25 de dezembro de 2017 – Segunda-feira – Natal, Missa do dia

 

1ª leitura: Is 52,7-10

A 1ª leitura do dia de Natal anuncia uma notícia alegre (como o anjo aos pastores ontem à noite, Lc 2,10-12). O Segundo Isaías (Deuteroisaías) no exílio na Babilônia queria consolar e reanimar seu povo que estava oprimido e em depressão. Um hino de júbilo acolhe a notícia em Jerusalém, onde o “aqui estou” (significado hebraico de Yhwh – Javé) se torna realidade alegre. Repetindo vários temas de 40,1-10, convida a uma pausa maior. O poeta se concentra em dados visuais e auditivos, e avança com rapidez.

Como são belos, andando sobre os montes, os pés de quem anuncia e prega a paz, de quem anuncia o bem e prega a salvação, e diz a Sião: “Reina teu Deus!” Ouve-se a voz de teus vigias, eles levantam a voz, estão exultantes de alegria, sabem que verão com os próprios olhos o Senhor voltar a Sião (vv. 7-8).

Toda obra do Segundo Isaias, chamada “Livro da Consolação” (Is 40-55) é um “evangelho” (a palavra grega significa “Boa Notícia”, cf. 40,9). O profeta-poeta elogia os “pés”, porque na época as notícias não “corriam” pela internet, mas pelos próprios pés dos mensageiros. Os mensageiros que acorrem ao país pregando “paz… bem… salvação”, e os vigias que os avistam anunciam a “alegria”, isto é, a inauguração do reinado pessoal de Javé em Sião (Jerusalém).

O arauto é evangelista, como em 40,9, porque traz uma Boa Notícia. Nos salmos aparentados (96,10; 97,1; 98,9; 99,1) o reinado do Senhor é universal. O reinado (reino) de Deus vai substituir o dos reis terrestres (cf. a crítica da monarquia já em 1Sm 8), foi há muito anunciado pelos profetas (cf. 43,15; Jr 3,17; 8,19; Ez 20,33; 34,11-16; Mq 2,13; 4,7; Sf 3,15) e celebrado pelos “salmos do reino” (Sl 47,93; 96; 97; 98; 99; 145; 146). Jesus anunciará: “O reino (reinado) de Deus chegou” (Mc 1,14-15p), porém, não em Sião (colina do templo em Jerusalém), mas na sua pessoa (suas palavras e ações; cf. Lc 11,20; 17,20s; Jo 2,19-22; 18,36s).

Compare-se com a sentinela singular de 21,8. Aqui estão concentradas todas as sentinelas. “Verão com os próprios olhos” (ou: face a face: Nm 14,14) “o Senhor voltar a Sião”; transposição típica do segundo êxodo (cf. Ez 43,1-5).

Alegrai-vos e exultai ao mesmo tempo, ó ruínas de Jerusalém, o Senhor consolou seu povo e resgatou Jerusalém (v. 9).

Poeticamente, como um coro de pedras vivas, de ruínas ressuscitadas (cf. Ez 37,1-14). O livro do Segundo Isaías (Is 40-55) é chamado “Livro da Consolação”, porque inicia com “Consolai, consolai meu povo!” (40,1).

O Senhor desnudou seu santo braço aos olhos de todas as nações; todos os confins da terra hão de ver a salvação que vem do nosso Deus (v. 10).

“Desnudar o braço” tem o mesmo sentido de “cingir os rins” (cf. Ez 4,7): Javé agirá em favor dos exilados. “Paz”, “boa notícia” e “salvação” representam a sobrevivência social e econômica do povo (cf. Sl 128). A notícia de que “Deus reina” garante o fim da Babilônia. Todos os grupos de exilados em todas as nações verão a salvação de Deus (48,20; Sl 98,1-4; cf. 40,5; Lc 3,6).

O segundo Isaías alude à liturgia que se celebrava antes do exílio no ano novo (setembro/outono). Nesta, Javé entra em Sião (no templo) aclamado pela multidão (cf. Sl 47; 93; 96-99). Imaginava-se esta entrada do Deus invisível através da arca da aliança carregada pelos sacerdotes para dentro do lugar santíssimo do Templo, onde Deus subia a seu trono para criar um ano novo abençoado. A arca da aliança, porém, se perdeu na destruição de Jerusalém em 586 a.C (cf. Jr 3,14-16; 2Rs 25,8-17).

