23 de junho de 2017 – Sexta-feira, Sagrado Coração de Jesus – Ano A

A festa do Sagrado Coração de Jesus, sexta-feira, celebra-se na semana após a Solenidade de Corpus Christi, ou seja, numa sexta-feira lembrando o coração transpassado de Jesus na Sexta-feira Santa (Jo 19, 34). A festa litúrgica origina-se numa visão que Jesus fez a Santa Margarida de Alacoque, em 27 de dezembro de 1673, festa de São João Evangelista. Margarida acabava de sair do hospital, estava de joelhos, rezando na capela, sente a presença interior de Deus e escuta a voz de Jesus, dizendo-lhe as seguintes palavras: “O meu coração está tão apaixonado pelos homens, que não pode conter as chamas que o inflamam e precisam se expandir. Escolhi o teu coração, Margarida, para ser todo meu”. Jesus disse que Santa Margarida assumisse o lugar do apostolo João Evangelista na última ceia. A partir, de então, Margarida começou a ser interlocutora do Sagrado Coração de Jesus.

A devoção do Coração de Jesus está intimamente ligada ao Apostolado da Oração, fundado em 1844, na França, pelo padre jesuíta Francisco Xavier Gautrelet. O Apostolado da Oração está presente em 85 países do mundo e 40 milhões entre pessoas zeladas e zeladoras. No Brasil, o primeiro centro do Apostolado foi fundado em 30 de junho de 1867. Hoje e nos próximos dias, muitas pessoas receberão a fita do Sagrado Coração de Jesus. Oferecer o dia e unir ao Coração de Jesus e rezar por uma intenção mensal são pilares da Espiritualidade do Apostolado da Oração. Neste mês de junho, a intenção é a santificação dos padres. “Jesus, manso e humilde de coração! Fazei o nosso coração semelhante ao vosso!”

1ª leitura: Dt 7,6-11

O livro de Dt apresenta Moisés falando aos israelitas antes do povo entrar e conquistar a terra prometida. Moisés relembra toda Lei e a Aliança que foi selada no Sinai com o Deus único e verdadeiro. No meio deste cap. 7 aparecem duas definições complementares: o que é Israel para o Senhor (vv. 6-7); o que o Senhor é para Israel (vv. 9-10).

Mas à sombra delas, porém, há uma concepção radical e intolerante de Israel entre outros povos: que se devam destruir práticas de idolatria (adoração de outros deuses) e exterminar populações inteiras para evitar contágio (cf. vv. 1-5.16-26). Este contexto se deixa explicar com a perspectiva do exílio na Babilônia, onde os autores do Dt interpretaram a catástrofe da destruição de Jerusalém e o exílio como consequência e castigo pela idolatria do sincretismo religioso com os povos vizinhos. Assim os sete povos de Canaã (v. 1) aparecem como tentadores que causaram a perdição de Israel pelos pactos políticos, pelas relações comerciais e culturais e pelos laços matrimoniais. O povo escolhido, portanto, deve ter vivido separado, ciumento da sua aliança exclusiva com Javé Deus. A reflexão posterior, o que Israel devia ter feito antes, e transformado num mandamento posto na boca de Moisés já antes da entrada na terra de Canaã, para servir de advertência depois, quando os judeus voltarem do exílio e povoando novamente a sua terra, não se misturarem com os outros povos (como fizeram os samaritanos, cf. 2Rs 17). O mandamento da separação pode ser mais antigo, a intolerância se explica pela experiência trágica do exílio (Obs.: talvez a intransigência da política atual de Israel também tenha a ver com uma experiência trágica anterior, o holocausto pelos nazistas).

Tu és um povo consagrado ao Senhor teu Deus. O Senhor teu Deus te escolheu dentre todos os povos da terra, para seres o seu povo preferido (v. 6).

O v. 6 define o povo. É santo, “consagrado” (cf. 14,2,21; 26,19; 28,9; Ex 19,6; frequente em Lv), porque pertence totalmente ao Senhor; “escolhido”, com preferência a outros, por iniciativa de Deus; propriedade pessoal, inalienável do Senhor.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 280) comenta: Não é uma qualidade que possuísse por si mesmo, mas uma condição de vida particular a ele conferida por sua eleição, por sua separação por parte do Senhor, como o explica o fim do v. Esta pertença acarreta um comportamento: obriga-o a romper com a maneira de viver dos outros povos (cf. 12,31; 18,9.14) para se conformar à vontade de seu Senhor.

