24 de dezembro de 2017 – Advento 4º Domingo, Ano B

1ª Leitura: 2Sm 7,1-5.8b-12.14a.16

A 1ª leitura de hoje apresenta um dos textos chaves do Antigo Testamento, a promessa do messias ao rei Davi. O texto faz parte da história deuteronomista, um conjunto de livros (Js; Jz; 1-2Sm; 1-2Rs) influenciada pela teologia do Dt (Deuteronômio significa “segunda [edição da] lei”), que centraliza o culto em Jerusalém e conta a história da ocupação da terra (1200 a.C.) até sua perda em 586 a.C. Por volta de 1000 a.C., Davi acabou de conquistar a cidade de Jerusalém e a tornou capital política do seu reino (5,6-11). Queria torná-la capital religiosa e trouxe a arca da aliança para uma tenda armada na cidade (cap. 6).

A profecia de Natã está construída sobre uma oposição: não será Davi que “fará uma casa” (templo) a Javé Deus (v. 5), mas será Javé que “fará uma casa” (dinastia) a Davi (v. 11). A promessa concerne essencialmente à permanência da linhagem davídica sobre o trono de Israel (vv. 12-16). É assim que ela é compreendida por Davi (vv. 19.25.27.29; cf. 23,5) e pelos Sl 80,30-38; 132,11-12. É o texto da “aliança de Javé com Davi” (cf. 23,5; Sl 89,4; Is 55,3) e sua dinastia.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 460) afirma: “7,1-17 é construída sobre uma dupla antítese: 1º, não é Davi quem construirá uma casa (o templo) para o Senhor (vv. 5-7), mas o Senhor é quem fará uma casa (uma dinastia) para Davi (vv.11b-12); 2º, não é Davi quem construirá o Templo, mas seu filho Salomão (v. 13). A primeira antítese exprime uma ideia religiosa. Ela destaca a instituição da dinastia da obra do Templo para mostrar a gratuidade de favor divino concedido a Davi: ao fazer dele o fundador de uma linhagem real, o Senhor corou os seus benefícios, recordados nos vv. 8.9.11. A segunda antítese corresponde a uma realidade histórica: apesar de seus êxitos, Davi não teve tempo de realizar a intenção que o v. 2 lhe atribui, nem de empreender a construção, longa e onerosa, que será realizada por seu filho (1Rs 6). Ainda que sua justaposição pareça resultado de composição secundaria, essas duas afirmações podem remontar à época de Salomão e revelar a opinião dos escribas da corte, ligados à dinastia e ao Templo. A redação deuteronomista do discurso de Natã, claramente perceptível (cf. de modo particular vv. 1.10.13) não apagou a ideia mestra mais antiga. Posta na juntura da história da ascensão de David (cf. 1Sm 16,1) e da história de sua sucessão (cf. 9,1), a “profecia de Natã” é o ponto culminante dos livros de Samuel. Ao deixar clara a eleição da dinastia de David, ela é uma das fontes da ideia messiânica.

Tendo-se o rei Davi instalado já em sua casa e tendo-lhe o Senhor dado a paz, livrando-o de todos os seus inimigos, ele disse ao profeta Natã: “Vê: eu resido num palácio de cedro, e a arca de Deus está alojada numa tenda!” Natã respondeu ao rei: “Vai e faze tudo o que diz o teu coração, pois o Senhor está contigo” (vv.1-3).

Davi constituiu seu palácio em Jerusalém (2Sm 5,11) e transportou a arca da aliança à capital (2Sm 6), agora pensa em construir um templo para esta arca, substituindo a tenda que a abrigava.

O Senhor (Javé) “deu paz (segurança, repouso) livrando-o de todos seus inimigos” ao redor (as mesmas expressões agrupadas em Dt 12,10; Js 21,44; 1Sm 12,11). O “palácio (lit. casa) de cedro” foi construído com a cooperação do rei fenício Hiram de Tiro (5,11), como também será mais tarde o Templo (1Rs 5,20).

