24 de outubro de 2017 – Terça-feira, 29ª semana

Leitura: Rm 5,12.15b.17-19.20b-21

Ouvimos hoje um texto que se tornou importante na evolução da doutrina do “pecado original” na igreja ocidental (St.º Agostinho). Ainda que não se encontre este termo na carta de Paulo, é conceito válido de reformular o conteúdo central desta leitura. Uns detalhes deste texto, porém, são difíceis de traduzir e interpretar (cf. o comentário extenso na Tradução Ecumênica da Bíblia, p. 2180s). Nossa liturgia salta os vv. 13-15a.16.20a.

O pecado habita o homem (7,14-24); ora, a morte, castigo (salário) do pecado (6,23), entrou no mundo a partir da falta de Adão (Sb 2,23s: pela inveja do diabo); disso Paulo conclui que o próprio pecado entrou na humanidade por meio desta falta inicial (pecado original); Paulo vê um paralelo entre a obra nefasta do primeiro Adão e a reparação superabundante de Cristo, o “segundo Adão” (vv. 15-19; 1Cor 15,21s.25). É na qualidade de novo chefe da humanidade, imagem na qual Deus restaura sua criação (8,29; 2Cor 4,4.6; 5,17) que Cristo salva a humanidade.

Em todo trecho é central a relação numérica “um só” e “todos”.

O pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a morte. E a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram (v. 12).

O texto original começa com um “como”, mas termina sem membro correspondente. A Bíblia do Peregrino (p. 2714) comenta: Como se Paulo se detivesse para limpar o terreno antes de chegar à sua afirmação central. Contudo, já no primeiro v. deixa estabelecido um fato, “por um só homem entrou”, sem tentar explicá-lo. Também afirma sem mais a vinculação entre pecado e morte (cf. 1Jo 4,10). Todos pecaram, também pessoalmente: 2,12; 3,9.23; 1Cor 6,18; Ef 4,26). Ainda que se difunda como um contágio, não é uma fatalidade, e sim uma responsabilidade (cf. Tg 1,13-15).

Paulo expõe a libertação do pecado e da morte, na grande comparação entre Adão e Cristo. “Adão” (v. 14) em hebraico significa simplesmente “homem, ser humano”, não é um nome próprio, mas um protótipo.

“Porque todos pecaram”, sentido controvertido: seja por uma participação no pecado de Adão (“em Adão todos pecaram”), seja por seus pecados pessoais (3,23). A Bíblia de Jerusalém (p. 2127) comenta: Neste caso, a expressão grega se traduziria melhor “mediante o fato de que”, introduzindo a condição realizada que permitiu à morte (eterna) atingir todos os homens. Com efeito, no caso do adulto, único aqui visado, o poder do pecado que entrou no mundo com Adão produziu seu efeito de morte através dos pecados pessoais que ratificam de certa maneira a revolta de Adão.

Pecado e Morte são personificações literárias das quais se predicam os verbos: “entrou, passou, difundiu-se, estava em, reinou”. Podemos comparar estas personificações com outras imagens, como a serpente de Gn 3 – não citada por Paulo (desmitizada em Eclo 21,2) ou com o animal acuado que espreita (Gn 4,7); a pastora Morte em Sl 49,15; o oráculo em Sl 36,2.

Deve-se entender pecado e morte em sentido forte: Pecado que escraviza (6,12) e faz romper com Deus. O pecado separa o homem de Deus. Esta separação já é uma “morte”: morte espiritual e “eterna”, da qual a morte física é sinal (cf. Sb 1,13; 2,24; Hb 6,1). Morte total não é só física, mas a primeira e a “segunda” (1Cor 15,56; Ap 2,11). Nos próximos vv., deve-se entender o contraste da dupla Pecado e Morte, isto é Justiça e Vida, no sentido forte de relação positiva com Deus (justiça) e vida eterna.

A transgressão de um só levou a multidão humana à morte, mas foi de modo bem mais superior que a graça de Deus, ou seja, o dom gratuito concedido através de um só homem, Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos (v. 15b).

Nossa liturgia traduz por “transgressão” o grego paráptoma cuja etimologia é “queda mais além”. Seu oposto não é manter-se de pé, mas receber um favor, “o dom gratuito” que, por vir de Deus e ser concedido por meio de Cristo, supera imensamente a “queda” humana. “A multidão à morte (lit.: morreu) inclui todos os seres humanos (cf. v. 18; Mc 10,45p; Is 53,11s).

Por um só homem, pela falta de um só homem, a morte começou a reinar. Muito mais reinarão na vida, pela mediação de um só, Jesus Cristo, os que recebem o dom gratuito e superabundante da justiça (v. 17).

Os sujeitos do verbo “reinar” se opõem assimetricamente: de um lado “a morte começou a reinar”, do outro lado “reinarão na vida” (lit. “vivos”) os que recebem “o dom gratuito e superabundante da justiça” (ou: o favor abundante de uma justiça gratuita).

Como a falta de um só acarretou condenação para todos os homens, assim o ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida (v. 18).

Nesse v., Paulo chega à formulação definitiva numa oposição (rimada em grego: paraptómatos/dikaiómatos), equivalente a transgressão (“falta”) e cumprimento (“justificação”) da justiça; ao contrário, evita a consonância da outra oposição, que equivale à condenação/sentença de vida.

Com efeito, como pela desobediência de um só homem a humanidade toda foi estabelecida numa situação de pecado, assim também, pela obediência de um só, toda a humanidade passará para uma situação de justiça (v. 19).

