21 de agosto de 2017 – Segunda-feira – 20ª semana

Leitura: Jz 2,11-19

Nesta semana ouvimos a leitura do livro dos Juízes, que se segue ao de Josué e abarca cerca de dois séculos da história (cerca de 1200 a 1000 a.C.). Depois da “conquista da terra” (que não se deu exatamente assim e nem foi completa, cf. Jz 1,1-2,6) e o assentamento das tribos, não havia um poder central até a instituição da monarquia (1Sm 8). Era um processo lento de ocupação e “democracia tribal”, ausência de estado (Jz 17,6; 21,25: “Nesse tempo não havia rei em Israel e cada qual fazia o que lhe parecia correto”) e cheio de dificuldades. Esta liga das tribos autônomas mantinha certos vínculos de solidariedade fundada na religião (santuários) e parentesco comuns.

O redator deuteronomista usa textos mais antigos (ex. o cântico de Débora em Jz 5; listas de funcionários e narrativas de heróis locais) e apresenta uma introdução em 2,11-19 como chave de leitura para se compreender toda história deuteronomista dos livros Josué, 1-2 Samuel e 1-2 Reis: A desgraça que desemboca finalmente na destruição de Jerusalém e no exílio na Babilônia tem sua origem no pecado de abandonar o verdadeiro Deus e seu projeto. Explicar os males assim que assolaram a vida social e religiosa de Israel será uma constante na época pós-exílica.

O esquema se repete; o primeiro redator deuteronomista do livro expõe aqui o tema que retomará para a história de cada “juiz maior” (cf. 3,7; 3,7-9.12-15; 4, 1s; 6,10; 10,6s etc.):

  1. Pecado (vv. 11-13); 2. Castigo (vv. 14-15a); 3. Conversão (vv. 15b); 4. Libertação (vv. 16.18); 5. Novo pecado (vv. 17.19)

Os filhos de Israel fizeram o que desagrada ao Senhor, servindo a deuses cananeus. Abandonaram o Senhor, o Deus de seus pais, que os havia tirado do Egito, e seguiram outros deuses dos povos que em torno deles habitavam, e os adoraram, provocando assim a ira do Senhor. Afastaram-se do Senhor, para servir a Baal e a Astarte (vv. 11-13).

O pecado é a idolatria (cf. o resumo da derrota do reino do Norte em 2Rs 17,7.12). Os israelitas “fizeram o que desagrada ao Senhor”, lit.: “o que é mau aos olhos do Senhor” (3,7.12; 4,1; 6,1; 10,6; 13,1), “servindo a deuses cananeus”; lit.: “aos Baalim”. Aqui é um termo genérico para designar os deuses da região. Cada cidade cananeia honrava o deus Baal como deus da cidade, donde o plural. Servindo a outros deuses, o povo abandona o Senhor (Javé), o “Deus de seus pais” que produz liberdade e vida, para servir aos ídolos que corrompem, produzindo um sistema social injusto.

“Baal” e a “Astarte” (v. 13) eram deuses cananeus. Baal significa o Senhor, princípio masculino, deus do sol e da tempestade, (cf. 1Rs 18: Elias contra os profetas de Baal), senhor do solo e da fertilidade cujo culto atraia os israelitas. A arqueologia e o profeta Oseias (séc. VIII a.C.) atestam o favor que gozava nessa época o deus cananeu. Astarte (ou Aserá; 3,7; 2Rs 23,4 etc.) é sua companheira e corresponde a Ishtar, deusa assíria e babilônia de amor e fecundidade; os postos sagrados foram dedicados a ela (cf. vv. 25s; Ex 34,13).

Combater as divindades cananeias, e mais, destruir seus lugares de culto, foram metas da reforma do rei Josias (640-609) inspirada pelo livro de Deuteronômio (cf. 2Rs 22-23).

Por isso acendeu-se contra Israel a ira do Senhor, que os entregou nas mãos dos salteadores que os saqueavam, e os vendeu aos inimigos que habitavam nas redondezas. E eles não puderam resistir aos seus adversários. Em tudo o que desejassem empreender, a mão do Senhor estava contra eles para sua desgraça, como lhes havia dito e jurado (vv. 14-15a).

O castigo de Deus, a “ira de Javé”, é a perda da liberdade (“os entregou … os vendeu”) e da vida. Entregar equivale inverter os fatores da guerra santa (cf. Dt 28,25.32). Vender sugere a escravidão. As iniciativas de Israel, sobretudo bélicas, fracassam. O castigo estava previsto nas maldições da aliança (Dt 28,15-46).

A sua aflição era extrema (v. 15b).

A conversão acontece por causa da miséria, sua “aflição extrema”. Falta aqui o clamor do povo, a assim a passagem do castigo para a graça (libertação) parece ser pura iniciativa de Deus.

