25 de agosto de 2017 – Sexta-feira, 20ª semana

 

Leitura: Rt 1,1.3-6.14b-16.22

Hoje e amanhã, a liturgia nos apresenta o breve livro de Rute, uma das obras primas da narrativa hebraica. A Bíblia cristã o inseriu entre os livros Juízes e Samuel, porque começa em Belém “no tempo em que os juízes governavam” (1,1) e termina com a genealogia de Davi, identificando Rute como bisavó dele. Na Bíblia hebraica, o livro tem um lugar próprio entre os “escritos (sapienciais)”, precisamente entre os cinco rolos (livros) que são lidos nas festa judaicas especiais, assim Rute em Pentecostes.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 297) introduz este livro: O livro de Rute é uma novela em torno de uma emigração de uma família de Belém para Moab e da volta para Belém. Os temas da história – direto de respiga, resgate da terra, casamento misto, universalismo, entre outros – ajudam a datar este escrito no tempo de Neemias e Esdras, entre 450 e 350 a.C.

Os persas põem fim ao império da Babilônia em 538 a.C. A estratégia do novo dominador é permitir a liberdade religiosa às nações subjugadas, garantindo para sai submissão política (cf. Esd 7,25-26). Os persas incentivam a reconstrução do Templo em Judá, que foi concluída em torno de 515 a.C., sob protesto de muitos grupos (cf. Esd 4,1-5). Alguns anos mais tarde, os persas enviam Neemias e Esdras (450-350 a.C.), que empreendem importantes reformas para manter a identidade e coesão do povo pós-exílio. Mas a consolidação da teologia da retribuição (cf. Ml 3,6-21) e a lei da pureza (cf. Lv 12) provocam exclusões de diversos grupos considerados impuros: estrangeiros (especialmente mulheres), doentes, pobres e portadores de deficiência física. Nesse contexto, surge o livro de Rute.

No tempo em que os juízes governavam, houve uma fome no país e um homem de Belém de Judá foi morar nos campos de Moab com sua mulher e seus dois filhos. Entretanto, morreu Elimelec, marido de Noemi, e esta ficou sozinha com seus dois filhos. Eles casaram-se com mulheres moabitas, uma das quais se chamava Orfa, a outra, Rute. E ali permaneceram uns dez anos. Depois morreram também os dois, Maalon e Quelion e a mulher ficou só, sem os dois filhos e sem o marido (vv. 1-5).

O livro destaca duas mulheres pobres: a viúva Noemi que perdeu marido e filhos em terra estrangeira, pode ser vista como o povo judeu no exílio que quer retornar para sua terra, e Rute, sua nora estrangeira, que também perdeu o marido, mas aderiu a fé em Javé, Deus de Israel (v. 16).

A terra do refúgio é Moab que fica no outro lado do Jordão, onde Moisés viu ainda a terra prometida, mas morreu (Dt 34). A volta do exílio repete a mesma rota, chegando do outro lado do Jordão.

“Houve uma fome no país”, quer dizer que faltava pão em Belém, lugar de origem da família migrante. A Nova Bíblia Pastoral (p. 298) comenta: Ora, Belém significa “casa do pão”. Todos os nomes utilizados neste livro são simbólicos, indicando que estamos diante de uma novela. Elimelec significa “meu Deus é rei”; Noemi é “doçura” e, por causa de sofrimento, escolhe ser chamada de Mara, “a amarga”. Os dois filhos: Maalon, “enfermidade”, e Quelion, “fraqueza”. Orfa pode ser “costas”. Rute significa “amiga”, “próxima”, “companheira”.

Então ela se dispôs a voltar do campo de Moab para a sua pátria com as duas noras, porque tinha ouvido dizer que o Senhor havia olhado para o seu povo, e lhe tinha dado alimentos (v. 6).

“O Senhor havia olhado para o seu povo”, lit.: visitado o seu povo. A visita de Deus pode trazer castigo ou salvação (cf. Ex 3,16; Jr 23,2; 29,10; Lc 1,68; 19,44), aqui é favorável. O verbo “voltar” indica refazer a aliança com Deus (cf. conversão, volta a Deus). É a volta que garante a descendência, mas esta está faltando agora.

Noemi se despede de suas noras (vv. 7-14a, omitidos em nossa liturgia), dizendo que é velha demais para se casar novamente e assim gerar filhos que deveriam se casar com as noras mais velhas, conforme a lei do levirato (Dt 25,5-10). Melhor as noras ficarem e casarem com homens moabitas da sua idade.

