20 de janeiro de 2018 – Sábado, 2ª semana

 

Leitura: 2Sm 1,1-4.11-12.19.23-27

A leitura de hoje está ligada ao conflito precedente. Davi foi perseguido por Saul novamente e não encontrou outra saída a não ser refugiar-se com seus 600 homens na terra dos maiores inimigos de Israel, os filisteus em Gat (pátria de Golias, cf. 17,4).

(Naqueles dias) Davi regressou da derrota que infligiu aos amalecitas, e esteve dois dias em Siceleg (v. 1).

Em vez da fórmula costumeira da nossa liturgia “Naqueles dias”, o texto original apresenta: “E aconteceu depois da morte de Saul” (mesma fórmula em Gn 25,11; Js 1,1, Jz 1,1; cf. 2Rs 1,1).

O rei de Gat havia acolhido Davi dando a ele uma cidade, Siceleg (27,1-6; cf. 21,11-16; Js 15,31; 19,5). A serviço dos filisteus, Davi lutava contra vários povos vizinhos (27,8-12). Quando os filisteus foram a batalha contra Israel, Davi e seus homens estavam no meio do exército deles, mas foram mandado de volta porque os príncipes desconfiaram dos hebreus (28,1-2; 29). Então Davi os deixou e retornou a Siceleg, mas encontrou a cidade saqueada pelos amalecitas. Em seguida perseguiu os amalecitas e conseguiu recuperar os despojos e reféns (cap. 30). Assim a narrativa conseguiu forjar a saída de Davi do exército filisteu antes de ter começado a batalha na qual Saul e Jônatas pereceram de maneira dramática (cap. 31, fim do livro 1Sm).

No terceiro dia, apareceu um homem, que vinha do acampamento de Saul, com as vestes rasgadas e a cabeça coberta de pó. Ao chegar perto de Davi, prostrou-se por terra e fez-lhe uma profunda reverência. Davi perguntou-lhe: “Donde vens?” Ele respondeu: “Salvei-me do acampamento de Israel”. ”Que aconteceu?”, perguntou-lhe Davi. “Conta-me tudo!” Ele respondeu: “As tropas fugiram da batalha, e muitos do povo caíram mortos. Até Saul e o seu filho Jônatas pereceram!” (vv. 2-4).

A Bíblia de Jerusalém (p. 466) comenta: Outra tradição sobre a morte de Saul. A narrativa, que é a continuação, direta de 1Sm 30, é também compósita: segundo uma forma da tradição, um homem do exército vem anunciar a morte de Saul e Jônatas; Davi e o povo ficam de luto (vv. 1-4.11-12). Segundo a outra forma, um jovem amalecita vangloriava-se de ter matado Saul e traz as insígnias reais, esperando uma recompensa; é executado por ordem de Davi (vv. 5-10.13-16).

O mensageiro chega da mesma maneira daquele que anunciou a morte dos filhos a Eli: “vinha do acampamento…, com as vestes rasgadas e a cabeça coberta de pó” (1Sm 4,12). Rasgar as vestes era um gesto de ritual de luto (cf. Gn 37,34; 1Sm 4,12; 2Sm 3,31-35; 2Rs 2,12; Jl 2,12) ou ainda de desgraça ou profunda dor (Gn 37,29; 44,13; Js 7,6; Jz 11,35; 2Rs 18,37; 1Mc 3,37; 4,39; cf. Mc 14,63p). Também cobrir a cabeça de pó é sinal de luto ou penitência (cf. Est 4,1.3; Ez 27,30; cf. Jn 3,6).

Mas este mensageiro que trouxa a notícia é uma figura ambígua: é filho de migrantes amalecitas (v. 13) que escapou do acampamento de Israel e conta a morte de Saul de modo diferente em vv. 5-10 do que foi narrado em 1Sm 31,1-7. Ele deve ter roubado do cadáver de Saul (cf. 1Sm 31,7-8) a coroa e o bracelete, as insígnias da realeza, e as entrega nas mãos de Davi. O caminho ao trono está agora livre para Davi. A narrativa quer inocentar Davi da morte trágica de Saul (cf. 3,22-39) e toda a culpa recai sobre o jovem amalecita.

Então Davi tomou suas próprias vestes e rasgou-as, e todos os que estavam com ele fizeram o mesmo. Lamentaram-se, choraram e jejuaram até à tarde, por Saul e por seu filho Jônatas, e por causa do povo do Senhor e da casa de Israel, porque haviam tombado pela espada (v. 11-12).

Davi não se alegra sobre a morte do seu adversário. Para o amalecita, Saul era o rival de Davi, e Jonatas era herdeiro de Saul; mas para Davi se trata do amigo íntimo (Jônatas) e do Ungido do Senhor (Saul) a quem mantinha lealdade apesar da perseguição sofrida (cf. caps. 24 e 26). Depois Davi demostrará luto também pelo assassinato de Abner, chefe do exército de Saul (3,22-38) e chorará pela morte do seu filho usurpador Absalão (caps. 18-19).