O Senhor se afeiçoou a vós e vos escolheu, não por serdes mais numerosos que os outros povos – na verdade sois o menor de todos – mas, sim, porque o Senhor vos amou e quis cumprir o juramento que fez a vossos pais. Foi por isso que o Senhor vos fez sair com mão poderosa, e vos resgatou da casa da escravidão, das mãos do Faraó, rei do Egito (vv. 7-8).

O que engrandece não é o número, mas o favor e o amor de Deus. “O menor de todos” parece contradizer a promessa patriarcal da fecundidade (Gn 12,2 etc.; cf. Gn 1,28; 8,17; 9,7)? Antes a relativiza: o que eram os judeus no final do exílio e no imenso império persa? Nada mais do que um “resto” de “sobreviventes” (Esd 9,8). Mas Deus escolhe o pequeno e o fraco para nele exercer e manifestar seu poder e sua grandeza; a pequenez de Israel contrasta com a grandeza da eleição da qual ele é objeto (Ez 16,1-4; Is 51,1s; Mt 11,25-26p; 1Cor 1,26-31 etc.).

A eleição não se explica senão pelo “amor” do Senhor (cf. 4,32-38). Ao fazer um “juramento” (cf. Gn 22,16-18), Deus se compromete, por amor à descendência futura (“vós”) ou por amor ao patriarca Abraão (cf. Is 41,8)? Esta eleição subtrai a Israel todo motivo de se orgulhar (cf. Am 9,7; Jo 15,16), mas chama ao maravilhamento e à gratuidade atuante por este amor divino (cf. 1Jo 4,10s.19).

Saberás, pois, que o Senhor teu Deus é o único Deus, um Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações, para aqueles que o amam e observam seus mandamentos; mas castiga diretamente aquele que o odeia, fazendo-o perecer; e não o deixa esperar: mas dá-lhe imediatamente o castigo merecido (vv. 9-10).

As maravilhas do êxodo serviram para afirmar a fé monoteísta: “Foi a ti que ele mostrou tudo isso, para que soubesses que Javé é o único Deus. Além dele não existe outro” (4,35; 6,4s; cf. Is 43,10s; 44,6; 45,5 etc.). O primeiro mandamento do decálogo é contra a idolatria: “Não te prostrarás diante desses deuses nem os servirás, porque eu, Javé, teu Deus, sou um Deus ciumenta e puno a iniquidade … até a terceira e a quarta geração, mas também ajo com amor até a milésima geração para com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos” (5,9s; Ex 20,5s; cf. Ex 34,6s).

O princípio da retribuição dá condições de resposta humana ao favor de Deus; ao mesmo tempo, ressalta a diferença entre o castigo individual “imediatamente” e “diretamente”, e o favor indefinido: “misericórdia até mil gerações” (5,10; Ex 20,6). O “amor” do ser humano deve responder ao de Deus.

Guarda, pois, os mandamentos, as leis e os decretos que hoje te prescrevo, pondo-os em prática (v. 11).

A Bíblia de Jerusalém (p. 286) comenta: Temos aqui a afirmação da eleição de Israel, como em 14,2. Deus foi procurar um povo para si, com meios miraculosos (4,34; cf. 4,20; 26,7-8). Os motivos desta escolha são dados aqui (vv. 7-8) ao amor e a fidelidade às promessas feitas gratuitamente aos pais (cf. 4,37; 8,18; 9,5; 10,15). Esta escolha foi selada pela Aliança (cf. v. 9; 5,2-3) e faz de Israel um povo consagrado (cf. v. 6 e 26,19). Esta teologia da eleição que é tão fortemente expressa no Dt, forma o substrato de todo o Antigo Testamento, no qual Israel é um povo à parte (Nm 23,9), o povo de Deus (Jz 5,13), a ele consagrado (Ex 19,6) que entrou na sua aliança (Ex 19,1ss), seu filho (Dt 1,31), a nação do Emanuel, “Deus conosco” (Is 8,8,10). Esta eleição faz de Israel um povo separado, mas os profetas anunciam o reconhecimento de Iahweh por todas as nações e o universalismo da salvação (Is 49,6; 45,14; Zc 14,16). É a era messiânica, aberta, pela vinda de Jesus.