Para o Segundo Isaías, esta lembrança do antigo culto serve para ilustrar uma virada escatológica (no final). Sabe que Javé é rei desde sempre, mas no Antigo Oriente um rei não era como um administrador permanente. Sua realeza devia se mostrar através de ações públicas que só um rei podia realizar, e estas só quando subia ao trono que dava a ele poderes especiais. Estas ações de Javé Rei serão em benefício do seu povo, mas para este autor não é só isso: “todos os confins da terra” participarão.

 

2ª leitura: Hb 1,1-6

No dia do Natal, a leitura do NT e o evangelho nos dizem quem é este Jesus que nasceu no meio de nós e qual sua relação extraordinária para com Deus.

No final do primeiro século, um escriba ou orador cristão anônimo da segunda geração cristã (cf. 2,1.3) escreveu uma “exortação” (13,22) a uma comunidade. O estilo é bem diferente das cartas do apóstolo Paulo. No ocidente, a carta demorou a ser aceita no cânone do NT. Atribuiu-se esta exortação a Lucas, Barnabé, Priscila e outros. Lutero sugeriu Apolo (cf. 1Cor 1,12; 3,4-11.22; Tt 3, 13) cuja descrição em At 18,24-28 se encaixa bastante ao perfil do autor de Hb: origem judaica, educação helenista em Alexandria onde atuava o filósofo judeu Filon, conhecimento da escrituras e reputação de eloquência. Mas isso não basta para atribuir a carta a Apolo, pois estas características podem ser encontradas em outras pessoas apostólicas da época.

Um “sermão para cristãos desorientados” – é assim que poderíamos chamar esta “epístola de Paulo aos hebreus” que não é epístola, nem de Paulo, nem aos hebreus (A. Vanhoye).

O título “aos Hebreus” não faz parte do texto e foi escolhido, provavelmente, na hora de inserir o escrito numa coletânea de várias cartas. Este sermão se dirige a cristãos de longa data (cf. 5,12), talvez judeus antes do seu batismo. Imaginava-se que seria endereçado aos hebreus, por causa do uso abundante do AT (Antigo Testamento) e das referências ao culto no templo de Jerusalém. É o único escrito do NT que aplica a Jesus o sumo sacerdócio (2,17; 3,2 etc.). Poderia ser chamado “sermão sacerdotal”.

A diferença às cartas de Paulo se percebe já no início, que é um prólogo (cf. Jo 1,1-18) sem mencionar nomes de autores nem destinatários. No texto original em grego, os vv. 1-4 são uma única frase.

Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias, que são os últimos, ele nos falou por meio do Filho, a quem ele constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também ele criou o universo (vv. 1-2).

O início desta carta realça a posição superior de Jesus. Durante a história humana, Deus se comunicava, “falava de diversas maneiras”, através de intermediários (o que explica também as diversas religiões no mundo), “aos pais”, i.e. aos ancestrais de Israel, às gerações passadas. Até os cristãos de origem pagã tinham consciência de sua vinculação como o povo de Israel (cf. Rm 4,16-18; 11,17; 1Cor 10,1). Aos “profetas”, designados servos (Jr 7,25; 25,4; cf. 2Cr 36,15; Zc 1,4s) sucede um último mensageiro que é “Filho” (cf. Mc 12,2-6p). O autor não se refere apenas aos escritos dos profetas, mas cita de várias partes de todo AT, também da lei de Moisés (cf. Nm 12,6-8; Dt 34,10).

Em Jesus Cristo, Deus se revelou em pessoa e definitivamente. Ele é Filho de Deus não só por seu nascimento da virgem Maria, mas porque nele Deus falou em pessoa (não mais através de intermediários); “nestes dias que são os últimos” (Lit. “no fim destes dias”), ou pela expectativa de um fim próximo deste mundo (cf. 1Ts 1,10; 4,15; 5,1; 1Cor 1,7s; 7,29; 15,51s; etc.) ou pela revelação última e definitiva que se realizou em Jesus Cristo. É doutrina cristã, que a revelação de Deus está concluída em Jesus. Não há de esperar outra (cf. Mt 11,3p). Lit. “no fim dos dias” traduziu no AT grego o tempo da intervenção divina definitiva (cf. Ez 38,16; Dn 2,28.45; 10,14; Mq 4,1). Ao acrescentar “(n)estes”, Hb afirma que doravante este período final está presente; Cristo o inaugurou (cf. At 2,17; 1Cor 10,11; 1Pd 1,20).