Aqui Davi começa rasgar suas vestes e “todos os que estavam com ele fizeram o mesmo”. E lutam por todos que tombaram: pelo rei (Saul), pelo herdeiro (Jônatas) e pelo “povo do Senhor e da casa de Israel”; a expressão “povo do Senhor” poderia entender-se em sentido restrito: “tropa, exército do Senhor”, mas este sentido não é comum.

“Choraram e jejuaram”; alude a dois ritos de luto: as lágrimas (cf. Gn 37,35; 50,1; Nm 20,29; Dt 34,8; 2Sm 3,32.34) e o jejum (cf. 1Sm 31,13; 2Sm 3,35; Dn 10,3; cf. Mc 2,19-20p).

E Davi disse: ”Tua glória, ó Israel, jaz ferida de morte sobre os teus montes. Como tombaram os fortes! (v. 19).

Os vv. 17-18 introduziram um hino (vv. 19-27) que apesar de se dirigir a “Israel”, é atribuído a Davi que era de Judá.

“Tua glória, ó Israel jaz ferida de morte sobre os teus montes”; a repetição no v. 25b, “Jônatas foi morto sobre as teus montes (tuas alturas)” sugere que a “glória (nobreza) de Israel” no espírito do poeta é precisamente Jônatas.

Há diferentes traduções do v. 19a: versão síria: “gazela” (homófono de honra, glória em hebraico) Israel”; versão grega dos setenta: “ergue uma estela, Israel, pelos que morreram”. Versão grega de Áquila: “examina… aqueles que morreram”.

O canto se chama em hebraico qina, quer dizer, elegia ou lamentação, gênero bem conhecido na literatura israelita. Os vv. 19-25 estão estruturadas de forma concêntrica. Nossa liturgia omitiu os vv. 20-22 e no apresenta só a segundo parte (vv. 23-27).

Saul e Jônatas, amados e belos, nem vida nem morte os puderam separar, mais velozes que as águias, mais fortes que os leões. Filhas de Israel, chorai sobre Saul. Ele vos vestia de púrpura suntuosa e ornava de ouro os vossos vestidos. Como tombaram os fortes em plena batalha! Jônatas foi morto sobre as tuas alturas (vv. 23-25).

A Bíblia do Peregrino (p. 551) comenta este hino de lamentação (vv. 19-25): O poema é um pranto, cuja tonalidade se ouve na espécie de estribilho com que começa. O poeta vê cenas de júbilo, e as conjura para que não sucedam, perturbando o luto… As duplas marcadas, geminadas ou em paralelismo, servem aqui para prolongar a tristeza: chuva e orvalho, arco e espada, água e leões, sangue e gordura, amados e queridos. Se as moças choram Saul, seu amigo chora Jonatas, com amor mais forte.

”Saul e Jônatas, amados e belos” lit.: amados e encantadores (v. 23a). “Ele vos vestia de púrpura suntuosa” ou: de escarlate (v. 24b; mesmo termo encontrado em Gn 38,28; Ex 25,4). Mudando levemente o texto de v. 25b, “sobre a tuas colinas pereceu” (al bemôteka halal, hebr.) repetindo o v. 19, outros traduzem: “a tua morte dilacerou-me”(bemôteka hullet), versão mais próxima da tradução grega.

Choro por ti, meu irmão Jônatas. Tu me eras tão querido; tua amizade me era mais cara que o amor das mulheres (v. 26).

No v. 26, Davi se dirige exclusivamente a Jônatas e declara seu amor por ele (cf. 1Sm 18,1; 19,1-7; 23,16-18). “Tu me eras tão querido” v. 26 lit.: tinhas para mim muito encanto.

Como tombaram os fortes, como pereceram as armas de guerra!” (v. 27).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 451s) comenta o hino todo: A intensidade de sentimento perceptível na elegia não deve fazer esquecer a arte refinada de sua composição. Os vv. 19-25 apresentam uma estrutura rigorosamente concêntrica: 25b reproduz 19a e 25a reproduz 19b quase nos mesmos termos. A dor das “filhas de Israel” (v. 24) corresponde ao regozijo das “filhas dos filisteus” (v. 20); a seção central (vv. 21-23) celebra os heróis mortos evocando suas armas, as de Saul (vv. 21b e 22b) e bem no centro, o arco de Jônatan (v. 22a), chave-de-abóbada do poema, do qual talvez tenha tirado seu título (v. 18). No exato momento em que Saul desaparece e que termina a primeira etapa da carreira de David, parece que o poeta quis focalizar a figura de Jônatan, como se a amizade do filho de Saul e de David justificasse a elevação à realeza. Pode-se comparar com 1Sm 18,4, onde a entrega das armas de Jônatan (e particularmente de seu arco) se reveste, com toda a probabilidade, de um caráter simbólico. A elegia termina com uma espécie de coda, na qual essa amizade é recordada (na qual essa amizade é recordada (v. 26) e os temas essenciais do poema são retomados (v. 27).