2ª leitura: 1Jo 4,7-16

Neste discurso sobre o amor, o autor da carta de João atinge seu ápice, quando tenta e ousa definir que “Deus é amor” (vv. 8.16).

Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus.  Quem não ama, não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor (vv. 7-8).

A carta já falava do mandamento do amor mútuo (cf. 2,7-11; 3,23; Jo 13,34; 15,12.17; 1Ts 4,9; 1Pd 1,22). Quem é guarda seus mandamentos, é justo e ama, “nasceu de Deus”, então é filho de Deus (cf. 2,29; cf. Jo 1,12s). Já nossa filiação divina é um “grande presente de amor” do Pai (3,1). Na linguagem bíblica, “conhecer” e “amar” podem significar a mesma coisa (cf. Mt 1,25; Lc 1,34; Gn 4,1.17.25; 19,8; 24,16 etc.), por isso só pode chegar ao conhecimento de Deus quem ama (cf. Jo 20,8). O amor não se entende teoricamente, mas sim por experiência inter-humana (vv. 7-8).

Temos três célebres descrições joaninas de que Deus é: “Deus é espírito” (Jo 4,24), “Deus é luz” (1Jo 1,15), e agora “Deus é amor” (1Jo 4,8,16). Mais de trinta vezes em 4,7-5,3 aparecem as palavras “amor” ou “amar”. Religiões antigas veneravam o amor como uma divindade entre outras; o único e verdadeiro “Deus é amor”, afirma João. A origem do amor é Deus, que é amor (trinitário).

No AT, Deus ama seu povo Israel (cf. Is 54,8; Dt 4,37; 10,15; Jr 31,3; Sf 3,17; Ml 1,2). Seu “amor eterno” (cf. Sl 136) é semelhante ao amor de um pai por seus filhos (cf. Is 1,2; 49,14-16; Jr 31,20; Os 2,25; 11,1-4) ou à paixão de um homem por uma mulher (cf. Is 62,4s; Jr 2,2; 31,21s; Ez 16,8.60; Os 2,16s.21s; 3,1).

Foi assim que o amor de Deus se manifestou entre nós: Deus enviou o seu Filho único ao mundo, para que tenhamos vida por meio dele. Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de reparação pelos nossos pecados (vv. 9-10).

O amor de Deus é gratuito e iniciativa dele (v. 9). Deus manifestou seu amor na missão do único Filho como salvador do mundo (vv. 7-9; 3,16; 4,14; Jo 3,16; 4,42; cf. Rm 4,24s; 5,8; 8,31-39) “para que tenhamos vida por meio dele” (cf. Jo 10,10; 14,6; 20,31). Entretanto este amor que se manifesta na história da salvação, revela no mesmo tempo o amor do Pai por seu Filho (Jo 3,35; 5,20; 10,17; 15,9; 17,26). Todo amor vem de Deus (v. 7) e reflete entre nós a própria vida das pessoas na Santíssima Trindade, modelo para a comunidade.

O horizonte de Sb 11,24 é o universo: “Amas todos os seres que fizeste …”; o de João é a salvação (v. 14): “vítima da reparação/expiação por nossos pecados” (v. 10; 2,2) é termo do culto sacerdotal do AT (Ex 29,36-37) e evoca o sacrifício voluntario de Jesus na cruz que intercede por nós (cf. Ap 5,9s). Já em 3,16, definiu-se: “Nisto conhecemos o amor: ele deu sua vida por nós”. Dar a própria vida em favor dos amigos é o “amor maior” de Jo 15,12 (cf. 1Cor 5,5-8).

Caríssimos, se Deus nos amou assim, nós também devemos amar-nos uns aos outros (v. 11).

O comportamento de Deus para conosco (amor, perdão) é modelo das nossas relações recíprocas. Como Deus nos tratou (com amor, compaixão, perdão), nós devemos tratar nos uns aos outros (cf. Jo 13,34; 15,12; Mt 5,43-48; 18,33; Lc 6,36; Cl 3,12-14).

Ninguém jamais viu a Deus. Se nos amamos uns aos outros, Deus permanece conosco e seu amor é plenamente realizado entre nós. A prova de que permanecemos com ele, e ele conosco, é que ele nos deu o seu Espírito (vv. 12-13). 