A “tenda de lona” é termo frequente em Ex 26 e 36, mas a tenda armada por Davi para a arca da aliança é distinta daquela antiga “habitação (morada)” do deserto ou “tenda da reunião ou “tenda do encontro” (cf. 6,17). A tenda erguida por Davi não é a “tenda do encontro” da qual falam as antigas tradições sobre Moisés e que estava armada fora do acampamento (Ex 33,7; cf. Nm 11,24.26; 12,5.10; Dt 31,14-15), nem a tenda da tradição sacerdotal (cf. Ex 27,21, etc.; 29,42-43; 30,36), da qual Js 18,1; 19,51; 1Sm 2,22 (cf. Sl 78,60) indicam a presença em Silo, 2Cr 1,3.6.13 em Gabaon, e 1Rs 8,4 em Jerusalém. Mesmo 1Cr 15,1; 16,1; 2Cr 1,4 distinguem a Tenda do encontro daquela que armou Davi e que existia ainda quando do advento de Salomão (1Rs 1,39; 2,28-30).

O profeta Natã (cf. Eclo 47,1) concorda com Davi (cf. Samuel na unção de Saul em 1Sm 10,7: “o Senhor está contigo”; cf. 1Sm 16,13). Natã é o profeta da corte que intervém para censurar David no cap. 12 e será o articulador da ascensão de Salomão (1Rs 1). A tradição fez de Natã um dos historiadores de David (cf. 1Cr 29,29).

Mas, naquela mesma noite, a palavra do Senhor foi dirigida a Natã nestes termos: “Vai dizer ao meu servo Davi: Assim fala o Senhor: Porventura és tu que me construirás uma casa para eu habitar? (vv. 4-5).

Um verdadeiro profeta não é um bajulador do rei, sim o questiona caso a conduta do rei não seja conforme os planos de Deus (cf. 2Sm 12 depois do adultério com Betsabeia).

“Residir, habitar, morar” (lit. sentar-se; vv. 1.2.5-6.18) é uma das palavras-chaves do capítulo. As interrogações de vv. 5-7 (vv. 6-7 são omitidos pela leitura de hoje) podem ser entendidas como protestos contra a construção, feita por um homem, de uma morada destinada a Deus. Percebe-se aí uma fonte da polêmica de At 7,48 contra o Templo: “O Altíssimo não habita em obras de mãos humanas” (cf. At 17,24). É possível que uma declaração do oráculo primitivo, referente a Davi, tenha sido ampliada no momento de sua redação (no exílio ou depois), num tempo em que a ruína de Jerusalém tinha motivado certo desinteresse em relação ao templo (cf. 1Rs 8,27; Is 66,1-2).

De fato, Natã é favorável à manutenção da velha tradição representada pela Arca, e contrária à novidade de um templo à moda de Canaã. O problema foi resolvido pela instalação da arca no Templo de Salomão (1Rs 8,1.10-12).

Fui eu que te tirei do pastoreio, do meio das ovelhas, para que fosses o chefe do meu povo, Israel. Estive contigo em toda a parte por onde andaste, e exterminei diante de ti todos os teus inimigos, fazendo o teu nome tão célebre como o dos homens mais famosos da terra. Vou preparar um lugar para o meu povo, Israel: eu o implantarei, de modo que possa morar lá sem jamais ser inquietado. Os homens violentos não tornarão a oprimi-lo como outrora, no tempo em que eu estabelecia juízes sobre o meu povo, Israel. Concedo-te uma vida tranquila, livrando-te de todos os teus inimigos (vv. 8b-11b).

Os vv. 6-11b resumem a história de Davi como a do povo de Israel. Depois de tirar os israelitas da escravidão no Egito, Deus conduziu o povo pelo deserto para a terra prometida (vv. 6-7), mas nesta terra precisava guerrear contra os povos cananeus e filisteus. Então, Deus “estabeleceu juízes” para defender o povo contra estes “homens violentos” (v. 11). O último dos juízes, Samuel, ungiu o primeiro rei, Saul, mas este não obedecia à palavra de Deus (1Sm 8-15). Então Samuel ungiu outro, Davi, um pastor de Belém (v. 8b; 1Sm 16; Sl 78,70s) para ser “chefe do povo” (cf. este título militar e político em 2Sm 5,2-3; 6,21; 1Rs 1,35; 14,7; 16,2). Mais bem sucedido e popular do que o próprio rei, Davi acabou sendo perseguido por Saul (1Sm 18-30). Depois da morte de Saul, Davi foi aclamado rei por todas as tribos de Israel e escolheu Jerusalém como capital (2Sm 5-6).