 

Evangelho: Mc 3,20-21

O evangelho de hoje apresenta a incompreensão dos familiares de Jesus e faz parte de uma composição que os exegetas chamam de “sanduiche”, isto é, um conjunto de duas fatias (de pão) entre os quais se põe algo diferente (queijo, presunto), ou seja, um conteúdo está no meio de duas partes correspondentes antes e depois. Encontramos esta forma de composição também em Mc 5,21-43, 6,7-33; 11,11-21; 14,1-11.

Aqui, Mc intercala uma discussão com os escribas vindos de Jerusalém, vv. 20-30, numa cena em que Jesus se defronta com sua família, vv. 20-21 e 31-35. “Os parentes de Jesus saíram” (v. 21), e só “chegaram” (v. 31) depois da acusação dos escribas de Jerusalém (vv. 22-30).

Jesus voltou para casa com os discípulos. E de novo se reuniu tanta gente que eles nem sequer podiam comer (v. 20).

Depois de cinco controvérsias com os fariseus (2,1-3,6), Jesus continuou seu caminho de cura libertação. O povo continuava o seguindo e ele escolheu os doze apóstolos (3,7-19). Estes vão “ficar com ele” (3,14), seus discípulos constituirão sua nova família (vv. 31-35). Depois da escolha dos doze numa montanha, “voltou para casa”, mas não é a casa da sua família em Nazaré.

Deve-se tratar da “casa de Simão” (1,29) em Cafarnaum, onde Jesus estava, de certa maneira “em casa” (cf. 2,1; é o sentido da expressão em 1Cor 11,34; 14,35), e a mesma casa de 3,31, onde seus familiares ficavam do lado de fora. Mc gosta de anotar a multidão em redor de Jesus, “tanta gente que eles nem sequer podiam comer” (cf. 6,31). Outras casas em 2,15 (Levi); 7,17 (no exterior); 9,28 (fora de Cafarnaum).

Quando souberam disso, os parentes de Jesus saíram para agarrá-lo, porque diziam que estava fora de si (v. 21).

As dificuldades de Jesus em levar adiante sua ação vêm agora de sua própria família: ela não compreende que ele tenha ido tão longe nos enfrentamentos e radicalidade de sua proposta.

O texto original em grego fala apenas dos “seus”, podem ser conterrâneos ou parentes. Mas eles “saíram para agarrá-lo” em v. 21, e em v. 31 “chegaram sua mãe e seus irmãos… e mandaram chamá-lo”. Então é o mesmo grupo de parentes (“irmãos” não são necessariamente irmãos de sangue, podem ser parentes quaisquer, cf. Gn 13,8: tio e sobrinho).

Mc não diz como eles “souberam disso”, apenas menciona o seu julgamento: “Está fora de si”. Havia tentativas de atenuar a dureza da expressão, por ex.: ele está em êxtase; ele os enlouqueceu; também se lê: “porque (lhes) dizia que está fora de si”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2401) comenta: São provavelmente achegados que o conheceram num estilo de vida corrente, e não conseguem integrar sua nova figura. Como se para eles fosse uma personagem nova. Procuram dominá-lo, impedir sua atividade; julgam que delira ou que não sabe conter-se e, eventualmente, temem por ele (a interpretação é duvidosa).

A palavra grega ao pé da letra é “está fora de si”, mas aqui no sentido de loucura, delírio (cf. Jo 10,20), falta de juízo, e prepara a acusação de ser possuído pelo demônio (Beelzebu, vv. 22-30p; cf. Jo 7,20; 8,48.52).

A resistência se infiltra entre seus familiares ou parentes próximos, embora seja mais incompreensão que hostilidade. Já no Antigo Testamento (AT), o profeta sofre hostilidade por parte dos seus familiares (Jr 12,6; 11,21; Zc 13,3; cf. Mc 6,4p) e em Sb 5,4 considera-se a vida do justo “uma loucura”. Todos os evangelhos relatam certa incompreensão por parte dos familiares (irmãos) e conterrâneos de Jesus (cf. Lc 4,23-30; Jo 2,4; 7,3-5), porém, Mt e Lc só copiam Mc 3,31-35 e 6,1-6 e não o evangelho de hoje. Eles têm uma visão mais positiva da família de Jesus (cf. a narrativas de infância em Mt 1-2 e Lc 1-2; cf. At 1,14).

A incompreensão a respeito do mistério (segredo) do messias é característica do evangelho de Mc. Ele mostra a incompreensão dos familiares e, com mais frequência, a dos discípulos, além da hostilidade da elite dominante. Só no final do Evangelho, na cruz e na ressurreição, se entenderá o mistério do messias.

O site da CNBB comenta: A família humana pode fazer com que toda prática de uma pessoa seja vista apenas com olhos humanos, e o resultado disso é a interpretação incorreta dos fatos que devem ser analisados à luz da fé. Os parentes de Jesus não foram capazes de ver o dedo de Deus agindo, e, por isso, achavam que Jesus estava fora de si. Mas o povo foi capaz de ver o que realmente estava acontecendo, pois os corações de todos estavam abertos ao momento presente e à ação do próprio Deus, procurando ver a vida e os ensinamentos de Jesus à luz da fé. Por isso, o povo se reunia em número cada vez maior em torno de Jesus, de modo que ele e seus discípulos nem sequer podiam comer.

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