A palavra “permanecer” (seis vezes na leitura de hoje) está ligada à importância do amor e da união numa comunidade em crise (cf. 2,19-28; Jo 15). “Ninguém jamais viu a Deus” (Jo 1,18; 6,46; cf. Ex 33,20; Nm 12,8), expressão polêmica contra os adversários “espirituais” que se gabavam de conhecer a Deus por uma intuição direta (cf. Jo 3,13; 5,37; 6,46; 1Tm 6,16). A comunhão (1,3) e a visão (3,2) de Deus estão unidas à caridade. Para os homens, a visão face a face está reservada à felicidade do céu (Mt 5,8; 1Cor 13,12). No amor mútuo, permanecemos em Deus e “ele permanece em nós através do Espírito que ele nos deu” (3,24).

E nós vimos, e damos testemunho, que o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo.  Todo aquele que proclama que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece com ele, e ele com Deus.  E nós conhecemos o amor que Deus tem para conosco, e acreditamos nele. Deus é amor: quem permanece no amor, permanece com Deus, e Deus permanece com ele (vv. 14-16).

Este dom do Espírito (v. 13), anunciado para os últimos tempos (Ez 36,27; 37,14; Jl 3,1-5; At 2,17-21.35) foi infundido nos corações (cf. Rm 5,5; 1Ts 4,8) e aí faz brotar a certeza íntima daquilo que os apóstolos anunciam exteriormente (5,6s; cf. At 5,32), como “testemunho” ocular: “nós vimos” (cf. 1,1-3)  Trata-se aqui do estado do “Filho de Deus” (Rm 8,15s; Gl 4,6).

Como sempre na carta de João, o dom do Espírito está ligado à fé (3,23s; 4,2s; 5,5-10): O Espírito inspira o “testemunho” (v. 14; 5,5; cf. Jo 4,42), a confissão de fé no seio da comunidade (v. 15; cf. Rm 10,9) e o conhecimento do amor de Deus (v. 16). “Nós conhecemos… e acreditamos nele” (v. 16): Fé e conhecimento não são idênticos, a fé desabrocha no conhecer (cf. Jo 6,69; 8,31s; 10,38). Graças a sua fé, os cristãos conhecem doravante (3,16) o amor de Deus que se manifestou.

O autor apresenta mais uma vez a definição e identificação, “Deus é amor”, que resume toda Bíblia. Verdadeiro amor quer eternidade, portanto quer “permanecer”.

Evangelho: Mt 11,25-30

No evangelho de hoje, Jesus se apresenta “manso e humilde de coração”, mas antes agradece louvando ao Pai pelos humildes que aceitam seu evangelho (vv. 25-27). Mateus copiou este louvor da fonte catequética “Q“ que transmitia palavras e parábolas de Jesus e foi usada também por Lucas (cf. Lc 10,21s). Diante da soberba e arrogância das cidades amaldiçoadas (vv. anteriores 20-24) desprende-se no contexto essa exaltação dos humildes e simples.

Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado (vv. 25-26).

Os judeus se dirigiam ao bom Deus, chamando-o de “Senhor do céu e da terra”; e Jesus acrescenta a palavra “Pai”. A relação é de grande proximidade. O mistério que cria e coordena as grandes leis do mundo tem rosto e coração paterno. Para alguns, essa identidade do Pai permanece escondida, inacessível, mas para os pequeninos ela se manifesta. Os “pequeninos” são aqueles humildes que tudo esperam da bondade infinita do Pai e criador de todas as coisas (cf. a primeira bem-aventurança em 5,3).

Visto que este trecho (vv. 25-27) não tem conexão mais estreita com o contexto em que Mt o inseriu (cf. o lugar diferente que ocupa em Lc 10,21s), “essas coisas” não só se referem ao que procede (às cidades da Galileia), mas devem ser entendidos de um modo geral como se referindo aos “mistérios do Reino” (13,11), revelados aos “pequeninos”, aos discípulos (cf. 10,42), mas escondidos aos sábios, aos fariseus e seus doutores. O “agrado” do Pai lembra a voz do céu na hora do batismo do Filho (3,17) e a citação de Is 42,1 em Mt 12,18.