Agora, estabelecido “instalado e livre dos inimigos” (cf. v. 1), Davi quer construir uma casa para Deus. Mas Deus não é doméstico, caseiro. Desde o tempo dos patriarcas, Javé Deus se revelou ao seu povo e a Davi sempre em movimento, “tirando, guiando, conduzindo”. O Deus de Israel é exatamente aquele que não se deixa fixar num lugar específico, é superior aos deuses pagãos locais. O Deus do universo não precisa de comida nem de bebida, nem de moradia (cf. Is 66,1s). Aquele que não tem casa nem onde reclinar a cabeça (cf. Lc 9,58p) é aquele que deu a Israel uma terra e a Davi uma capital com seu palácio e dará mais ainda.

E o Senhor te anuncia que te fará uma casa. Quando chegar o fim dos teus dias e repousares com teus pais, então, suscitarei, depois de ti, um filho teu, e confirmarei a sua realeza (vv. 11c-12).

Antes o Senhor questionou: “Porventura és tu que me construirás uma casa para eu habitar?” (v. 5) e continua aqui respondendo “E o Senhor te anuncia que fará uma casa para ti” (v. 11c). É um jogo de palavras com os significados bíblicos de “casa”: no sentido comum significa a construção com material fixo, lar que acolhe e protege sendo centro de convergência (cf. Gn 4,17; 11,4 etc.). Aqui, em sentido metafórico, a casa são as pessoas da casa: família, dinastia, servos (cf. Gn 16,2; At 10,2; 11,14; 16,15.31; 18,8; 1Cor 1,16). A família se constrói com filhos e sucessores. Deus promete outra estabilidade a Davi, não local, mas temporal, pela história: uma dinastia, uma permanência de linhagem davídica sobre o trono de Israel.

Quando Davi “completar seus dias e repousar com seus pais” (mesma expressão em Gn 47,30; Dt 31,16; muito frequente nos livros dos Reis, cf. 1Rs 1,21; 2,10 etc.), Deus firmará a realeza para seu “descendente” (nossa liturgia traduz “filho”; lit. “aquele que sairá de tuas entranhas” (cf. Gn 16,11; Gn 15,4). Este esclarecimento constitui uma transição entre o coletivo “descendência”, que designa a linhagem davídica (cf. 22,51; Sl 89,5.30.37 e Jo 7,42; Rm 1,3; 2Tm 2,8), e o “descendente/filho” imediato (cf. Gn 4,25 ) do qual fala o v. 13, isto é, Salomão. Ao invés, a promessa se refere à descendência, como a promessa feita a Abraão (Gn 12,7; 15,18; 17,7-10) que se individualiza em Gn 21,13 (Isaac).

Davi não vai construir o templo, seu filho Salomão será este construtor (1Rs 5,15-6,37; 7,13-8,66), como fala o v. seguinte, omitido pela leitura de hoje: “Será ele que construirá uma casa para meu Nome, e eu firmarei para sempre o seu trono real.” Este v. 13, que se refere evidentemente a Salomão, é geralmente considerado como uma adição ao oráculo original a Davi. A referência ao “Nome” é um traço teológico deuteronomista (cf. Dt 12,5.11.21; 14,23-24; 16,2 6.11; 26,2; 1Rs 3,2; 5,17.19; 8.17.18.19.20.44.48; 9,3.7; 11,36; 14,21; 2Rs 21,4.7). “Estabelecer, (con)firmar” é ainda uma palavra-chave do capítulo (cf. vv. 12.13.16.24.26 e 1Sm 13,13; 2Sm 5,12; 1Rs 2,24). Mas a promessa vai para além de Salomão; o fim do v. 13 garante o trono à sua dinastia “para sempre”.

No paralelo posterior 1Cr 28, Davi relata: “Deus me disse: ‘Não construas casa para meu nome, pois foste homem de guerra e derramaste sangue… É teu filho Salomão que construirá minha casa e meus átrios, pois foi a ele que escolhi como filho e serei para ele um pai’” (1Cr 28,3.6).

Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho (v. 14a).

É uma fórmula de adoção, como em Sl 2,7; 89,27; 110,3 (grego), mas é também a primeira expressão do messianismo real: cada rei da linhagem davídica será uma imagem (embora imperfeita, cf. o final do v. e Sl 89,31-34) do rei ideal do futuro. Os reis de Israel e do Antigo Oriente se consideravam adotados por Deus na hora da sua posse (consagração, unção, coroação; cf. Sl 2; 110). Em vez de Davi dar estabilidade a Deus (com a construção do templo), Deus dará estabilidade à dinastia de Davi, não só a Salomão, mas a toda sua descendência “para sempre” (vv. 13.16; Is 9,6; Lc 1,32, cf. a promessa feita a Abraão em Gn 12,2-3.7; 15,18; 17,7-10). A fórmula é aplicada, no NT, à entronização messiânica de Jesus (cf. Mc 1,11p; Lc 1,35; At 13,33; Rm 1,3s; Hb 1,5; 5,5).