Jesus não é como os profetas do AT (Antigo Testamento) que anunciaram a vinda do messias. Jesus é o messias (Cristo), é “Filho” (cf. Sl 2,7; 2Sm 7,14; Mt 16,13-16; Mc 12,1-11) e “herdeiro de todas as coisas”. Nele as promessas feitas “aos pais” alcançam sua realização final. Ele é o descendente privilegiado dos patriarcas (cf. Gn 15,3s; Eclo 44,21) e de Davi (Sl 2,8) a quem fora prometido o reino universal (cf. Dn 2,44; 7,14; Mt 1,1-17p; Lc 1,32s).

À esta tradição messiânica, o autor junta a tradição sapiencial: como a Sabedoria, o Filho é associado à criação do mundo, “pelo qual também criou o universo”.

Este é o esplendor da glória do Pai, a expressão do seu ser. Ele sustenta o universo com o poder de sua palavra (v. 3a).

“Esplendor” ou “expressão” é algo para ser visto (luz) e ouvido (palavra). Em Jesus se torna visível como Deus é (cf. Cl 1,15): não é como os ídolos, por ex. os deuses egípcios com cabeças de animais (por isso era proibido fazer imagens de Deus, cf. Ex 20,2-5). Jesus Cristo é o “rosto humano de Deus e rosto divino do homem” (João Paulo II, Ecclesia in América, n.67), o “esplendor da glória do Pai e expressão do seu ser”.

Percebe-se uma influência da tradição sapiencial (Sb 7,25-26 e Pr 8,27-31; Sb 7,21; 9,9) e de conceitos platônicos como no filósofo judeu Fílon de Alexandria (20 a.C – 54 d.C.) e no prólogo de Jo 1,1-18 sobre a preexistência do Verbo divino que se tornou visível (carne) em Jesus (cf. evangelho de hoje).

O poder divino é de tal porte que nenhum esforço lhe é preciso para “sustentar o universo”, basta-lhe uma palavra: “pela palavra do seu poder” (cf. Sl 33,6.9). Como Jo 1,1-18, Hb afirma que Deus falou definitivamente em Jesus Cristo, o qual é a palavra viva e concreta de Deus. Através dele Deus faz existir e salva toda criatura.

Tendo feito a purificação dos pecados, ele sentou-se à direita da majestade divina, nas alturas (v. 3b).

A carta falará ainda de Jesus como sumo sacerdote que nos purificou dos pecados pela oferta do seu próprio sangue (9,14.26). Por sua morte na cruz ele desfez os laços do pecado e realizou de uma vez por todas a purificação que todos os anos os judeus celebravam no yom kippur (dia da expiação/perdão; cf. 7,27; 9,7-14; Lv 16).

O autor apresenta a glorificação de Jesus de maneira tradicional inspirando-se em Sl 110,1: sentar-se/reclinar-se à direita, ao lado preferido do Pai, lugar superior a todos os outros seres habitantes do céu, com conotação celeste “nas alturas” (cf. Mc 14,62p: “nas nuvens”).

Ele foi colocado tanto acima dos anjos quanto o nome que ele herdou supera o nome deles (v. 4).

A posição superior de Jesus se confirma pelo nome (que representa a pessoa) que lhe foi dado. Como em Jo, o nome Jesus não é mencionado logo no início, só em 2,9; por enquanto fala do “Filho” ou aqui aludindo ao nome do Senhor.

Em Fl 2,9-11, Jesus foi sobre-exaltado de maneira que foi lhe dado um nome e todos os seres, também os celestes, dobrem os joelhos e confessem: “Jesus é o Senhor”. Este nome é kýrios (Senhor) e com este termo traduzia-se no AT grego o nome sagrado Yhwh (Javé), é uma afirmação indireta da divindade de Jesus (cf. At 2,36; Rm 10,9; Jo 20,28; Tt 2,13).