Além da linguagem sapiencial (cf. Eclo 51 ou Pr 8; Eclo 24; Sb 6-8) pode se reconhecer a linguagem apocalíptica, como a do livro de Daniel: Os “sábios” não foram capazes de interpretar o sonho do rei (Dn 2,3-13; cf. José no Egito, Gn 41), mas o “mistério é revelado” a Daniel que implorou a “Deus do céu” (Dn 2,18s.28) e “louva” a Deus por lhe ter concedido a “sabedoria” (Dn 2,23); trata-se do “reino” fundado pelo próprio Deus (Dn 2,44).

“Deus revela seus segredos aos humildes” (Eclo 3,20). A sabedoria é dada aos sábios (Dn 2,21), mas só se forem humildes e reconhecerem Deus como doador (Br 4,1-4; Eclo 1,4-9; cf. Br 3,37; Eclo 24,3-17) e ele “torna sábio o simples” (Sl 19,8; cf. 119,130; 116,6). Os profetas se manifestam contra os que são “sábios aos próprios olhos” (Is 5,21; cf. 29,14-19; Jr 9,22s). Os prodígios de Deus confundem a sabedoria dos sábios, como em Is 29,14: “Eu continuarei prodigando prodígios, a sabedoria dos sábios fracassará”. O prodígio presente é o envio e a presença do seu Filho, mistério que os ignorantes humildes compreendem, pois não vivem satisfeitos com seus preconceitos; ao passo que os doutores que se creem suficientes, olhando não veem (cf. Is 42,20; 6,9s). A fé pascal dos cristãos acolhe e proclama essa revelação. O apóstolo Paulo fará a mesma experiência quando anunciar a mensagem da cruz aos sábios filósofos em Atenas em vão e ao povo simples em Corinto com sucesso (1Cor 1,17-2,9; cf. At 17,16-18,11).

Meu Pai entregou tudo a mim. Ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelar (v. 27).

Toda esta frase com sua união e reciprocidade entre Pai e Filho lembra o evangelho e as cartas de João (cf. Jo 1,18; 3,18; 3.11.35; 6,46; 10,14s, etc.) e testemunha, na base mais primitiva da tradição sinótica (na fonte Q, cerca de 50 d.C.) exatamente como em João (cerca de 90 d.C.), a consciência que Jesus deve ter tido da sua filiação divina.

“Tudo” quanto o Pai entregou ao Filho pode se referir ao poder no universo (céu e terra; cf. 28,19; Jo 3,35; 13,3), e aqui, no contexto, à sabedoria e conhecimento do Pai que confia os mistérios celestes ao Filho (cf. Jo 5,20; 7,16.28s; 8,19.38; 12,49).

A afirmação de Jesus de que ele estava numa relação íntima com Deus (vv. 26-27) e o seu convite aos discípulos (em seguida nos vv. 28-30) evocam muitos passos dos livros sapienciais (Pr 8,22-36; Eclo 24,3-9. 19s; Sb 8,3s; 9,9-18; etc.). Jesus desse modo atribui a si mesmo o papel da Sabedoria (cf. Mt 11,19), mas de uma maneira especial, não como personificação, mas como pessoa, “o Filho” por excelência do “Pai”. Mais uma vez, a frase lembra o batismo de Jesus (3,17; cf. 4,3; 27,40; em Mc 1,11, só Jesus escuta a voz do Pai e quer manter segredo até o prazo determinado pela cruz e ressurreição; cf. Mc 9,7-9; 15,39). É uma das três vezes em Mt, em que o próprio Jesus exprime, de maneira indireta, ter uma relação única com Deus seu Pai (21,37; 24,60; cf. Lc 2,49; 23,46; Jo 20,17).

Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso (vv. 28-29).

Depois de copiar o louvor de Jesus da fonte Q (cf. Lc 10,21s), o próprio evangelista Mt acrescenta este convite aos discípulos (vv. 28-30). Evoca os convites tradicionais da Sabedoria personificada (Pr 8,1-21.32-36; 9,4-6; Eclo 24,19-22; etc.) ou do mestre que ensina a sabedoria (Eclo 6,18-37; 51,23-29; Sb 6,11-16). Jesus desse modo atribui a si mesmo o papel da sabedoria (cf. Mt 11,19), mas de uma maneira especial (não já como personificação, mas como pessoa real).