Aplicando-a ao Messias, o paralelo 1Cr 17,13 suprimiu a segunda parte do v. 14 (nossa liturgia omite vv. 14b-15): “Se ele falhar, eu o corrigirei como varas e golpes, como costumam os homens”. O rei em Israel não está acima das leis, suas faltas pessoais serão castigadas (cf. 2Sm 12,9-12), mas, contrariamente ao princípio de Ex 20,5; 34,7; Nm 14,18; Dt 5,9, sua descendência nada sofrerá por causa delas e continua segura de reinar para sempre (cf. v. 15). Encontra-se aí o essencial daquilo que 23,5 (e Sl 89,29; Is 55,3) chama de “aliança (eterna)” do Senhor com Davi.

Tua casa e teu reino serão estáveis para sempre diante de mim, e teu trono será firme para sempre (v. 16).

Os reis depois de Salomão não seguiram mais os caminhos do Senhor, mas os profetas (cf. Is 9,6) alimentaram a esperança por um “messias” (=rei ungido) no povo judeu (que espera até hoje).

Esse texto fundou a concepção messiânica, elaborada tanto no Antigo como no Novo Testamento. Com o fracasso da realeza em Jerusalém, o Messias (“ungido” rei, descendente de Davi) torna-se o rei ideal que libertará o povo e o fará viver conforme a justiça e o direto (cf. Is 11,1-9). O Novo Testamento (NT) vê a pessoa de Jesus como a realização da promessa do Messias (“Cristo”= Ungido = Messias). Paulo declara Jesus “nascido da estirpe de Davi” (Rm 1,3). Em Mc, Jesus é chamado “filho de Davi” (Mc 10,47s; cf. 11,10; 12,35-37). Mt começa a genealogia de Jesus iniciando com Abraão passando por Davi e terminando com “José, esposo de Maria, de que nasceu Jesus, que é chamado o Cristo” (Messias; Mt 1,1.6.16s). Em Lc 1,32s, o anjo anuncia a Maria que seu Filho “será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó (= Israel), e o seu reino não terá fim.”

Vivendo por volta de 1000 a.C., Davi foi visto na história posterior como rei ideal e da sua “casa” (família, dinastia, descendência) sairia o messias. Esta promessa do messias (= ungido, Cristo=crismado), anunciada e reforçada pelos profetas (Is 7,14; 9,5s; 11,1-5; 42,1; Jr 23,5s; Mq 4,14; Ag 2,23), alimentou a esperança do povo de Deus por 1000 anos até a chegada de Jesus e continua ainda: muitos judeus de hoje ainda esperam pelo messias e consideram Jerusalém como capital inegociável. O que une cristãos e judeus hoje é apostar num futuro melhor que será a vinda do messias (ou, para os cristãos, a volta dele), contra a falta de esperança e perspectiva no mundo atual.

 

2ª Leitura: Rm 16,25-27

A 2ª leitura é o final da carta aos Romanos. Paulo, depois de saudar muitos homens e mulheres colaboradores, conclui com uma doxologia (louvor) a Deus e ao momento da “revelação do mistério” da salvação, “mantido em sigilo desde sempre, agora foi manifestado e … levado ao conhecimento de todas as nações”.

(Irmãos:) Glória seja dada àquele que tem o poder de vos confirmar na fidelidade ao meu evangelho e à pregação de Jesus Cristo, de acordo com a revelação do mistério mantido em sigilo desde sempre. Agora este mistério foi manifestado e, mediante as Escrituras proféticas, conforme determinação do Deus eterno, foi levado ao conhecimento de todas as nações, para trazê-las à obediência da fé (vv. 25-26).

Paulo encerra sua maior carta com uma oração de louvor, chamada glória ou doxologia. Desta forma solene (cf. Ef 3,20s; Jd 24s), Paulo retoma os temas essenciais da carta e de outros escritos; cf. a introdução da carta em 1,5: “a missão de pregar … a obediência da fé entre todos as nações (pagãos, gentios)”. Chegando em Roma, capital dos pagãos, Paulo vibra de ardor missionário (At 28).

“Aquele que tem o poder de vos confirmar…” na doutrina e na prática da vida cristã (cf. 1,11; 1Ts 3,2.13; 2Ts 2,17; 3,3; 1Cor 1,21; Cl 2,7).

