25 de fevereiro de 2018 – Quaresma 2º Domingo Ano B

 

Leitura: Gn 22,1-19

Nas primeiras leituras dos próximos domingos da Quaresma percorremos a história da salvação, ouvimos sobre a aliança com Noé (Gn 9) no domingo passado, e hoje, no 2º domingo, sobre o sacrifício de Abraão, o cume da narrativa sobre a fé deste homem a quem Deus prometeu dar descendência apesar da idade dele e da esterilidade da sua esposa Sara.

No entanto, com este casal começa uma nova história (situada na idade de bronze, cerca de 1800 a.C.), a eleição de um pequeno grupo de pessoas, os patriarcas e matriarcas, que formarão o povo de Deus, Israel. Deus chamou Abraão aos setenta anos para sair da terra dele e prometeu terra e descendência. Com fé, o patriarca saiu da Mesopotâmia (atual Iraque e Síria) e entrou na terra de Canaã (atual Israel e Palestina) como nômade (cf. Gn 12-15). Quando Abraão já tinha cem anos, Deus cumpriu sua promessa, e o filho de Abraão e Sara, Isaac, nasceu (21,1-7).

Com a rivalidade que poderia surgir entre o Ismael, filho mais velho de Abraão com a escrava Agar, e Isaac, filho de sua esposa Sara (conforme a promessa de Deus em 17,15-21), Agar e Ismael tinham que tomar outro rumo, foram ao deserto (21,9-21; cf. o paralelo no cap. 16). Na leitura de hoje, toda promessa é colocada em cheque com o sacrifício de Isaac.

A intervenção de Deus no princípio e no final é o marco que envolve e ilumina a narração. A ignorância do protagonista é parte da prova; a não-ignorância do leitor a respeito de Abraão ou deste a respeito do filho, é fonte de ironia dramática: Abraão obedece, mas o diálogo está carregado de duplo sentido.

Deus pôs Abraão à prova. Chamando-o, disse: “Abraão!” E ele respondeu: “Aqui estou”. E Deus disse: “Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre um monte que eu te indicar” (vv. 1-2);

O autor define o relato como uma “prova” (cf. Dt 8,3-6; 13,3-4); pela prova se comprova. A prova de Abraão não é simplesmente o sacrifício de um filho, mas deste filho “único” depois da partida de Ismael (o grego traduz único por “querido, amado”, termo que reencontramos no Novo Testamento a respeito de Jesus; cf. Mc 1,11p; 12,6p).

Isaac é dom particular de Deus, “prova” de seu amor onipotente; é a promessa cumprida, a palavra feita carne e osso. O velho patriarca devia sacrificar um filho que “tanto ama” e uma promessa cumprida que reconhece; e tem de continuar crendo e esperando. Deus já exigiu que Abraão deixasse a sua terra e sua família prometendo-lhe terra e descendência (12,2-3.7, etc.). Abraão obedeceu e saiu; mas agora parece ser uma exigência mais absurda, sem sentido. “Creio por que é absurdo” disse Tertuliano. “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos … oráculo do Senhor” (Is 55,8).

O sacrifício será no estilo do “holocausto”: mata-se a vítima que se deixa consumir inteiramente no fogo (Lv 18,21). Praticava-se entre os semitas do oeste (cananeus etc.) o sacrifício dos primogênitos, por ex. em casos de certa aflição: o homem oferece o que tem de mais caro (cf. 2Rs 3,27; até em Israel: 2Rs 16,3; 23,10; Mq 6,7; Jr 7,30s). Abraão, porém, veio dos semitas do leste (Ur dos caldeus, cf. 11,31; 15,7), onde tais sacrifícios não eram praticados. Deus quer que Abraão assuma os costumes da região, ou quer se mostrar igual exigente do que os deuses dos cananeus?

A Nova Bíblia Pastoral (p. 41s) comenta: O culto dos reis ao deus Moloc ou a outras divindades pode ter incluído sacrifícios humanos em Israel (1Rs 16,34), Judá (Lv 18,21; 20,2-5; 2Rs 16,3; 21,6; 23,10) e seus vizinhos (2Rs 3,27; 17,31). A base de Gn 22,1-19 é a rejeição desta prática pelos pastores (por temor a Deus/Elohim, v. 12) e camponeses (“na montanha Javé providenciará”, v. 14). Tal compreensão libertadora de Deus ressoa nos profetas (Is 57,5; Jr 7,31; 19,5; Ez 16,20-21; 23,37.39) e em Jesus (Jo 8,37-44; 10,10; 16,2-3). Apesar de aqui ser usada para reforçar os méritos de Abraão e as promessas em favor dos seus descendentes (22,15-18), a força sagrada desta narrativa está na divindade que quer a vida e não a morte (Jo 10,10).

Uns comentários de rabinos (entre 70 e 700 a.C.) questionaram a palavra grega “holocausto” e supõem um mal-entendido: Deus teria mandado apenas de “levar Isaac para elevação” (cf. Jr 35,2); em hebraico, o substantivo olah (sacrifício de fogo, holocausto) e o verbo alah (subir, elevar para cima) são da mesma raiz de palavras. Deus só queria expressar amor e proximidade (Isaac estaria mais perto de Deus no monte).

