21 de outubro de 2017 – Sábado, 28ª semana

 

Leitura: Rm 4,13.16-18

Continuamos o capítulo 4 de Rm no qual Paulo apresenta o exemplo de Abraão cuja fé foi “creditada como justiça” (Gn 15,6 citado por Rm 4,3.9.22) já antes da Lei e da obras (ex. circuncisão em Gn 17).

Não foi por causa da Lei, mas por causa da justiça que vem da fé, que Deus prometeu o mundo como herança a Abraão ou à sua descendência (v. 13).

O tema da paternidade (vv. 1.12.16-18) se prolonga no da “herança”, com sentimento polivalente: o herdeiro de Abraão (Gn 15,2-6; 21,10) e o próprio Abraão como herdeiro. Segundo a tradição rabínica, ele é herdeiro da terra de todas as famílias do mundo (cf. Gn 12,1-3.7).

Para Paulo, os papéis da promessa, da fé e da Lei são bem discriminados. A herança é recebida pela fé, fundada na promessa divina (Gn 12; 15); a Lei só vem mais tarde (a circuncisão em Gn 17 e a lei de Moisés em Ex a Dt; cf. Gl 3,17). “Assim são salvaguardas a gratuidade do dom e a transcendência do doador” (Lyonnet).

É em virtude da fé que alguém se torna herdeiro. Logo, a condição de herdeiro é uma graça, um dom gratuito, e a promessa de Deus continua valendo para toda a descendência de Abraão, tanto para a descendência que se apega à Lei, quanto para a que se apoia somente na fé de Abraão, que é o pai de todos nós (v. 16).

A Abraão sucedem seus herdeiros ou descendentes na herança ou posse da terra prometida (Gn 12,7; 22,17). A Bíblia do Peregrino (p. 2712) comenta: Ora, se fossem herdeiros legais, teriam direito à herança, sem depender de promessas. Mas, passar ao terreno da legalidade é perigoso, fatal, porque legalmente se provarão transgressões que invalidam os direitos (cf. v. 14s). Delito supõe lei: transgressão supõe fronteiras ou limite.

Os judeus davam o título “nosso pai” a Abraão. Paulo insiste que Abraão tornou-se “pai de todos nós”, daqueles que creem sem serem circuncidados (pagãos que creem em Cristo) e dos circuncisos (judeus) que seguem a trilha de fé que teve Abraão quando ainda incircunciso (sua circuncisão em Gn 17 vem depois de Gn 15,6; cf. Rm 4,9-12).

Pois está escrito: “Eu fiz de ti pai de muitos povos”. Ele é pai diante de Deus, porque creu em Deus que vivifica os mortos e faz existir o que antes não existia (v. 17).

Antes da circuncisão, Deus mudou o nome Abrão para Abraão “pai de multidão” (Gn 17,5), uma alusão ao poder criador de Deus, considerado não somente na criação, mas também na obra da salvação inaugurada em Abraão e Sara (vv. 18-22): da velhice do homem e da esterilidade da mulher fez nascer um descendente, Isaac. Coisa impossível (cf. Gn 18,14; Lc 1,37), que só um Deus onipotente pode realizar. “Deus que vivifica os mortos e faz existir o que antes não existia”; como no dia da criação Deus criou as coisas do nada através da sua palavra “Fiat” (latim: “haja, faça-se”; cf. Gn 1). Os atributos mencionados, que são os mais característicos da onipotência divina, preparam a alusão à ressurreição de Cristo do v. 24.

Contra toda a humana esperança, ele firmou-se na esperança e na fé. Assim, tornou-se pai de muitos povos, conforme lhe fora dito: “Assim será a tua posteridade” (v. 18).

Deus mostrou as estrelas do céu noturno a Abraão dizendo “Assim será a tua posteridade” (Gm 15,5). Da fé, pela confiança, chegamos à esperança (cf. Hb 11,1.8-12).

A Bíblia do Peregrino (p. 2712) comenta: Abraão creu em três coisas crendo numa pessoa: que Deus, perdoando, pode torna justo um culpado, uma pessoa privada de toda justiça própria sem obra (cf. Jó 14,4 em termos de pureza e impureza); que pode torna fecundos dois anciãos já estéreis; que dá vida aos mortos (Dt 32,39) como deu existência do nada (Gn 1). Os termos “criar” e “perdoar” se cruzam no Sl 51,12 e em 2Cor 5,17-21. Isso equivale a associar a morte com o não-ser e a ressurreição com a criação.