De fato, a qual dos anjos Deus disse alguma vez: “Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei”? Ou ainda: “Eu serei para ele um Pai e ele será para mim um filho”? (v. 5).

Para sustentar a filiação divina de Jesus, o autor cita Sl 2,7 (pronunciado sobre o rei na hora da sua posse) e 2Sm 7,14 (promessa de messias a Davi), cf. Rm 1,3-4; At 13,33.

Mas, quando faz entrar o Primogênito no mundo, Deus diz: “Todos os anjos devem adorá-lo!” (v. 6).

Deus se revela e se aproxima ao máximo de nós, “quando faz entrar o Primogênito entrar no mundo” (v. 6; cf. Lc 2,7.23; Cl 1,15.18). “Entrar no mundo” pode significar não só a encarnação, mas também a reintrodução de Cristo (sua volta, a parusia), pelo contexto, sua entronização na cidade celeste (cf. Ef 1,21s; Fl 2,9s).

Em Sl 89,27-28 se fala da entronização do rei como “primogênito”, o “altíssimo sobre os reis da terra”. Jesus é o altíssimo (sobre todos os anjos, v. 4), e “todos os anjos devem adorá-lo” (cf. Dt 32,43 grego). O “Filho de Deus” pode ser tratado como o próprio Deus (cf. vv. 8-9; cf. Jo 1,1; 20,28).

O Concílio de Niceia (325 d.C.) define: o Filho é consubstancial ao Pai (cf. Credo niceno-constantinopolitano): Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigénito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai; por Ele todas as coisas foram feitas. 

 

Evangelho: Jo 1,1-18

Ontem ouvimos como Jesus nasceu (Lc 2,1-14), hoje ouvimos quem é este que nasceu (Jo 1,1-18). O evangelho de João é diferente dos três evangelhos sinóticos: não nos apresenta genealogias e narrativas da infância de Jesus (como Mt e Lc), também não começa logo com o batismo de Jesus (como Mc), mas escreve como prólogo (introdução) um hino solene que menciona o nome de Jesus só no final.

Um hino não conta uma história em prosa, mas usa metáforas e símbolos; por ex. no hino nacional não se narra a história do Brasil nem se menciona Dom Pedro I, mas emprega expressões poéticas como “sol da liberdade”, “gigante pela própria natureza” para caracterizar o Brasil. Podemos comparar o prólogo também à abertura das grandes óperas musicais: a ouverture apenas dá as primeiras notas, passando brevemente por alguns do motivos mais significativos da obra.

O prólogo de Jo parece ter sido composto em dois tempos: um hino a Cristo, celebrado como Verbo divino – hino lembrando as feições da liturgia em Éfeso (Cl 1,15; 1Tm 3,16; Hb 1,3-4) – teria sido ampliado pelo evangelista para indicar alguns temas essenciais da sua obra. O hino na sua forma anterior apresentava três partes: a Palavra na Criação (vv. 1-5), a Palavra em Israel (vv. 10-12) e a Palavra encarnada em Jesus (vv. 14.16-18).

O prólogo de João é um hino que mostra que Jesus não é só homem nascido há 2000 anos, mas é divino e preexistente. Já existia “no princípio” (primeiras palavras da Bíblia, cf. Gn 1,1), “antes da criação do mundo” (cf. Fl 2,5-11; Hb 1,1ss; 1Jo 1,1ss). Ele é “a Palavra” (o Verbo, Logos em grego), com a qual Deus já criou o universo (Gn 1); “veio para os seus” em Israel (v. 11; já no AT nem sempre foi bem acolhida) e se “encarnou” em Jesus que nos revela Deus perfeitamente (vv. 14.18).

Os vv. 6-8.15 sobre João Batista interrompem o hino cristológico (na versão mais breve da liturgia estes vv. são omitidos, também os vv. 16-18), fazem o elo para a narrativa seguinte, mas indicam também que havia certa disputa entre os discípulos de João e os de Jesus (1,8.15.19-35; 3,23-4,1; 5,33-36; 10,41; cf. At 19,1-7; Mc 2,18-22).

