20 de março de 2018 – Terça-feira, Quaresma 5° Semana

Leitura: Nm 21,4-9

A leitura de hoje nos apresenta a serpente de bronze, à qual Jesus se refere no evangelho. O símbolo do deus que cura (uma serpente enrolada numa vara) era frequentemente representado na Antiguidade.

A serpente era símbolo de astúcia (da tentação e do mal em Gn 3), mas também de sabedoria e poder (na coroa do faraó); na medicina, o veneno de cobras, na dosagem certa, pode servir como remédio para anestesia e contra dor. Saber os efeitos do veneno e usá-lo em dose pequena para remédios (por ex. anestesia) faz parte da medicina em nossos dias também.

O site Dicionário de Símbolos comenta: O símbolo da medicina é representado pelo Bastão de Asclépio (ou Esculápio), o qual consiste em um bastão, varinha ou haste, com uma cobra entrelaçada. Na mitologia grega antiga Asclépio é o deus da cicatrização, ou da própria medicina… Sua capacidade de curar era tão notável que ganhou a reputação de ressuscitar doentes… Isso porque Asclépio sabia dosar perfeitamente as misturas do sangue de Górgona [Górgonas são terríveis monstros que foram transformados em mulheres de cobra por deusa Athena, por ex. Medusa]. Dada a capacidade de trocar de pele, a cobra constante no símbolo representa o renascimento, bem como a fertilidade.

Na antiguidade, havia um culto à serpente, adorada como divindade protetora e curadora. Nosso relato poderia ser uma tentativa de assimilação de um culto pagão prestado a algum deus. O texto mostra que Israel assimilou esse culto (cf. 2Rs 18,4). Aqui, porém, a serpente de bronze é símbolo da proteção de Javé, que conduz o povo para a vida, entre os perigos da caminhada.

(Os filhos de Israel) partiram do monte Hor, pelo caminho que leva ao mar Vermelho, para contornarem o país de Edom. Durante a viagem o povo começou a impacientar-se, e se pôs a falar contra Deus e contra Moisés, dizendo: “Por que nos fizestes sair do Egito para morrermos no deserto? Não há pão, falta água, e já estamos com nojo desse alimento miserável” (vv. 4-5).

Os “filhos de Israel” (v. 10; cf. v. 1) eram os doze filhos (e uma filha, cf. Gn 34) de Jacó (apelidado Israel: Gn 32,29; 35,10.22b-26), que formaram as doze tribos e se tornaram um povo no Egito (Ex 1,1-7). Na reflexão religiosa de Israel, o deserto aparece como refúgio (Ex 2,15; 1Rs 17,2-6; 19; Mc 1,4.12p; Gl 1,17; Ap 12,6) e também como lugar privilegiado da prova e das reclamações, ou seja, “murmurações” (Ex 14,11; 15,24; 16,3; 17,1-7; 32; Nm 11,1-4; 12,1; 14,1-4; 16,3.14; 20,2-5; 21,5), de onde se pode sair vitorioso somente pela fé e pela esperança (cf. Sl 78; Hb 3,7-19).

Libertado da escravidão, o povo de Israel passou de pé enxuto pelo mar dos juncos, caminhava pelo deserto do Sinai e ficou esperando em Cades; não é uma cidade ou lugar preciso, mas uma região no deserto de Sin (Nm 20,1; 33,36), aqui o principal oásis do norte do Sinai, 75 km a sudeste da Bersabéia (sul de Judá). Este oásis sempre foi uma etapa das caravanas.

Na fronteira da terra de Edom, no “monte Hor”, morreu o irmão de Moisés, Aarão (Nm 20,22-27; 33,38s; Dtn 32,50). “Edom” é região vizinha de Israel, fica na região da Arabá, ao sul de Moab (Jz 17,14-18; Js15,1.21) e se estendeu até o golfo de Ácaba no mar Vermelho. Esaú, irmão mais velho de Jacó, também foi chamado com esse nome Edom (Gn 36,1). Edom recusou passagem ao povo irmão de Israel (Nm 20,14-21), por isso Israel tinha que desviar seu caminho voltando em direção ao mar Vermelho. O nome grego de Edom era Idumeia (o rei Herodes não era judeu, mas idumeio).

Esta história deve ser relacionada com as minas de cobre da Arabá, onde o metal já era explorado no século XII a.C.. Acharam-se em Meneiyeh (hoje: Timna) diversas pequenas serpentes de cobre que sem dúvida eram utilizadas, como a de Moisés, para se proteger contra as serpentes venenosas. Esta região mineira da Arabá se encontra ao caminho de Cades (Nm 13,26) a Ácaba no mar Vermelho (cf. v. 4). O termo “mar Vermelho” não se encontra na Bíblia Hebraica (lá é chamado “mar egípcia” em Is 11,15; ou “mar dos juncos” em Gn 20,1; 28,18; Ex 14,2.9. etc.), mas na tradução grega (LXX) e no NT (At 7,36, Hb 11,29).

Então o Senhor mandou contra o povo serpentes venenosas, que os mordiam; e morreu muita gente em Israel (v. 6).