A escravidão no Egito se definia pelas “cargas”, “fardos” (Ex 6,6). Não só os animais, também os homens carregam o “jugo” como sinal e exercício da escravidão. Era um jugo curvo de madeira, apoiando com almofadas sobre os ombros, que servia para transportar cargas equilibradas. O amor de um casal chama se “conjugal” porque ambos se unem para carregar a carga da vida juntos.

A imagem é frequente no AT: pode referir-se à Lei de Deus, escrita ou oral (“jugo da lei” é uma metáfora corrente entre os rabinos, cf. Sf 3,9; Lm 3,27; Jr 2,20; 5,5; Is 14,25; Os 10,11); este jugo nem sempre era sentido como algo pesado ou ofensivo. O termo pode ser aplicado também à sabedoria, cuja aprendizagem é no início jugo, mas no fim “joia” (Eclo 6,24-30; cf. 51,26s; Mt 13,45s) ou ao jugo pesado da tirania estrangeira (Is 10,27; Jr 27,8 etc.; cf. Os 10,11)

A sabedoria dá tranquilidade e “descanso” (Eclo 6,28; 51,27; cf. 24,7), mata a fome e a sede (Pr 9,4s; Eclo 24,20-22; 51,24; cf. 15,3; Jo 4,14; 6,34), dá alegria (Eclo 6,28; 15,6), vestimenta da honra e a coroa (Eclo 6, 31; cf. 7,16-18). Por isso, o jugo da sabedoria é “leve”, ela se deixa encontrar porque está perto (Eclo 51,26; Sb 6,12.16), pode-se adquirir de graça (Eclo 51,25).

Em Mt, Jesus chama no lugar da Sabedoria. O Filho de Deus conhece e revela o caminho para Deus, mas este passará pela cruz (cf. 16,24p), porém, pode dar o descanso definitivo porque “tudo foi entregue a ele pelo Pai” (v. 27; 28,18; cf. Ap 14,13).

O Filho de Deus é “manso e humilde de coração”, expressão clássica dos “pobres de Javé” do AT (cf. Sf 2,3; Is 26,6; Dn 3,87; cf. Mt 5,5; 18,4.10; 20,26-28; 23,8-11). Jesus reivindica a atitude religiosa deles, e por isso arroga a si autoridade para ser o seu mestre de sabedoria, como estava predito a respeito do “servo” de Javé que evangeliza os humildes (Is 61,1s; cf. Lc 4,18; Mt 12,18-21; 21,5). De fato foi para eles que ele pronunciou as bem-aventuranças e felicidades do Reino (Mt 5,3.5) e muitas outras instruções de sua boa nova (evangelho).

Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve (v. 30).

O jugo que Jesus impõe, aceito com amor e levado com sua ajuda, é “leve” particularmente se comparado com as cargas dos fariseus (23,4), porque as observâncias farisaicas sobrecarregavam ainda mais o fardo da lei (23,4; cf. 5,17). Ao legalismo rígido dos fariseus, Jesus contrapõe sua interpretação libertadora da lei, apresentada no sermão da montanha (caps. 5-6). Este inicia com a declaração da felicidade do Reino de Deus nas bem-aventuranças (5,3-12). Simultaneamente com a lei renovada, cujo mandamento maior é o amor (Mt 22,34-40p; cf. 7,12; 23,23), Jesus transmite aos homens a alegria do Reino.

No Concílio de Jerusalém, os apóstolos também não querem sobrecarregar os fiéis com a lei da circuncisão (At 15,10; Gl 5,1), e Paulo incentiva: “Carreguem o peso uns dos outros, assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2).

O site do CNBB comenta: Existem pessoas que acreditam que a verdade da religião encontra-se num rigorismo muito grande, principalmente no que diz respeito às exigências morais e rituais. Com isso, a religião acaba por ser um instrumento de opressão. Jesus nos mostra que não deve ser assim. Ele veio ao mundo para trazer a libertação do jugo do pecado e da morte e que a verdadeira religião é aquela que liberta as pessoas de todos os pesos que as oprimem na sua existência. O verdadeiro cristianismo é aquele que não está fundamentado na autoridade e na rigidez, mas na humildade e mansidão de coração, por que o seu fundador, Jesus Cristo, manso e humilde de coração, é o Mestre de todo o nosso agir.

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