Este louvor exprime o maravilhamento da Igreja perante o “mistério” antes oculto, agora revelado (Ef 3,9), “mediante as Escrituras proféticas” (isto é, os testemunhos do AT e NT) e assim difundido no mundo inteiro. Toda o peso dessa grande fórmula litúrgica está nas palavras “agora manifestado”: a Igreja, olhando para o passado se alegra por viver na época em que o nome de Jesus Cristo revelado é doravante a chave da história universal e do destino de toda pessoa humana. Não é por acaso que (desde o séc. VI) dividimos a história nos anos “antes de Cristo” e “depois de Cristo”.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2145) comenta o “mistério” (v. 25): Esta ideia de um “segredo” cheio de sabedoria (v. 27; 1Cor 2,7; Ef 3,9; Cl 2,2-3), há muito tempo escondido em Deus e hoje revelado (v. 25; 1Cor 2,7.10; Ef 3,5.9s; Cl 1,26), é tomada por Paulo da apocalíptica judaica (Dn 2,18-19), mas ele a aprofunda aplicando-a ao plano da salvação (v. 26; Rm 11,25; Cl 1,23; 4,3; Ef 3,3-12; 6,19) e enfim a restauração do universo em Cristo, como seu único chefe (Ef 1,9-10). Veja ainda 1Cor 4,1; 13,2; 14,2; 15,51; Ef 5,32; 2Ts 2,7; 1Tm 1,9-10; Mt 13,11p; Ap 1,20; 10,7; 17,5.7.

A ele, o único Deus, o sábio, por meio de Jesus Cristo, a glória, pelos séculos dos séculos. Amém! (v. 27).

Deus é único, ou o “único sábio” (Eclo 1,8; cf. Rm 11,33-36; 1Cor 1,24; 2,7; Ef 3,10; Cl 2,3; Ap 7,12).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2146) comenta o final (v. 27): O NT adota as bênçãos e doxologias de Israel (Gn 14,19s; Sl 41,14), chamando, porém, frequentemente a Deus de Pai e incluindo Jesus Cristo (9,5; 11,35-36; 1Cor 8,6; cf. Gl 1,5; Ef 3,21; Fl 4,20; 1Tm 1,17; 6,16; 2Tm 4,8; Hb 13,21; 1Pd 4,11; 2Pd 3,18; Jd 25; Ap 1,6). As doxologias posteriores o mais das vezes nomearão as três “Pessoas” (cf. 2Cor 13,13).

O lugar dos vv. 25-27 varia segundo os manuscritos. Esta doxologia, colocada aqui pela maioria dos documentos, encontra-se, em alguns deles, no final do cap. 15 ou do cap. 14; outros a omitem. Também a autenticidade desta majestosa doxologia é contestada. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2197) comenta sobre a questão, se os cap. 15-16 já faziam parte desde o início desta epístola (carta) ou se foram anexados depois por discípulos, no tempo da cartas Deuteropaulinas (Ef, Cl) ou das Tritopaulinas (cartas Pastorais: 1-2Tm, Tt):

Rm 15-16 suscita uma questão de críticas literárias. Não há dúvida quanto à sua autenticidade, mas a tradição manuscrita a respeito deles é insegura. Parece ter existido uma recensão curta da epístola, da qual se amputaram os dois últimos capítulos: mas como ela interrompe a epístola no meio de um desenvolvimento (em Rm 14,23), não é primitiva, e Rm 15 certamente faz parte do corpo da epístola. Poder-se-ia dizer o mesmo de Rm 16? Houve quem estranhasse a severidade do tom de Rm 16,17-20, contrastante com o da epístola. Notaram-se certas afinidades com os temas das Pastorais …; há quem se tenha perguntado como Paulo conhecia tanta gente (Rm 16,1-16), numa cidade onde nunca tinha estado. – Mas as mudanças de tom são frequentes em Paulo e a passagem de Rm 16, mais semelhante às Pastorais (16,17), tem precisamente um paralelo no corpo da epístola (6,17). E Paulo pode ter encontrado em outro lugar, que não em Roma, os personagens que saúda, e, além disso, não é necessário que os conheça a todos os pessoalmente. – A hipótese segundo a qual Rm 16 constituía primitivamente um bilhete independente, ajuntando ulteriormente à epístola, levanta mais problemas do que resolve. – Só a doxologia final (Rm 16,25-27), cria um verdadeiro problema. O tema e o estilo a aproximam mais das epístolas do Cativeiro (Ef-Cl), e numerosas expressões são estranhas ao vocabulário habitual de Paulo. Mas essas objeções estão longe de ser decisivas.