“Serpentes venenosas” traduz serafim, plural de saraf = abrasador, que Is 30,6 (cf. 14,29) representa como uma serpente alada ou dragão. O nome dos anjos serafins em Is 6,2-6 vem da mesma raiz. Na sua origem pode ter-se referido a animais fantásticos, dragões de fogo. Não sabemos quanto de recordação histórica há e quanto de fantasia, no relato desta praga.

O povo foi ter com Moisés e disse: “Pecamos, falando contra o Senhor e contra ti. Roga ao Senhor que afaste de nós as serpentes”. Moisés intercedeu pelo povo (v. 7).

Moisés é o grande intercessor em favor do seu povo (no Egito em Ex 5,22s; 8,4; 9,28; 10,17; no deserto em Ex 32,11-14.30-32; Nm 11,2; 12,13; 14,13-19; 16,22; 21,7; Dt 9,25-29). Esta função (cf. Abraão em Gn 18,16-33) é lembrada em Jr 15,1; Sl 99,6; 106,23; Eclo 45,3, e prefigura a intercessão de Cristo e dos santos.

E o Senhor respondeu: “Faze uma serpente de bronze e coloca-a como sinal sobre uma haste; aquele que for mordido e olhar para ela viverá”. Moisés fez, pois, uma serpente de bronze e colocou-a como sinal sobre uma haste. Quando alguém era mordido por uma serpente, e olhava para a serpente de bronze, ficava curado (vv. 8-9).

Quanto ao remédio, a representação do causador do dano para conjurá-lo corresponde a crenças populares: ao tê-lo em imagem (ou saber o nome), o homem o controla. É uma espécie de homeopatia ou mágica (cf. o medo de pessoas nas sociedade primitivas de serem fotografadas; cf. as bonecas espetadas com agulhas no vudu). Mas o autor elimina os elementos estranhos à fé de Israel: é o próprio Senhor quem oferece a seu povo este meio de cura.

O autor faz Moisés intervir intercedendo, o Senhor dando poder ao remédio e os israelitas confessando o pecado. A serpente de bronze colocada sobre uma haste é símbolo da proteção de Javé, que conduz o povo para a vida, entre os perigos da caminhada. Ao mesmo tempo, lembra os erros cometidos e as consequências desses erros, para que a marcha se mantenha dentro do projeto libertador de Javé.

Em Sb 16,5-14 comenta-se o episódio, excluindo da imagem todo poder mágico. O Evangelho de João aplica a imagem da serpente a Jesus crucificado, sinal de salvação (Jo 3,14).

 

Evangelho: Jo 8,21-30

Continuamos ouvindo as disputas de Jesus com os “judeus” (autoridades judaicas da época) em Jerusalém. Essa seção está sob o duplo signo do “eu vou” e “eu sou” (cf. Ez 22,16). O primeiro se refere à paixão e glorificação (v. 21). Esse primeiro demonstrará o segundo (v. 28), que é o título divino (Ex 3,14; Is 43,10s.25: Javé, “Eu sou”), próprio de Jesus em Jo, duplicado nesta seção (vv. 24.28).

Essa seção tem um tom polêmico que convida a uma proposta simplificada e extrema. No Deuteronômio, Moisés propôs a oposição extrema e articulada entre “o bem e o mal, a vida e a morte, benção e maldição” (Dt 30,1.15.19). João toma o extremo pecado e a morte e deixa, subentendido e necessário, o extremo positivo. A proposta extrema transforma os interpelados em personagens típicas, que encarnam o tipo com intensidade e pureza, do qual se aproximam muitas personagens reais.

Jesus disse lhes ainda: “Eu parto e vós me procurareis, mas morrereis no vosso pecado. Para onde eu vou, vós não podeis ir.” Os judeus comentavam: “Por acaso, vai-se matar? Pois ele diz: Para onde eu vou, vós não podeis ir?” (vv. 21-22).

Jesus abre o diálogo repetindo 7,34s a aludindo à sua morte (cf. 7,1.19.25). Rejeitando Jesus, os “judeus” se perdem sem esperança; pecam contra a verdade (vv. 40.45s). É o “pecado contra o Espírito” (Mt 12,31p), a descrença em Jesus (7,34; 8,24.40,45s). Eles pronunciam outro mal-entendido (cf. 7,35) que ironicamente contém uma verdade. Suicidar-se é descrito como “ir para seu lugar” (At 1,25). Jesus se entregará voluntariamente à morte; por ela irá para o Pai, e os que não creram não poderão segui-lo.

Jesus continuou: “Vós sois daqui de baixo, eu sou do alto. Vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo. Disse-vos que morrereis nos vossos pecados, porque, se não acreditais que eu sou, morrereis nos vossos pecados” (vv. 23-24).

A fé que falta aos judeus “de baixo” é um nascimento “do alto” (de novo). Já encontramos esta oposição (dualismo) no diálogo com Nicodemos (3,13.31). No âmbito gnóstico, em que o autor escreve, falava-se de dois planos ou duas esferas. Por seus próprios meios, o homem terreno não pode passar ao plano celeste; somente a fé, acolhida como dom, permite a passagem (na heresia do gnosticismo, ao invés, é o conhecimento e não a fé que salva).