De fato, o poder onipotente de Deus se estende por toda a história: desde a criação “do nada”, passa pela vocação de Abraão até a ressurreição do Cristo crucificado, e de lá pela conversão de Paulo e pregação da Igreja produz a fé em nós e muitas outras pessoas, e chega até o fim dos tempos com a ressurreição dos mortos no último dia.

A leitura da carta aos Rm inspirou Martinho Lutero para protestar contra a Igreja Católica. De fato, havia abusos para serem corrigidos (ex. a venda de indulgências) como ainda hoje existem católicos que entendem a fé por acumular missas, romarias e obras devotas como se fosse uma poupança no céu para depois da morte receber com juros. Lutero foi radical demais, sua doutrina “só a Escritura (Bíblia), só a fé, só a graça” provocou mal-entendimentos (como tirar os sacramentos, a hierarquia, a tradição), mas está no centro da fé cristã. Em 1999, a Igreja Católica e a Igreja Evangélica Luterana assinaram um Documento de Convergência no qual ambos afirmam a primazia da fé, mas asseguram que a fé deve ser praticada em obras de caridade para não ser morta (cf. Tg 2,14-26).

 

Evangelho: Lc 12,8-12

No contexto de evangelização destemida, o discípulo deve se lembrar de que juiz supremo é o próprio Deus que cuida dos seus (cf. vv. 4-7; Mt 10,28-31). O medo deve ser vencido em vista do testemunho público e arriscado em favor de Jesus.

Todo aquele que der testemunho de mim diante dos homens, o Filho do Homem também dará testemunho dele diante dos anjos de Deus. Mas aquele que me renegar diante dos homens, será negado diante dos anjos de Deus (vv. 8-9).

O horizonte antes indicado do juízo final (fogo, v. 5) coloca-se em primeiro plano. A atitude presente e pública diante de Deus decidirá o destino último do homem. Diante da corte celeste, “os anjos de Deus” (cf. Dn 7,10), cada um será reconhecido ou reprovado. O texto grego se desloca do “eu” presente (“de mim”), ao “Filho do Homem” da parusia (volta triunfal de Cristo) no futuro e ao passivo (divino) da rejeição (“será negado”); cf. a frase parecida em 9,26p, copiada de Mc 8,38.

Esta frase pode ser uma das frases originais do próprio Jesus, pela divisão entre Eu presente e Filho do Homem no futuro. Uns exegetas querem separar o “eu” de Jesus histórico do “Filho do homem” no céu, mas em analogia às duas naturezas que estão em Jesus (plenamente humano e plenamente divino), podemos identificá-lo com o Filho do Homem de Dn 7,13s, como já faziam os outros autores bíblicos (o paralelo Mt 10,32s). Mas levando a sério a encarnação que inclui aprendizagem humana, podemos dizer que o próprio Jesus talvez tenha realizado esta identificação só aos poucos na sua consciência crescente de Messias e Filho do homem.

A revelação decisiva acontecerá no juízo final. Aí caberá ao Filho do Homem (como herdeiro do reino diante de Deus e dos anjos; cf. Dn 7,9s;13s; como juiz, cf. Mt 25,31s) reconhecer as suas testemunhas. Trata-se do testemunho da prática da fé que pode incluir a cruz (9,26p) e derramar o próprio sangue (cf. Mt 10, 26-31), unindo o próprio destino ao de Cristo. Negar Jesus é dizer: “Não o conheço” (como Pedro cf. 22,57-60); aos que o renegam, Jesus dirá por sua vez: “Eu não vos conheço”, “não sei de onde sois” (13,25.27; Mt 7,23; 25,12; cf. Mc 8,38p; Lc 9,26: “envergonhar”). Não admite a neutralidade nem as concessões, afirma a reciprocidade (no entanto, perdoou a Pedro em Jo 21,15-19).

Jesus é mais do que uma testemunha neste juízo (“eu”: Mt 10,32), mais do que intercessor (cf. Rm 8,34; 1Jo 2,10), ele é o “Filho do Homem” a quem o Pai entregou a sentença (cf. Mt 25,31-46). Sua palavra decide sobre vida e morte, salvação ou condenação.