 

Evangelho: Lc 1,26-38

Ouvimos a narrativa da anunciação do nascimento do messias à virgem Maria. Ela conceberá sem participação de um homem, mas através do Espírito Santo (vv. 34s). Esta concepção de Jesus pelo Espírito Santo não é a Imaculada Conceição de Maria (festa em 08 de dezembro, nove meses antes na natividade de Maria em 08 de setembro). Jesus foi concebido pelo Espírito Santo, Maria pelo ato natural (sexual) dos seus pais Joaquim e Ana, mas foi preservada da mancha (pecado) original desde o primeiro momento da sua vida, ou seja, desde sua concepção, portanto “Imaculada Conceição de Maria”.

Aíla Luzia Pinheiro Andrade (na revista Vida Pastoral, nov./dez. 2016) comenta: O Evangelho de hoje nos apresenta um modelo de colaboração no propósito de Deus para a salvação humana. O texto enfatiza dois aspectos principais: a presença eficaz de Deus, que realiza o seu propósito, e a colaboração humana, que diz “sim”. Em Maria, vemos esses dois aspectos se realizarem. A atitude dela se torna, para nós, um paradigma a ser seguido.

No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma virgem, prometida em casamento a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi e o nome da virgem era Maria (v. 26-27).

“No sexto mês”: a conta dos meses é a partir concepção de João (vv. 24.36), por isso celebra-se o nascimento de João Batista (24 de junho) seis meses antes do Natal (24 de dezembro). O anjo é Gabriel (significa “força de Deus”; cf. v. 11.19; Dn 8,16; 9,21). Gabriel já apareceu a Zacarias que pertence ao baixo clero no templo da capital Jerusalém (vv. 5-25), agora é enviado a uma moça na periferia: “Nazaré” é um lugarejo desconhecido no interior (cf. Jo 1,46) da desprezada “Galileia” (cf. Jo 7,41s), mas é o lugar escolhido (Is 8,23b).

Antes mesmo de levarem uma vida comum, os jovens judeus (como Maria e José) se comprometeram em casamento, eram considerados quase como esposos porque o contrato já foi assinado (cf. Mt 1,18s). “Maria” é tradução grega do nome hebraico Miriam (o mesmo nome da irmã profetisa de Moisés em Ex 2,4.7; 15,21; Nm 12,1-10; 20,1; Maomé confundiu-a com a mãe de Jesus).

O anjo entrou onde ela estava e disse: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” (v. 28).

“Alegra-te” (saudação comum na língua grega do NT) é tradução melhor do que “Ave” (saudação em latim), porque apela à alegria messiânica; os profetas convidaram a filha de Sião a alegrar-se pela vinda de Deus em meio a seu povo (cf. Is 12,6; Sf 3,14-15; Jl 2,21-27; Zc 2,14; 9,9).

“Cheia de graça”, lit.: “tu que fostes e permaneces repleta do favor divino”. Alguns manuscritos acrescentam “Bendita és tu entre as mulheres”, por influência de v. 42 (saudação de Isabel).

Aíla Luzia Pinheiro Andrade (na revista Vida Pastoral, nov./dez. 2016) comenta: A saudação contém duas expressões importantes: “cheia de graça”, uma alusão à alegria messiânica que ora se inicia, e “o Senhor está contigo”. Esta última expressão não é dita a pessoas em circunstâncias normais, ainda que possa haver exceções (cf. Rt 2,4), mas se refere ao povo de Deus em sua totalidade ou a alguma pessoa que Deus tenha convocado para realizar um trabalho árduo. A presença eficaz de Deus dirige a pessoa à finalidade proposta por ele.

Maria ficou perturbada com estas palavras e começou a pensar qual seria o significado da saudação. O anjo, então, disse-lhe: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim” (vv. 29-33).

