próximo” significa primitivamente o companheiro, o amigo, o comensal, em suma, a pessoa com a qual se tinha relacionamentos determinados. Mas em Pr este termo tem um sentido mais vasto: “o ouro” (cf. 6,1.39; 25,9; 27,17). É o primeiro passo para se alargar o preceito do amor (Lv 19,18), que culminará com o preceito evangélico do amor aos inimigos (Mt 5,43s).

Não trames o mal contra o próximo, quando ele vive contigo cheio de confiança (v. 29).

O pecado assume forma agressiva e premeditada, com a agravante da convivência pacífica e confiante do próximo (Mq 2,1). A sequência mostra que esse próximo é íntimo, por isso pode se traduzir também: ”contra o amigo”.

Não abras processo contra alguém sem motivo, se não te fez mal algum! (v. 30).

Este livro demonstra antipatia contra as demandas, embora justificadas (5,8; 17,14; 20,5; 24,29). Se alguém foi lesado em seus direitos, a demanda não seria injusta. O provérbio não a recomenda nem exclui, pois se concentra no injustificado (“sem motivo”).

Não invejes o homem violento, e não escolhas nenhum de seus caminhos (v. 31).

Os perversos são invejados, não por sua maldade, mas por seu êxito da vida (Sl 73,3). Daí se segue a adoção de seus métodos, nem que seja para lutar contra eles. Isso seria cair em armadilha mais grave do que ser vítima deles. O sucesso aparente dos ímpios (“violentos”, “perversos”, “malvados”, “zombadores”, “insensatos”; todos esses termos designam a mesma categoria de inimigos de Javé) foi sempre uma tentação para os israelitas (cf. 24,1.19; Sl 73), chegando a tornar-se um escândalo (Jr 12,1; Jó 21,7, etc.). Contra a inveja dos maus, cf. 23,17; 24,1; Sl 37,1 e seu contexto.

Porque o Senhor detesta o perverso, mas reserva sua amizade aos íntegros. O Senhor amaldiçoa a casa do ímpio, mas abençoa a morada dos justos. Ele zomba dos zombadores, mas concede o seu favor aos humildes (vv. 32-34).

Diante de Deus, os ímpios não prevalecerão. Para motivar o leitor, o autor remonta à aprovação divina, dividida em três duplas antitéticas: perverso/íntegro, ímpio/justo (ou culpado/honrado), zombador/humilde. Trata-se de um justo oprimido pelo injusto; é uma vítima inocente que, apesar de sofre, se mantém honrada.

“O Senhor detesta o perverso”, lit. “ser um horror (abominação) para o Senhor”. Esta expressão é própria deste livro (3,32; 11,20; 12,22; 15,8-9.26; 17.15; 20,23; 21.27) e do Dt (17,1; 22,5; 23,19; 25,16), com significação tipicamente religiosa. Os íntegros mantêm “amizade” com Deus, como Abraão (cf. Gn 18; Is 41,8; Tg 2,23), Moisés (cf. Nm 12,6-8; cf. Jo 15,14s).

“O Senhor amaldiçoa”; maldição e bênção atuam como forças autônomas (Zc 5,4; cf. Sl 37,22).

“Ele zomba dos zombadores, mas concede o seu favor aos humildes” (v. 34) foi citado por Tg 4,6 e 1Pd 5,5. A forma condicional indica o caráter correlativo dos membros: se Javé zomba dos zombadores, é para favorecer a outros (cf. Is 29,19-21; Sl 2,4; 37,13; 59,9; Sb 5,4). As condutas eram correlativas: os oprimidos o são por culpa dos opressores. Os humildes serão elevados, favorecidos diante de Deus (cf. Lc 1,51-53; 14,11p; 18,14; Mt 23,12).

Evangelho: Lc 8,16-18

Depois de copiar de Mc 4 a parábola do semeador e sua explicação, Lc continua copiando na sequência as sentenças sapienciais de Mc 4,21-25. Nessa série apreciamos o parentesco da parábola com o refrão ou provérbio. Em fórmula concisa encerram um potencial de significados: O oculto se deve comunicar, o oculto se saberá. Escutando, aprende-se a escutar; assimilando, alarga-se a capacidade; quem julga saber e possuir tudo, irá ficando sem nada.

No presente contexto, o significado tem a ver com o ensinamento anterior de Jesus: Sua palavra é semente que deve brotar e produzir frutos em terra boa (na vida dos ouvintes, cf. vv.14-20), assim seu ensinamento é uma luz que é preciso fazer brilhar (na vida das pessoas) e da qual os beneficiários são de certo modo responsáveis.

Ninguém acende uma lâmpada para cobri-la com uma vasilha ou colocá-la debaixo da cama; ao contrário, coloca-a no candeeiro, a fim de que todos os que entram, vejam a luz (v. 16).