José Luiz Gonzaga do Prado (Vida Pastoral, nov./dez. 2016) compara a estrutura do hino a um sanduiche: O hino já era estruturado de acordo com a retórica semita (o paralelismo quiástico ou cruzado), em que o primeiro tópico está em paralelo com o último, o segundo com o penúltimo, e assim por diante. Podemos compará-lo a um sanduíche, aqui bem grande: nos dois extremos, duas fatias de pão, depois duas fatias de queijo, duas folhas de alface, duas fatias de tomate etc. e, no centro, a carne ou presunto, o que é mais suculento.

O evangelista apenas acrescentou ao hino duas referências a João Batista, que não era a luz, como poderiam pensar discípulos seus, mas, ao contrário, testemunhou que Jesus, que veio depois, é anterior a ele. No entanto, o evangelista fez isso respeitando a estrutura anterior do hino. Inseriu as duas observações sobre o Batista em dois pontos que se correspondiam, mantendo inalterado todo o restante do poema. Fez como se, no nosso grande sanduíche, colocasse mais duas rodelas de ovo, uma de um lado e outra do outro. Basta observar que, retirando as duas referências ao Batista, a sequência das ideias corre melhor. Não é difícil notar neste esquema a estrutura do hino:

Na Criação                                                                               Na Nova Criação

O VERBO                                                                                 O FILHO

A – em Deus (vv. 1-2)                                                         A’ – no Pai (v. 18)

   B – na Criação (v. 3)                                                    B’ – Na Graça (v. 17)

     C – luz para os homens (vv. 4-5)                         C’ – plenitude para nós (v. 16)

        D – o Batista (vv. 6-8)                                    D’ – o Batista (v. 15)

          E – vem ao mundo (vv. 9-11)                  E’ – encarna-se (v. 14)

             F – e deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus

No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus. No princípio estava ela com Deus. Tudo foi feito por ela e sem ela nada se fez de tudo que foi feito (vv. 1-3).

Os inícios dos quatro evangelhos inspiraram Stº. Irineu e outros teólogos dos sec. III e IV para relacioná-los aos quatro seres do Ap 4,6-7 (cf. Ez 1,5-21, cf. suas imagens na gruta de Bom Jesus da Lapa): Mc ao leão (uma voz grita no deserto, João Batista), Lc ao touro (o sacrifício no templo por Zacarias), Mt ao rosto de homem/anjo (genealogia de Jesus desde Abraão) e Jo à águia (a palavra de Deus está com Deus, no céu, voando em círculos).

Jo repete as primeiras palavras da Bíblia, “No princípio” (Gn 1,1), e resume aquele relato da criação (Gn 1,1-2,4) com a “Palavra” com a qual Deus criou o universo (e em v. 14 será identificada com Jesus). Deus criou tudo com sua palavra (v. 3); é ressonância de Sl 33,6 (cf. 148,15). “Tudo” mesmo, não há dois princípios na criação (em chave polêmica, cf. Is 45,7).

Se Deus criou o mundo com sua Palavra, então ela já estava presente antes da criação, junto de Deus. Já no AT encontra-se o mesmo pensamento sobre a “sabedoria” de Deus que existe antes da criação; ela convida como uma pessoa e mora entre os homens (Pr 1,20-33; 3,16-19 e 8): é a Sabedoria personificada e preexistente (Pr 8,12-36; Sb 7,2-8,1). Em Eclo 24, esta sabedoria é identificada com a Lei de Moisés (cf. Jo 1,17). Jo a identificará com Jesus Cristo, palavra viva de Deus (vv. 14.17).

Jo ainda identifica o logos (verbo, palavra, sabedoria) com o próprio Deus: “a Palavra era Deus” (um dos poucos vv. do NT que falam explicitamente que Jesus é Deus, cf. 20,28; Hb 1,8; Tt 2,13; cf. Credo niceno-constantinopolitano: “Deus de Deus, luz da luz”)

Logos” em grego significa um verbo/discurso que tem lógica, sentido e coerência. Bento XVI escreveu sobre isso: “A Palavra de Deus impele-nos a mudar o nosso conceito de realismo: Realista é quem conhece o fundamento de todo no Verbo de Deus… Mais cedo ou mais tarde, o ter, o prazer e o poder manifestam-se incapazes de realizar as aspirações mais profundas do coração do homem” (Verbum Domini n.º 10). Portanto, a fé é a resposta certa do homem à Palavra (logos) de Deus (cf. Verbum Domini n.º 22ss). No discurso do Papa Bento XVI, fé e razão (pensar e falar de maneira “lógica”, coerente, não irracional) não se contradizem, mas se complementam: a razão não é somente uma observação cientifica, é também pensamento filosófico (p. ex. a ética) que não exclui a existência e revelação de Deus.