A situação desesperada mobiliza a iniciativa de Javé. Israel, caindo na escravidão, continua sendo seu povo. Os “gemidos dos aflitos” (v. 18) equivalem a uma súplica (Ex 2,24; 6,5). “Então, os filhos de Israel clamaram ao Senhor (Javé)” (3,9.15).

Então o Senhor mandou-lhes juízes, que os livrassem das mãos dos saqueadores. Eles, porém, nem aos seus juízes quiseram ouvir, e continuavam a prostituir-se com outros deuses, adorando-os. Depressa se afastaram do caminho seguido por seus pais, que haviam obedecido aos mandamentos do Senhor; não procederam como eles. 

Sempre que o Senhor lhes mandava juízes, o Senhor estava com o juiz, e os livrava das mãos dos inimigos enquanto o juiz vivia, porque o Senhor se deixava comover pelos gemidos dos aflitos. Mas, quando o juiz morria, voltavam a cair e portavam-se pior que seus pais, seguindo outros deuses, servindo-os e adorando-os. Não desistiram de suas obras perversas nem da sua conduta obstinada (vv. 16-19).

Aqui, a sequência da libertação e do novo pecado está descrita duas vezes. A libertação desemboca imediatamente em novo pecado e castigo, denotando assim a circularidade.

A libertação (vv. 16 e 18): “O Senhor mandou-lhes juízes”. Juízes dirimem litígios, mas neste livro são também chefes carismáticos e militares, arrebatados pelo Espírito de Javé para mobilizar o povo em ocasiões de ataques externas.

O novo pecado (vv. 17 e 19): Os juízes restauram a aliança com Javé, mas de novo o povo começa a adorar (“prostituir-se”, v. 17) de novo os deuses de outros povos. O juiz, terminada a libertação, tinha de instaurar uma era de fidelidade a Javé, segundo o modelo de geração da “aliança” no deserto; mas ao contrario o povo desobedece e comete “adultério” (metáfora usual para designar o culto aos ídolos (cf. Lv 17,7; Dt 31,16; Os 1,2; Is 1,21; Ez 16,16 etc.) com deuses estranhos.

 

Evangelho: Mt 19,16-22

Mt continua copiando de Mc 10 as instruções de Jesus sobre família, crianças e bens. Hoje o Evangelho demonstra uma vocação fracassada por causa do apego aos bens materiais.

Alguém aproximou-se de Jesus e disse: “Mestre, o que devo fazer de bom para possuir a vida eterna?” (v. 16).

Este “alguém” (que “vem correndo e se ajoelhou” em Mc 10,17) se caracteriza em Mt depois como “jovem” (v. 20; enquanto em Lc 18,18 é “uma pessoa importante”). Sua pergunta é essencial: “Mestre, o que devo fazer de bom para possuir a vida eterna?” (cf. Lc 10,25). No Deuteronômio, Deus promete vida ao povo na terra prometida (cf. Dt 5,32s etc.); o jovem refere-se à vida perdurável na era definitiva. A pergunta revela que ele acredita na ressurreição (cf. Dn 12,2s; 2Mc 7,9.36) e sabe que não basta pertencer ao povo de Deus para salvar-se, mas precisa da decisão e da conduta ética do indivíduo. É a Lei que orienta para isso, mas na época de Jesus havia várias interpretações da lei que confundiam o povo. Mt muda o relato de Mc em respeito a seus leitores judeu-cristãos: cortou o gesto (ajoelhar-se) e uma palavra (um rabino não é invocado como “bom” mestre, cf. Mc 10,17) e especificou sua pergunta sobre fazer “de bom” (cf. Am 5,14s; Mq 6,8).

Jesus respondeu: “Por que tu me perguntas sobre o que é bom? Um só é o Bom. Se tu queres entrar na vida, observa os mandamentos.” O homem perguntou: “Quais mandamentos?” (vv. 17-18a).

Mt modificou também a pergunta de Jesus (Mc 10,18: “Porque me chamas de bom? Só Deus é bom”), mas também se refere a Deus, sem dizer seu nome: “Um só é o bom”; enquanto os homens são maus e precisam deixar se orientar pela vontade de Deus para serem bons (e perfeitos, cf. v. 21; 5,48). A vontade de Deus se manifestou nos mandamentos. Mas existem muitos, ao total são 613 na Torá (“Lei” de Moisés, em grego: Pentateuco, os primeiros cinco livros do AT). O jovem quer saber, quais deles servem para entrar na vida eterna, ou seja, são os mais importantes (cf. 22,36).

Jesus respondeu: “Não matarás, não cometerás adultério, não roubarás, não levantarás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, e ama teu próximo como a ti mesmo” (vv. 18-19).