Aqui Paulo repete a mesma ideia nas categorias de desobediência/obediência (cf. Fl 2,8 na dimensão cristológica). A justificação é atual, não somente no juízo final, mas à medida que os homens forem renascendo em Cristo (na fé batismal, cf. 6,3-11).

Porém, onde se multiplicou o pecado, aí superabundou a graça. Enfim, como o pecado tem reinado pela morte, que a graça reine pela justiça, para a vida eterna, por Jesus Cristo, Senhor nosso (vv. 20b-21).

Nossa liturgia de hoje omite v. 20a: “A lei interveio para que proliferasse a transgressão”. Os rabinos diziam que a lei oferece ensinamentos, vida e luz. Mas Paulo, fariseu convertido à fé em Cristo crucificado, propõe a sequência: lei – pecado – morte. Nos capítulos seguintes, Paulo explicará sua versão pessimista da Lei. Como fariseu, Saulo-Paulo acreditava que a lei salvasse (através do seu cumprimento), mas Cristo foi julgado e morto pela Lei (Sinédrio, Supremo Tribunal). Agora, o que salva, é a fé em Cristo ressuscitado (cf. 10,9). A última palavra da leitura é “vida eterna”.

Entre todas as outras interpretações, há uma autorizada pelo Concílio de Trento no ano 1546 (DS 1510-1516) que a Bíblia do Peregrino (p. 2714) comenta: Em resumo afirma: que o pecado de Adão não afetou a ele apenas, mas toda a sua descendência; e não só nas consequências de penas e morte, mas também no próprio pecado; que se transmite por propagação e não por imitação; que o único remédio é Cristo.

Esta doutrina do “pecado original”, desenvolvida por St.º Agostinho a partir de Rm 5 (e sobre o batismo do qual Paulo fala em Rm 6), teve efeitos colaterais negativas como interpretações que favoreceram conversões e batismos à força e o medo de que crianças não batizadas não pudessem entrar no céu. Bento XVI corrigiu este último detalhe, abolindo o “limbo”, espaço imaginado (antessala do paraíso) onde ficariam as crianças mortas que não foram batizadas.

Mas há de assegurar dois pontos importantes da doutrina do pecado original: Todo ser humano nasce dentro de uma história marcada por um complexo de limitações e culpas e não consegue simplesmente se ausentar ou redimir desse por si próprio, portanto é necessitado de salvação (remissão, redenção, libertação). Todo ser humano, porém, sem exceção, pode ser redimido pela fé em Cristo.

 

Evangelho: Lc 12,35-38

Nos próximos dias ouvimos evangelhos em que Jesus exorta à vigilância com três parábolas: servo e patrão, dono e ladrão, administrador. O horizonte se alarga para a Igreja que espera a parusia (retorno do Senhor). Jesus ainda fala aos discípulos (v. 22); a exortação vale para todos, mas há diversos graus de responsabilidade. Pode se presumir uma contraposição: Ao rico insensato que foi surpreendido pela morte (vv. 13-21, evangelho de ontem), se opõem os discípulos que esperam pelo seu Senhor.

Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas (v. 35).

Estar cingido quer dizer estar disponível. O israelita se cinge e prende a túnica para caminhar, trabalhar ou lutar (1Rs 20,11; cf. Ef 6,14; Is 59,17). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2005) comenta: Como no v. 37 e em 17,8 é preciso arregaçar a aba da vestimenta no cinto para estar pronto para o trabalho. É também o modo de trajar o viajante, que os judeus adotam para celebrar a Páscoa (Ex 12,11) na qual esperam a vinda do Messias.

As lamparinas indicam que a cena acontece de noite (cf. Pr 31,17-18; Mt 25,1-13).

Sede como homens que estão esperando seu senhor voltar de uma festa de casamento, para lhe abrir em, imediatamente, a porta, logo que ele chegar e bater (v. 36).

Lucas não apresenta o patrão como noivo (cf. 5,34s e a parábola das dez virgens em Mt 25,1-13), mas como convidado a um casamento anônimo que pode chegar tarde. Abri-lo ao primeiro bater na porta expressa a vigilância extrema (cf. Ap 3,20).

Felizes os empregados que o senhor encontrar acordados quando chegar. Em verdade eu vos digo: Ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá. E caso ele chegue à meia-noite ou às três da madrugada, felizes serão, se assim os encontrar! (vv. 37-38).

A reação do patrão é inverossímil (cf. 17,7s), exorbitante, e nisso está a graça: o patrão age como servo (22,27; Mc 10,45p; cf. o lava-pés em Jo 13,1-17). Ele convida os criados a um banquete (Ap 3,20). É o banquete do céu, que só com exageros se pode esboçar (Mt 26,29; Is 25,6).

O patrão chama duas vezes “felizes” (bem-aventurados; cf. 6,20-23) os criados que vigiam. No final do tempo apostólico, os cristãos estão sendo provados pela demora da volta de Cristo (cf. Mc 13,30), mas se perseverarem, estarão de parabéns (felizes).

O site da CNBB comenta: O verdadeiro discípulo de Jesus procura viver sempre um dos valores mais importantes que aparecem no Evangelho: o serviço. Ele sempre está pronto para servir o seu senhor que chega, pois vê o próprio Jesus que vem até ele na pessoa do pobre, do nu, do faminto, do injustiçado, do doente, do abandonado, do carente, enfim, de todos os que precisam de amor, de ajuda material, psicológica, afetiva ou espiritual. Esse discípulo não fala muito de amor e de Evangelho, porque sua vida é o grande discurso da vivência do amor evangélico. Este é o que está de rins cingidos e abre a porta do seu coração sempre que o Senhor chega e este é o feliz que será eternamente servido pelo Senhor.

Voltar