É verdade que a ciência tem um método “ateísta”, ou seja, pesquisa as causas naturais sem recorrer a explicações sobrenaturais, mas a causa da própria “natureza” fica em aberto: não pode “nascer/vir” do nada, porque de nada, nada se faz!  Não pode existir prova científica da existência de Deus, porque, segundo Aristóteles, só se pode provar algo através de princípios/autoridades maiores, mas: quem é maior que Deus? Também não existem provas da não-existência de Deus. Ateísmo é uma crença, não pode provar com certeza que Deus não existe, só pode achar/crer, que “Deus provavelmente não existe, curta sua vida” (o lema de uma campanha ateísta recente).

Há certa coincidência na teoria do “Big Bang” (grande explosão primordial que gerou o universo há 13 bilhões de anos) e da Palavra de Deus no princípio criador de tudo? A ciência revela detalhes maravilhosos sobre o universo, mas qual a origem e o sentido de tudo? É a fé que revela o sentido profundo, o rosto divino por trás da criação e a meta da sua evolução. O Big “Bang” é apenas um barulho, ganha sentido e lógica com a “Palavra” de Deus.

Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la (vv. 4-5).

“Vida” e “luz” são dois conceitos frequentemente vinculados no AT (p. ex. Sl 36,10; 56,14; Jó 3,16). Nesse ponto surge o dualismo dramático de João: frente à luz (de vida e revelação), umas “trevas” que a rejeitam, que não deixam penetrar (cf. 3,19-21; 8,12 etc.). A luz (o Bem, o Verbo) escapa ao domínio das Trevas (o Mal, as potencias do mal; cf. 7,33s; 8,12; 8,21; 12,31.32; 14,30; 1Jo 2,8.14; 4,4; 5,18). Outros traduzem: “e as trevas não a compreenderam”.

Surgiu um homem enviado por Deus; Seu nome era João. Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos chegassem à fé por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz: (vv. 6-8).

Os vv. 6-7 são uma parêntese sobre a missão de João Batista; também v. 15 (cf. Mt 3,1p; etc.). Historicamente João é o precursor de Jesus. Será personagem importante na primeira parte do evangelho. Como uma sentinela que aguarda a aurora para gritar que é dia (Sl 130,6-7; Jr 31,6), assim João anuncia, como “testemunha”, a chegada da luz. O símbolo da luz domina esse evangelho, junto com a da vida (cf. vv. 4-5; 8,12).

(d)aquele que era a luz de verdade, que, vindo ao mundo, ilumina todo ser humano (v. 9).

Ou: Era a luz verdadeira, que ilumina todo homem e vinha ao mundo. A “verdade” é outro termo importante neste Evangelho (cf. 14,6,17; 15,26; 16,13; 19,37s etc.).

A Palavra estava no mundo – e o mundo foi feito por meio dela – mas o mundo não quis conhecê-la (v. 10).

A luz autêntica e universal estava chegando ao mundo para uma revelação especial (Sl 57,12). O mundo criado pelo logos era bom (Gn 1,31; Cl 1,10), mas esse mundo, por livre escolha, “não reconhece” a luz (cf. Rm 1,20s) e assim se torna mau. No evangelho, “mundo” terá com frequência essa conotação negativa. O “mundo” tanto pode designar o universo ou a terra, como o gênero humano ou o conjunto dos homens que resistem a Deus e perseguem, com ódio, a Cristo e a seus discípulos (cf. 7,7; 15,18.19; 17,14). Nesse último sentido, João aproxima-se da oposição, comum no judaísmo, entre “este mundo” (8,23; …), submetido ao poder de Satanás e ao mal (12,31; 14,30; 16,11; 1Jo 5,19), e o “mundo vindouro”, que ele designa às vezes com o nome de “vida eterna” (12,25). No momento, os discípulos devem permanecer no mundo, embora não sejam do mundo (17,11.14s; cf. o sentido pejorativo de “terra” em Ap 6,15; 13,3.8; 14,3; 17,2.5.8; cf. também Rm 8,18-22).