As palavras do anjo (cf. Mt 1,20-23; Lc 1,13-17) inspiram-se em várias passagens messiânicas do AT, nascimentos (milagrosos) e profecias messiânicas (cf. Gn 16,11s; Jz 13,3-5; 2Sm 7; Is 7,14s; 9,5s; 11,1-5; Jr 23,5; Dn 7,14). A “virgem conceberá um filho” (cf. Is 7,14 em grego). Este será reconhecido como messias (2 Sm 7), “descendente de Davi” (através de José) e “Filho do Altíssimo” (através do Espírito Santo, cf. v. 35a; cf. 1Sm 16,13; 2Sm 7,14-16; Sl 2,7; Rm 1,2-4). Seu reinado sobre “Jacó” (= Israel; cf. Gn 32,29) será “para sempre” e sem fim (universal, cf. Is 9,6; Dn 7,14). A última expressão entrou no Credo Niceno-Constantinopolitano: “E seu reino não terá fim”.

Maria perguntou ao anjo: “Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?” (v. 34).

É comum nos relatos de vocação a pessoa chamada alegar um argumento contra (cf. 1,18; 5,8; Gn 18,12; Ex 3,11.13; 4,1.10.13; Jz 6,15; Jr 1,6…). A virgem Maria é apenas noiva (cf. v. 27) e não tem relações conjugais (sentido semítico de “conhecer”, cf. Gn 4,1; etc). O anjo não repreende Maria como fez a Zacarias (cf. v. 20), porque se trata aqui de uma coisa inédita. O fato de Maria não conviver ainda com José parece realmente opor-se ao anúncio dos vv. 31-33 e induz a explicação do v. 35. Nada no texto impõe a ideia de um voto de virgindade.

O anjo respondeu: “O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (v. 35a).

A resposta do anjo evoca a nuvem luminosa, sinal da presença de Javé (cf. Ex 13,22; 19,16; 24,16) como também as asas do pássaro que simbolizam o poder protetor (Dt 32,11; Sl 17,8; 57,2; 140,8) e criador (Gn 1,2) de Deus. O fato de Maria conceber sem ainda estar morando com José indica que o nascimento do Messias é obra da intervenção (poder, força, cf. o nome Gabriel) de Deus. Aquele que vai iniciar nova história surge dentro da história de maneira totalmente nova.

Aíla Luzia Pinheiro Andrade (na revista Vida Pastoral, nov./dez. 2016) comenta: A expressão “cobrir com sua sombra” faz alusão à nuvem que cobria o tabernáculo no deserto, representando a glória de Deus que ali habitava (cf. Ex 40,34). A mesma expressão é utilizada no texto da transfiguração (cf. Lc 9,34), porque era símbolo da presença de Deus. O tabernáculo no deserto era chamado de Tenda do Encontro (cf. Ex 27,21), pois ali Deus se encontrava com o ser humano por meio da representação da nuvem. Dessa forma, quando o texto, ao se referir a Maria, utiliza a expressão “cobrir com sua sombra”, identifica-a com a Tenda do Encontro, significando que, no útero dela, Deus e o ser humano se encontram no Menino que vai nascer.

“Por isso, o menino que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus” (v. 35b).

A santidade é um dos atributos essências do Deus de Israel no AT (Is 6,3; Lv 11,44-46; etc.); ela se comunica àquele que se aproxima de Deus ou lhe é consagrado. Jesus é o Santo do NT (cf. Lc 4,34p; Jo 6,69; At 2,27; 3,14; Ap 3,7).

Davi recebeu o Espírito de Javé quando foi ungido (1Sm 16,13). O Messias (significa: ungido; em grego: Cristo) é descendente de Davi e considerado filho (adotivo) de Deus (cf. 2Sm 7,14), adotado na hora da sua posse (consagração, cf. Sl 2,7; batismo: Mc 1,11), e também dotado com o Espírito (Is 11,1s; 42,1; 61,1). Mas o Espírito também está com os profetas (cf. 1Sm 10,10; 2Rs 2,9.15; Ez 2,2; 11,5; 37,1) e pode ser derramado sobre o povo (Ez 11,19; 36,26s; Jl 3,1s; cf. Lc 1,35.41.67; 2,25-27;  At 2 etc). Na sua vida na terra, Jesus não era sacerdote no templo nem tomou posse como rei, mas era vista como profeta (cf. 7,16; Mc 9,8.19p) ou messias (9,20p; Mc 11,9s). A novidade aqui é que Jesus é Filho de Deus no sentido literal, biológico (cf. Mt 1,16.20.25), não só a partir do batismo (que pode ser considerado como espécie da consagração ou posse alternativa (3,22p; cf. Sl 2,7), mas “desde o ventre materno” (cf. vv. 15.41; Is 49,1.5; Jr 1,5; Gl 1,15).

Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice. Este já é o sexto mês daquela que era considerada estéril, porque para Deus nada é impossível” (vv. 36-37).