Jesus cita a segunda tábua da Lei (a segunda parte dos dez Mandamentos se refere à relação com o próximo). De certo modo, a primeira tábua (os primeiros três mandamentos se referem a Deus) já estava incluída na frase anterior sobre a unicidade e bondade de Deus (cf. Dt 6,4-6). Aliás, Jesus não cita a proibição das imagens no primeiro mandamento, nem o segundo mandamento sobre o nome de Deus, nem o terceiro sobre o sábado; os cristãos vão mudar parte disso. Não citando os três primeiros, deu margem para a Igreja depois modificar o decálogo (10 mandamentos): tirando a proibição das imagens e trocando o sábado pelo domingo, ficando como primeiro mandamento, “amar a Deus sobre todas as coisas” (cf. 22,37; Dt 6,5); é assim que a catequese hoje ensina A sequência dos mandamentos citados (Ex 20,12-16; Dt 5,16-20) é diferente (já em Mc): Jesus cita o 5º, 6º, 7º e 8º mandamento, mas o 4º no final (vv. 19; cf. 15,4-6), Mt substituiu “não prejudicarás ninguém” de Mc 10,19 pelo amor ao próximo (Lv 19,18; cf. Mt 5,43; 22,39p; Rm 13,9; Gl 5,14). Este acréscimo indica que se trata de um resumo da lei e dos profetas (cf. 22,39s; 7,12), já que a segunda tábua do decálogo se refere aos deveres para com o próximo (sobre a exegese do decálogo, cf. o comentário de 6ª feira da 16ª semana).

O jovem disse a Jesus: “Tenho observado todas essas coisas. O que ainda me falta?” (v. 20).

O “jovem”, como tal apresentado por Mt (em Mc, o homem disse: “Tenho observado… desde minha juventude”), parece subestimar-se; pelo menos a respeito do amor ao próximo, é difícil imaginar um rico (v. 22) que tem “observado tudo” (cf. 25,31-46). Ele parece sentir isso, por que ele mesmo pergunta o que ainda falta.

Jesus respondeu: “Se tu queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me” (v. 21).

Mt quer motivar o jovem para seguir Jesus com generosidade. Para ser “perfeito”, Jesus dá um conselho: dar os bens aos pobres e segui-lo. A perfeição é mais do que pura observância dos dez mandamentos (cf. 5,48), é a “justiça maior” do que aquela dos fariseus e doutores da lei (5,20): não mero cumprimento, mas seguimento (cf. as bem-aventuranças no início do sermão da montanha, enquanto Moisés no monte Sinai apresentava só a lei que começa com o decálogo em Ex 20; Dt 5).

O jovem tem cumprido todos os mandamentos, exceto o primeiro, de amar a Deus de todo coração (sobre todas as coisas) e amar o próximo como a si mesmo (22,38s). No judaísmo surgiu a ideia de que esmolas e boas obras serão recompensadas no céu (cf. Mt 6,2-4; 6,9-21): um “tesouro no céu” (6,20; cf. 13,40.52)

Quando ouviu isso, o jovem foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico (v. 22).

A vocação e a perfeição do discípulo dependem de sua situação concreta. Aqui, a recomendação de Jesus de dar os bens aos pobres representa a suma da lei (amar o próximo) para este jovem. Mas ele ama demais a si mesmo e o mundo; apegado aos bens, sai triste, como eram também os discípulos depois do anúncio da paixão (17,23).

O jovem rico no evangelho fracassou na vocação, mas o texto inspirou Santo Antão e São Francisco (e outros santos e santas) a venderem seus bens e levarem uma vida simples. A exigência de Jesus é vista como um “conselho” para alguns, não como mandamento para todos (cf. 1 Cor 7,10-25); assim se vive os três conselhos, “pobreza, castidade, obediência”, nas congregações religiosas. Mas a intenção de Mt não era de formar duas classes de cristãos, mas de priorizar o seguimento a Jesus e lembrar a todos das suas obrigações sociais e da opção preferencial pelos pobres de Jesus e de toda igreja (cf. Mt 5,3; 25,31-46; Lc 4,18; 6,20-25; 16,19-31; …).

O site da CNBB comenta: Deus nos ama com amor eterno e, por isso, quer relacionar-se conosco. A partir disso, devemos perceber qual é o verdadeiro sentido da religião. O que caracteriza o verdadeiro cristão não é a mera observância dos mandamentos, mas a busca da perfeição que está no seguimento de Jesus, portanto no relacionamento com ele. Porém, existem valores deste mundo que se tornam obstáculo para este relacionamento, como é o caso dos bens materiais, que impediram o jovem de buscar livremente a vida eterna e a perfeição, através da caridade e do seguimento de Jesus, embora observasse todos os mandamentos.

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