Veio para o que era seu, e os seus não a acolheram (v. 11).

“Os seus” admite duas leituras: ou a humanidade inteira (como em Eclo 24,6-7; Br 3,20-21), capaz de receber ou recusar, ou o povo escolhido que não acolheu o Filho de Deus (cf. Lc 2,7), os “judeus” (2,18; … 19,7.12 etc.). A segunda interpretação significa um estreitamento do horizonte.

Mas, a todos que a receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus isto é, aos que acreditam em seu nome, pois estes não nasceram do sangue nem da vontade da carne nem da vontade do varão, mas de Deus mesmo (vv. 12-13).

A palavra é acolhida pela fé e concede a filiação divina, que supera a humana, carnal (cf. Sb 7,2), porque pertence à outra ordem, espiritual. Alguns manuscritos e comentaristas antigos leram “este nasce…” referindo-o ao nascimento virginal de Jesus. Mas a frase inteira alude à geração eterna do Verbo e com isso, ao nascimento virginal de Jesus (cf. Mt 1,16.18-23; Lc 1,26-38); “nem do sangue nem de uma vontade do homem”; o texto original é talvez o curto: “nem do sangue nem da carne”. Os que creem no Filho de Deus (3,15s) tornam-se filhos de Deus e herdeiros do reino e da vida eterna (cf. Mt 5,9; 6,9; etc.; Rm 8,14; Gl 3,26; 4,5; Tg 1,27; 1Jo 3,1).

E a Palavra se fez carne e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória, glória que recebe do Pai como filho unigênito, cheio de graça e de verdade (v. 14).

Finalmente, o Verbo eterno (Logos) se apresenta em pessoa, toma “carne (en-carna-ção), se faz simples homem (Gl 4,4); o tema da carne retorna em passagens importantes do NT (cf. Rm 1,3; 8,3; Tm 3,16). A “carne” designa o homem na sua condição de fraqueza e mortalidade (cf. 3,6; 17,2; Gn 6,3; Sl 5,5; Is 40,6). O emprego desse termo (cf. Rm 7,5 etc.) sublinhar o realismo da vinda do Filho na humanidade, que João não cessa de pôr em evidencia. Mais tarde fala-se de “encarnação” (cf. 1Jo 4,2; Jo 7 e em Paulo: Rm 1,3; Gl 4,4; Fl 2,7; Cl 1,19).

“Habitou entre nós”, lit. “armou a tenda” onde se manifesta sua “glória”. Não como no templo feito por homens: “Então a nuvem cobriu a tenda do encontro e a glória do Senhor encheu o santuário” (Ex 40,34-35; 1Rs 8,11; Ez 44,4), mas como “Filho único do Pai”; como um Filho único que herda tudo; cf. “tudo o que é teu é meu” (Jo 17,10). O seu corpo é o novo templo (cf. 2,21). À presença invisível e temível de Deus na tenda ou no templo da antiga aliança (Ex 25,8; cf. Nm 35,34) e à presença espiritual da sabedoria em Israel, pela lei de Moisés (Eclo 24,7-22; Br 3,36-4,4), segue-se, pela encarnação do verbo, a presença pessoal e sensível de Deus entre os homens.

A “glória do Senhor” designa a manifestação visível do mistério divino (Ex 13,22; 24,6; 40,34s; 1Rs 8,10s; Ez 1,28; 9,3; 43,1 etc. e Rm 3,23; 9,4; 2Cor 4,6 …). Seu fulgor temível, que nenhum ser vivo podia contemplar (Ex 33,20), estava velado outrora pela nuvem e agora pela humanidade do verbo encarnado; ela transparece, no entanto em certas ocasiões como na transfiguração (cf. Lc 9,32.35, alusão aqui?) ou por milagres (em Jo “sinais” de que Deus permanece e age em Cristo, cf.  2,11; 11,40; cf. Ex 14,24-27; e 15,7; 16,7s), aguardando a plena manifestação de ressurreição (cf. 17,5).