Na história da Igreja, nosso texto animou a confissão de fé pelos mártires diante dos juízes deste mundo em tempos de perseguição, depois a profissão da doutrina certa (Cristo é Deus) frente a heresias (Cristo é só homem, etc.). Hoje nos anima professar a nossa fé através da nossa prática da justiça (cf. Mt 6,33) e testemunhar Jesus em nossa existência humilde, indefesa e sofrida, não ter medo dos homens, mas assumir a missão de discípulos missionários com coragem e contar com a providência e o amor do Pai e sua recompensa no reino.

Todo aquele que disser alguma coisa contra o Filho do Homem será perdoado. Mas quem blasfemar contra o Espírito Santo não será perdoado (v. 10).

Lc deslocou esta frase sobre o pecado contra o Espírito Santo (cf. Mc 3,28s; Mt 12,32s) e deu novo significado. Os judeus contemporâneos de Jesus que o rejeitaram ainda tinham chance de ser converter, mas o mesmo não vale para depois da ressurreição a respeito do testemunho da Igreja doada com o Espírito.

A Bíblia do Peregrino (p. 2499) comenta: Blasfêmia contra o Espírito Santo, nesse contexto, parece significar a rejeição obstinada do seu testemunho a favor de Jesus, pelo qual pessoa se fecha ao perdão que Jesus oferece. Como se disséssemos: a pessoa corta o galho sobre qual está sentada.

Quando vos conduzirem diante das sinagogas, magistrados e autoridades, não fiqueis preocupados como ou com que vos defendereis, ou com o que direis. Pois nessa hora o Espírito Santo vos ensinará o que deveis dizer (vv. 11-12).

Para a situação realista de perseguição na época, Jesus dá outro conselho para o momento da confissão (profissão de fé), que o próprio Espírito sugerirá (1Cor 12,3).

Em Israel (“sinagogas”) como depois diante dos pagãos (“magistrados”), os discípulos comparecerão como acusados, mas atuando como testemunhas (v. 8; cf. Jeremias em Jr 26; Pedro e Paulo em At 4,1-22; 5,17-42; 23,11; 25,13-26,32). Por isso seu testemunho se compara à palavra profética (cf. 6,22.26) inspirada pelo Espírito; daí a veneração primitiva aos mártires e a conservação devota das atas de martírio na história da Igreja.

A palavra grega martírion, traduzida por “testemunho” toma nas gerações seguintes o sentido de “martírio”. O Apocalipse chama Jesus de “testemunha fiel” e a sua mensagem de “testemunho” (Ap 1,2-5). Mesmo diante dos tribunais, os discípulos triunfarão através do seu testemunho (martírio). Nas situações mais complicadas, contamos sempre com a ajuda do Senhor. O Espírito Santo é mais importante do que os nossos recursos e motivações.

Nos processos da época não havia advogados, mas peritos jurídicos que aconselhavam o réu. Jesus promete sua assistência (cf. Jo 14,18-21; 15,26). O confessor fala nesse momento como profeta inspirado: “O Espírito do Senhor fala por mim, sua palavra está em minha língua” (cf. 2Sm 23,2).

No seu segundo volume, o próprio Lucas mostrará o exemplo de Estêvão discutindo e testemunhando (At 6-7) e a palavra certa dos apóstolos (Ap 4,8-31; 5,29-32; cf. 2Tm 4,16-18). Lc repetirá esta frase em 21,15 quando copia Mc 13,11 (discurso sobre o fim do mundo).

O site da CNBB comenta: Durante o trabalho evangelizador, sempre somos assistidos pelo Espírito Santo. Somente com a sua ação é que podemos ser verdadeiras testemunhas de Jesus e o nosso trabalho pode produzir frutos que permanecem para a vida eterna. O Espírito Santo nos dá coragem e sabedoria para que possamos testemunhar Jesus e permanecer fiéis a ele até mesmo nos momentos mais difíceis. A história da Igreja está repleta de exemplos de santos e santas que, no momento do martírio, foram fiéis ao Espírito Santo e, além do derramamento de sangue, nos deixaram belas páginas sobre o amor a Deus.

 

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