Em vez de dar um sinal (exigido por Zacarias em v. 18; cf. Gn 15,8; Jz 6,17; Is 7,11; 38,7), o anjo indica um milagre que já aconteceu (Maria já sabia da gravidez da sua prima ou não?). Zacarias e Isabel estavam na mesma situação que Abraão e Sara (ambos velhos e ela estéril). Gabriel conclui com palavras semelhantes às de Deus na visita a Abraão e Sara (na aparição dos três anjos em Gn 18,14; cf. Jr 32,27).

Maria, então, disse: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!” E o anjo retirou-se (v. 38).

Maria não usa um verbo ativo na primeira pessoa “cumprirei” (Ex 19,8), mas um intransitivo: “aconteça, faça-se” o que disse o anjo, ou seja, a ação divina e sua consequência (como um novo Gênesis; cf. Gn 1,3: Deus falou “haja luz”, e “houve luz”; etc.). Deixar Deus agir é a suprema humildade e grandeza de Maria (cf. 1,48s). A tradição entendeu o consentimento (“sim”) de Maria como pronunciado em nome da humanidade (cf. 2Cor 1,19-22). Imagine se ela tivesse negado. No plano da criação, Deus faz o homem colaborador (imagem; cf. Gn 1,26s). No plano da salvação, se fez dependente do livre arbítrio (consentimento) de uma mulher. Amor e fé não se forçam ou impõem, mas se propõem.

Aíla Luzia Pinheiro Andrade (na revista Vida Pastoral, nov./dez. 2016) comenta: Ante a vontade de Deus, Maria deu a resposta: aceitou. Ela proclama-se “serva do Senhor”, frase usual no ambiente oriental quando um subalterno se dirige ao seu superior com o propósito de aceitar seus desígnios. Essa disposição para a obediência é uma manifestação de confiança (fé) na Palavra de Deus.

Na sua encarnação que resultará na paixão e morte, Jesus também será o “servo (escravo) do Senhor Javé” (cf. Is 53; Fl 2,7). Não só por sua maternidade, mas pela sua reposta generosa à palavra de Deus, Maria torna-se modelo de fé para toda Igreja (cf. 11,27s). Bento XVI a chama “mãe da palavra” (do Verbo encarnado, Jo 1,14) e “mãe da fé” (fé é a reposta à palavra; cf. Verbum Domini 27).

Antigamente apresentava-se Maria como modelo da mulher submissa, serva, mãe e dona do lar. Hoje Aíla L. Pinheiro de Andrade (na revista Vida Pastoral 2017) destaca a mulher autônoma:

O evangelho de hoje nos diz que Maria dialogou com Deus por meio de Gabriel e mostra que Deus não se impõe, não subjuga, mas dialoga, busca um interlocutor humano e necessita da palavra de Maria, uma mulher, para que seu Filho nasça. Nesse momento decisivo, a mulher tem de agir como sujeito, quer dizer, com autonomia. Da palavra da mulher depende a Palavra de Deus, e nessa linha, no final do Advento, descobrimos Maria como uma mulher autônoma, amorosa, livre e determinada, capaz de colocar sua vida a serviço de Deus.

Deus pede a Maria um compromisso que ela deve assumir de forma pessoal, sem a consulta ou a permissão de um homem, seja pai, irmão ou marido. É a mulher (antes foi Eva, agora é Maria) quem decide. Isso é muito significativo, porque a história de Israel foi narrada sob a perspectiva de que Deus agia, geralmente, por meio do sexo masculino, com o qual fazia alianças. Agora, Deus rompe essa supremacia do homem, expressando o seu mistério por intermédio da fé e da acolhida de Maria à sua proposta.

O site da CNBB resume: Maria recebe do anjo a notícia de que seria a mãe do Messias. Como poderia acontecer isso se ela não conhece homem? … mulheres estéreis geraram filhos por obra divina, e filhos que atuaram decisivamente na história da salvação. Maria não podia ter filhos, mas isso era fruto de sua vontade, de sua consagração virginal. E nesta “esterilidade”, Deus age. E sem a atuação de um homem, mas do próprio Espírito Santo, Maria gera no seu ventre virginal aquele que é o Senhor da história e que vai mudar radicalmente a vida das pessoas… Jesus se insere na história da humanidade e, ao fazê-lo, também passa a ter uma história. Ele é verdadeiramente homem e assume em tudo a condição humana, menos o pecado.

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