Orfa beijou sua sogra e partiu. Rute, porém, ficou com Noemi. Esta disse-lhe: “Olha, tua cunhada voltou para o seu povo e para os seus deuses. Vai com ela”. Mas Rute respondeu: “Não insistas comigo para que te deixe e me afaste de ti. Porque para onde fores irei contigo, onde pousares, lá pousarei eu também. Teu povo será o meu povo, e o teu Deus será o meu Deus” (vv. 16b-16). 

Orfa volta para Moab e para seu deus Camos. Também Rute perdeu o marido, mas aderiu à fé em Javé e não quer mais voltar aos deuses do seu povo. Ingressando no domínio e no povo de Javé Deus, Rute não terá outro deus além dele (cf. 1º mandamento em Ex 20,2; Dt 5,7) e o monoteísmo exclusivo do Segundo Isaías desenvolvido no exílio (Is 42,8; 43,11-13; 44,6 etc.). Mas Dt 23,4-5 exclui os moabitas do culto israelita.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 298) comenta: Na boca de Rute estão as palavras solenes da aliança (v. 16) ao apresentar a solidariedade de uma mulher moabita, povo desprezado pelos judeus …, o autor protesta contra a concepção de que somente o judeu pertence ao povo eleito e santo.

Suas palavras solenes e rimadas são juramento de lealdade a uma parenta; isoladas do contexto, representam o juramento de qualquer prosélito (cf. Zc 8,23: “Nós queremos ir com vocês, pois ouvimos falar que Deus está com vocês”). Mesmo sendo mulher estrangeira, ela é um exemplo de fé (como a cananeia em Mt 15,21-28p).

Assim Noemi voltou dos campos de Moab, acompanhada de sua nora Rute, a moabita. Regressaram a Belém, quando começava a colheita da cevada (v. 22). 

Em Belém, Noemi é reconhecida pelas mulheres pelo nome (Noemi-doçura), mas diz que prefere chamada de Mara (amargura), porque voltou sem marido, filhos e bens (vv. 19-21, omitidos). Mas o fato de que Noemi e Rute voltam para Judá no início da colheita aponta para a esperança.

Evangelho: Mt 22,34-40

Ouvimos no evangelho de hoje outra vez sobre a questão de Lei que é cara ao evangelista Mt que escreveu para judeu-cristãos (cf. 5,17-48 etc.). A pergunta sobre o “maior mandamento da lei”, ele copia de Mc 12,28-34, mas resume pela metade.

Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus. Então eles se reuniram em grupo, e um deles perguntou a Jesus, para experimentá-lo: (vv. 34-35).

No meio das últimas controvérsias com os adversários em Jerusalém, Mc 12,28-34 apresentou ainda um diálogo que não é hostil: um escriba, reconhecendo que Jesus respondeu bem aos “saduceus” (a respeito da ressurreição dos mortos que estes não aceitavam), fez uma pergunta sem segundas intenções e depois ainda elogiou a resposta de Jesus. Quer dizer, no tempo de Mc (por volta de 70 d.C.), ainda não houve tanta ruptura entre judeus e cristãos, de modo que ainda havia simpatizantes escribas entre os judeus (cf. Gamaliel em At 5,43-42).

Mt e Lc que escreveram 10 a 15 anos depois de Mc. Os judeus tinham perdido a guerra contra os romanos. O templo foi incendiado e, com isso, os saduceus (aristocracia sacerdotal) não haviam mais como existir. Mt alude a este fim do templo quando escreveu: “Jesus tinha feito calar os saduceus”?

Sobraram só o partido dos fariseus para assumir a liderança no judaísmo. Na reconstrução da identidade judaica, os conflitos com os cristãos se agravaram (cf. Mt 23). No sínodo de Jâmnia em 90 d.C., os rabinos (mestres farisaicos) excomungaram os cristãos (Jo 9,22; 16,2) que se entendiam até então como grupo dentro da religião judaica (com a diferença que acreditavam em Jesus como messias e aceitavam os pagãos). Não havia mais simpatizantes no judaísmo por enquanto. Por isso, Mt e Lc, independentes um do outro, ou através de uma segunda edição de Mc (Deuteromarcos) que ambos usavam, mudaram a figura do escriba simpático em Mc por um (grupo) fariseu (Lc: legista) que pergunta a Jesus já com intenção má, “para experimentá-lo” (cf. 19,3p; 22,15p).

“Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” (v. 36).

Em Mc, a pergunta foi sobre o “primeiro” de todos os mandamentos, mas não ficou clara; como o “primeiro” poderia se entender o primeiro do decálogo ou um dos mandamentos dados a Noé ou Abraão. Mt expressa a pergunta de maneira mais correta no debate dos rabinos: Qual é o “maior” mandamento da Lei? Lit. O “grande”, porque, no judaísmo, a pergunta sobre o “maior” de todos os mandamentos já era uma polêmica. Muitos a consideravam até uma blasfêmia, fazer diferença entre mandamentos mais importantes e menos importantes, já que cada um vem do Senhor e ele só dá mandamentos importantes.

No AT (Antigo Testamento), mais precisamente na Torá (“Lei” de Moisés, que são os cinco primeiros livros, chamados Pentateuco em grego), não só havia o decálogo (os “Dez Mandamentos”: Ex 20; Dt 5). Os rabinos contavam um total de 613 mandamentos da Lei (365 proibições e 248 mandatos). Não se podia fazer uma síntese de todos eles? As respostas que já foram dadas repetem um dos Dez Mandamentos, ex. o primeiro (contra os ídolos) ou o terceiro (santificar o sábado) ou o quarto (honrar os pais). Haverá outras sínteses, mas sem citar um texto bíblico, combinando por ex. os deveres a respeito de Deus e dos semelhantes: “servir com santidade e justiça” (cf. Lc 1,75), ou a Regra de Ouro (cf. Mt 7,12; Lc 6,31).

Mas a pergunta aqui exige uma citação concreta da Lei de Moisés (em Lc, que escreveu para não-judeus, a pergunta é outra: “Como ganhar a vida eterna?”, Lc 10,25; cf. Mc 10,17p).

Jesus respondeu: “’Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento!’ Esse é o maior e o primeiro mandamento (vv. 37-38).

A resposta de Jesus é uma combinação original de dois textos da Lei de Moises (Dt 6,5 e Lv 19,8).

O primeiro é tirado da profissão de fé judaica, o shema (cf. o comentário de sábado da 18ª semana do tempo comum, ano ímpar). O início é citado ainda em Mc, mas falta em Mt e Lc: “Ouve, Israel, Javé teu Deus é Um só Senhor” (Dt 6,4). Esta profissão de fé monoteísta, os judeus guardam por escrito em cápsulas e faixas de couro e a colocam na testa ou na entrada da casa. Como Deus é o único (ao contrário do politeísmo), ele exige toda atenção e adoração: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda tua alma, de todo o teu entendimento e com toda tua força” (Dt 6,5).

Mt reforça ainda: “Este é o grande (maior) e primeiro mandamento” (cf. Mc 12,31 que resume os dois).

O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’. Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (vv. 39-40).

Sem ser perguntado sobre o segundo mandamento, Jesus o acrescenta (como em Mc também), porque é uma unidade.

Do amor a Deus nasce o amor a suas criaturas.  “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18). Jesus não especifica aqui o significado da palavra “próximo” (em Lv 19,18 era o compatriota; em Lc 10,29-37 será o bom samaritano, ou seja, qualquer um, até o inimigo, cf. Mt 5,43-48p).

Estes dois mandamentos equivalem as duas tábuas do decálogo, deles “dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt já afirmou a mesma coisa sobre a regra de ouro em 7,12 que trará só do amor ao próximo). “Amar” exige mais empenho e criatividade do que “não ter outros deuses, não pronunciar o santo nome em vão”, ou “não matar, não furtar” etc.

Em todos os quatro evangelhos, Jesus coloca o amor (caridade) como critério soberano (cf. ainda Jo 13,34s; 15,12s17). Quem ama, não está mais longe de Deus, porque “Deus é amor” (1Jo 4,8.16; cf. 1Jo 3,11-24; 4,20-21).

O site da CNBB comenta: Deus não admite o amor a si sem que este amor se torne gestos concretos de caridade. É por isso que hoje vemos no Evangelho que o primeiro e maior mandamento traz consigo um outro que é semelhante a ele. O primeiro exige de nós o amor a Deus e o segundo exige de nós o amor ao próximo. Jesus nos diz que desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas. A partir daí podemos perceber porque São João nos diz na sua primeira epístola que quem ama não peca. Com isso, Jesus nos mostra que somente a plena vivência do amor nas suas duas dimensões, a Deus e ao próximo, pode conduzir verdadeiramente à santidade.

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