“Se não acreditais que eu sou, morrereis nos vossos pecados”. Os judeus deviam acreditar no divindade de Jesus. “Eu sou” é o nome de Deus revelado a Moisés (Ex 3,14: Javé, na tradução grega: “Eu sou aquele que sou”), e significa que o Deus de Israel é o único Deus (não precisa de nome próprio para se distinguir de outros deuses) e verdadeiro salvador, para o qual tendiam a fé e a esperança de Israel. Em forma absoluta (“Eu sou”), ocupa em João o lugar do ani Yhwh, “Eu sou (Javé)” no AT, uma formula de auto-apresentação ou reconhecimento de Deus (cf. Is; 45,18-25 que repete três vezes a fórmula; como objeto de reconhecimento é corrente em Ez). Em Jesus, Deus se faz definitivamente presente (cf. Jo 6,20; 8,28.58; 13,19 e também 18,5.8).

“Morrereis nos vossos pecados”; no v. 21, os judeus morrerão “no seu pecado” (singular), que é a descrença. Esta falta de fé em Jesus exclui do perdão dos outros pecados (cf. 1,29 “o cordeiro de tira o pecado do mundo”).

Perguntaram-lhe pois: “Quem és tu, então?” Jesus respondeu: “O que vos digo, desde o começo. Tenho muitas coisas a dizer a vosso respeito, e a julgar também. Mas aquele que me enviou é fidedigno, e o que ouvi da parte dele é o que falo para o mundo.” Eles não compreenderam que lhes estava falando do Pai (vv. 25-27).

Há diversas propostas para a enigmática frase inicial desta reposta de Jesus: “antes de tudo, o que vos digo”; “simplesmente o que vos tenho dito”; “primeiramente, por que vos falo?”; “por que vos falarei eu?”; “de início, o que vos digo” (proposta da nossa liturgia); “absolutamente que vos digo”. Alguns relacionam o “começo” com a Sabedoria, “sou o princípio” (Pr 8,22; Eclo 24,9; cf. Jo 1,1.14: o verbo divino e encarnado), mas a tradução do Vulgata, “(Eu sou) o princípio, eu que vos falo”, é, gramaticalmente, insustentável . Nossa tradução conserva a matiz temporal, que prepara o segundo “então” do v. 28: os judeus agora, têm oportunidade de conhecer Jesus por sua palavra; quando o conhecerem “elevado” (na cruz) será tarde demais.

Jesus fala apenas o que ouve do Pai (v. 26c; cf. 7,16s.28; 8,16; 12,49; 14,10). Os judeus (e o leitor) devem compreender que Jesus fala do Pai quando fala de si (cf. v. 19).

Por isso, Jesus continuou: “Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que eu sou, e que nada faço por mim mesmo, mas apenas falo aquilo que o Pai me ensinou. Aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixou sozinho, porque sempre faço o que é de seu agrado” (vv. 28-29).

A “elevação” é a mesma “ida” do v. 21, ou seja, a sua morte e ressurreição (cf. 3,13f; 6,62; 12,32-34). Aqui dá uma resposta a interrogação dos judeus (v. 25), mas condenando a sua incredulidade (cf. 19,37; Ap 1,7; Mt 26,64p; 1Cor 2,8).

No AT, a formula “sabereis que eu sou (ou: que sou Javé)” afirma o poder divino (cf. v. 24) ou anuncia uma intervenção extraordinária de Javé (Ex 10,2; Ez 6,7.10.13s etc.; cf. Is 43,10, que se aproxima espantosamente de João). Na “elevação” (morte e ressurreição) de Jesus, os ouvintes reconhecerão que em Jesus é o Divino Pai (v. 24 “Eu sou”) atuando (5,19-22 e falando (cf. 3,34; 7,16).

Nem sequer na cruz, o Pai abandona o Filho (cf. Mc 15,34p; Sl 22,20), que está cumprindo a vontade do Pai. A morte de Jesus na cruz é exaltação e não prova que Deus o tenha rejeitado como falso messias, como pensavam e tramavam os adversários.

Enquanto Jesus assim falava, muitos acreditaram nele (v. 30).

O versículo de transição (v. 30) repete a divisão de opiniões e atitudes que as palavras de Jesus provocam (cf. 2,23;7,12.31; 10,42; 11,45; 12,11.42 e os samaritanos em 4,39-41). Nos próximos vv., Jesus falará aos crentes (v. 31).

O site da CNBB comenta: Os judeus compreendem que a morte de Jesus pode estar próxima, uma vez que Jesus fala de sua partida para onde eles não poderão ir, mas levantam a hipótese de suicídio por parte de Jesus, deixando de perceber que a causa da morte de Jesus é a própria incredulidade deles, da recusa diante da revelação sobre quem de fato é Jesus, da não aceitação do fato que Jesus é o Filho de Deus, o enviado do Pai para fazer a vontade dele e viver em plena comunhão com ele. Alguns judeus creram e a semente do Reino foi lançada, mas muitos não creram, o que resultou na morte de Jesus.

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