“Graça e verdade” (vv. 14.17) correspondem a “graça (ou amor misericordioso) e fidelidade”, na definição que Deus dá de si mesmo a Moises (Ex 34,6; cf. Os 2,16-22). Pode se traduzir também “lealdade e fidelidade”. Parece provável que o texto do prólogo tenha adapto esta dupla clássica em hebraico de atributos divinos: hesed we’emet, que admitem uma gama de traduções (basicamente, leal à pessoa, fiel à sua palavra); favor estável, bondade constante, amor fiel… Na Palavra feita homem reside a plenitude da divindade (Cl 2,9) na forma de seus dois atributos insignes, proclamados pessoalmente pelo Senhor e que condensam em fórmula litúrgica (Ex 34,6 par.).

Dele, João dá testemunho, clamando: “Este é aquele de quem eu disse: O que vem depois de mim passou à minha frente, porque ele existia antes de mim” (v. 15).

Um personagem não apresentado (“este é aquele”) e uma citação ainda não aparecida mostram esse versículo é inserção de engate. Sua identificação virá em 1,30. Afirma a precedência cronológica e autoridade do Logos (cf. 3,27-36). Ou seja, o testemunho do Batista (“antes de mim”) coincide com o ensinamento do evangelista, este, porém, remontou ao “princípio” da criação (v. 1).

De sua plenitude todos nós recebemos graça por graça (v. 16).

Liga-se com 14b na primeira pessoa do plural, “nós” (cf. 1Jo 1,1-4). Não deve causar estranheza a passagem, pois no hino à Sabedoria de Eclo também se passa no fim à primeira pessoa, com o tema do receber (Eclo 24,30-34). Afirma que o Logos feito homem é o mediador de todo dom divino.

A tradução da última parte, “graça por graça”, pode ter vários significados: “uma graça correspondendo uma graça (que está no Filho único)” ou: “uma graça (a da nova aliança) em lugar de uma (outra) graça (a da antiga aliança)”, outra tradução: “graça sobre graça”.

Pois por meio de Moisés foi dada a Lei, mas a graça e a verdade nos chegaram através de Jesus Cristo (v. 17).

Explicitamente contrapõe dois testamentos ou duas economias. Moises promulgou uma lei (Ex 31,18), cujo conteúdo era a bondade nas relações com Deus e com o próximo; preceitos e proibições que não conseguiram realizar o que continham (cf. Rm, Gl). Aquele mandamento externo tornou-se realidade em e por Jesus Cristo.

Finalmente se pronuncia o nome até aqui evitado, identificando-se o Verbo (Palavra, Logos) feito homem com “Jesus” de Nazaré, o “Cristo” (Messias). Não se deve mais olhar para a lei como modelo de conduta, mas para a pessoa (exemplo, 13,14s.34) de Jesus.

A Deus, ninguém jamais viu. Mas o Unigênito de Deus, que está na intimidade do Pai, ele no-lo deu a conhecer (v. 18).

Moisés pedia para ver Deus, “mostra-me tua glória”, mas não conseguiu (Ex 33,18-20), porque “não podes ver meu rosto, porque ninguém pode vê-lo e continuar vivo”. Só o Filho “unigênito” o conhece por sua relação intima, e veio para descrevê-lo. Com essa frase se levanta a cortina do evangelho: o que se segue é essa “exegese” de Jesus Cristo em fatos e palavras: Jesus nos revela quem é Deus de verdade. Outros traduzem: “Deus Filho único”, afirmando a divindade de Jesus (cf. 20,28).

Jesus é “Filho unigênito” (1,14.18; 3,16-18), amado pelo Pai (15,9; 17,23), em intimidade perfeitamente recíproca com ele (10,30-38; 14,10-11; 17,21) no conhecimento e no amor (5,20,30; 10,15; 14,31; cf. Mt 11,27p).

O que a ciência chama de “Big Bang” como origem do universo, nós chamamos a “Palavra” de Deus. Jo quer dizer que este “Big Bang” está agora no presépio, no menino Deus está concentrada toda energia do universo. Mas não é uma criança “explosiva” com tensão para violência, sim um menino “cheio de graça e verdade”, amor e fidelidade. Em Jesus, o poder de Deus se revela como amor que quer se unir as pessoas humanas.

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