Nossa liturgia introduz: “Naquele tempo, disse Jesus à multidão”. É verdade que Jesus começou falar a “uma numerosa multidão” (v. 4). Mas depois de contar a parábola do semeador, os discípulos perguntaram sobre o significado (v. 9). Jesus apenas “respondeu” (v. 10-15), a eles ou à multidão? Em Mc 4,10ss, a pergunta e a explicação aconteceram “quando ficaram sozinhos” separados da multidão. Em seguida, Jesus falou essa parábola minúscula, englobada na explicação para os discípulos (Mc 4,21), igualmente em Lc.

Deste contexto brota seu primeiro sentido: com a explicação de Jesus, seus discípulos foram iluminados. Não devem guardar para si o ensinamento, como um saber esotérico para iniciados, mas devem difundi-los: “farei brilhar meu ensinamento como a aurora, para que ilumine as distâncias” (cf. Eclo 24,32; 37,22-26).

Quem recebe a palavra de Jesus, não deve esconder esta luz, mas “a coloca no candeeiro” (cf. Sl 18,29; 27,1; 36,10; 119,105; Pr 6,23 etc).  Lc repetiu o v. 16 em 11,33, desta vez, sim falando às multidões (11,29). Mt aplicou o mesmo à comunidade que ouviu as bem-aventuranças e não se deve esconder, mas ser a “luz do mundo” brilhando com suas boas obras (Mt 5,14-16).

Com efeito, tudo o que está escondido deverá tornar-se manifesto; e tudo o que está em segredo deverá tornar-se conhecido e claramente manifesto (v. 17).

Também esse aforismo fica envolvido pelo contexto. O mistério do reinado e tudo o que os discípulos estão aprendendo em particular está destinado a manifestar-se. É um aviso para eles e para as futuras comunidades. Este v. 17 (cf. Jo 1,1.5; 3,19-21) encontrava-se também na fonte Q (coleção perdida, mas preservada em partes de Mt e Lc) para motivar o anúncio sem medo (12,2 ss;  Mt 10,26ss).

Portanto, prestai atenção à maneira como vós ouvis! Pois a quem tem alguma coisa, será dado ainda mais; e àquele que não tem, será tirado até mesmo o que ele pensa ter (v. 18).

O aforismo é um paradoxo, que admite explicações, mas não tolera uma mudança de formulação. Sugere o dinamismo do receber e produzir. O que “seguramos” sem produzir apodrece, “nos é tirado”. Para este aforismo, dispomos de uma frase que o situa: trata-se da arte de “como escutar”. Devemos escutar para agir: como a semente produz frutos, a palavra acolhida deve produzir boas ações de justiça, paz, misericórdia etc. (Lc pulou a frase sobre a medida que estava em Mc 4,24; já a tinha escrito em 6,37 referindo-se a maneira de julgar, como estava na fonte Q; cf. Mt 7,1).

Este v. 18 não se encontra apenas em Mc 4,25, mas também na parábola das minas ou talentos oriunda da fonte Q (Lc 19,26; Mt 25,29). Naquela parábola, Jesus não opina sobre a lógica trágica do capitalismo, que pode levar povos inteiros à ruína através da especulação financeira, mas expressa uma experiência sapiencial; cf. Pr 10,4: “A mão preguiçosa empobrece, o braço diligente enriquece”. Mt 13,12 aplica o mesmo provérbio ao conhecimento do mistério do reino dado aos discípulos (cf. Mc 4,25), que são pobres materialmente (Mt 9,19s; 10,9s; 19,21-29), mas ricos espiritualmente (Mt 5,3; cf. Lc 6,20).  Assim em Lc também, Deus não reproduz, mas inverte a ordem capitalista: os pobres herdarão o reino de Deus e os ricos saem com nada (1,52s; 6,20-26; 16,22s).

É importante a “maneira como vós ouvis”. Quem não ouve com atenção e disposição para praticar a palavra, “com coração nobre e generoso” (v. 15; cf. v. 8; 5,5; 6,47), pode perder não só uma coisa, mas sua vida eterna (cf. 9,24s; 10,25; 16,29-31; 18,18; etc.).

O site da CNBB comenta: O conhecimento da Palavra de Deus é muito importante, mas não é suficiente para que uma pessoa se torne verdadeiramente cristã. O importante é assumir os valores que estão presentes nela, de modo que a Palavra de Deus se torne vida das pessoas, e assim elas testemunhem esses valores para todos e manifestem o amor de Deus para com seus filhos e filhas. Jesus nos faz uma grave advertência no Evangelho de hoje: “Portanto, prestai atenção à maneira como vós ouvis!” Existem doutores na Palavra de Deus, mas que fazem da Palavra de Deus apenas objeto de conhecimento. É claro que o conhecimento da Palavra de Deus é importante, mas devemos ser doutores na sua vivência.

 

Voltar