Em 2Cr 3,1 identifica-se “Moriá” com a colina de Sião em que Salomão construiu depois o templo de Jerusalém, lugar dos sacrifícios para os judeus durante mil anos. Hoje um santuário muçulmano (o santuário da rocha com a cúpula dourada) se ergue no lugar. Uma tradição cristã posterior identificou Moriá com o calvário. Mas o texto fala de “monte” só em v. 14, aqui fala de uma “terra (país)” de Moriá, nome que não apareceu em nenhum outro lugar; o lugar do sacrifício ficou desconhecido.

Uns comentários de rabinos falam também da dor da mãe, Sara. De fato, a Bíblia conta a morte e sepultura de Sara logo em seguida (cap. 23). Nesta perspectiva é ela a vítima por seu amor de mãe e torna-se ancestral de muitas outras mulheres judias que sofreram pelos seus maridos, filhos, pais e irmãos. Os rabinos e os artistas que retrataram a cena variam sobra a idade de Isaac neste sacrifício. Era criança ou já homem? Sara o concebeu com 90 anos; mas na morte dela com 127 anos (23,1-2), Isaac já tinha 37 anos.

Nossa liturgia omitiu os vv. 3-8, o diálogo entre Abraão e Isaac (cf. comentário da 5ª feira da 13ª semana do Tempo comum).

Chegados ao lugar indicado por Deus, Abraão ergueu um altar, colocou a lenha em cima, amarrou o filho e o pôs sobre a lenha em cima do altar. Depois, estendeu a mão, empunhando a faca para sacrificar o filho (vv. 9-10).

Abraão já tinha construído vários altares nos lugares por onde passou (cf. 12,7.8; 13,18), mas agora sacrificar seu filho, será que Deus quer isso mesmo? Por causa deste verbo “amarrar”, os judeus chamam o episódio de “atadura de Isaac”. Além da fé de Abraão, os comentários dos rabinos destacam a disposição de Isaac para sacrifício.

O narrador deixa implícito que o menino não opõe resistência. O “amarramento” de Isaac desempenha um grande papel na piedade e rito judaico. Os Padres verão no sacrifício de Isaac que carregou a lenha uma prefiguração do sacrifício de Cristo, o filho “único, querido” (Mt 3,17; Mc 12,6; cf. Hb 11,17-19), na lenha da cruz. O Alcorão (livro sagrado do islã) alude a esta cena sem dizer o nome do filho que Abraão (Ibrahim em árabe) deve imolar; na tradição muçulmana, não é Isaac, mas Ismael que Deus pede a Abraão em sacrifício (Ismael é o ancestral dos árabes; cf. cap. 16).

E eis que o anjo do Senhor gritou do céu, dizendo: “Abraão! Abraão!” Ele respondeu: “Aqui estou!”. E o anjo lhe disse: “Não estendas a mão contra teu filho e não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu filho único”. Abraão, erguendo os olhos, viu um carneiro preso num espinheiro pelos chifres; foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto no lugar do seu filho (vv. 11-13).

Na Bíblia, é a segunda intervenção do “anjo do Senhor” que representa Yhwh (Javé – Senhor). Na primeira, Deus salvou a vida de Agar e seu filho (16,7-12; cf. 21,15-19: “anjo de Deus”). Aqui, Javé providencia outra vítima: um “carneiro” que Abraão oferece em holocausto “no lugar do filho”, como no resgate de primogênitos (Ex 12,13-15).

Lido a luz da história das religiões, este capítulo registra a descoberta de que Deus não quer sacrifícios humanos. A origem de toda esta narrativa dramática pode ser um relato de fundação de santuário israelita no qual, diferentemente dos santuários cananeus, não se ofereciam vítimas humanas. A narrativa atual justifica a prescrição ritual do resgate dos primogênitos de Israel: estes, como todas as primícias, pertencem a Deus, todavia não devem ser sacrificados, mas resgatados, oferecendo um animal “em lugar do filho” (Ex 13,13; 34,19-20; Nm 3,13). A narrativa implica, pois, a condenação, tantas vezes pronunciadas pelos profetas, dos sacrifícios de crianças (Lv 18,21; Dt 12,31; 18,10; 2Rs 3,27; 16,3; 17,31; 21,6; Jr 7,31; 19,5s; 32,35; Ez 16,20s; 20,25; Sl 107,38; Sb 14,23).

E acrescenta-se uma lição espiritual mais elevada: o exemplo da fé de Abraão, que aqui atinge seu ponto culminante. O patriarca se torna na tradição bíblica o modelo do justo que obedece pela fé (Eclo 44,20; Sb 10,5; Hb 11,17; Tg 2,21). Como Jó, ele aceita que Deus pode tirar o que deu (Jó 1,20). Em Hb 11,17, Abraão diz: “Deus é capaz também de ressuscitar os mortos.”

O anjo do Senhor chamou Abraão, pela segunda vez, do céu, e lhe disse: “Juro por mim mesmo – oráculo do Senhor -, uma vez que agiste deste modo e não me recusaste teu filho único, eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar. Teus descendentes conquistarão as cidades dos inimigos. Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque me obedeceste” (vv. 15-18).

O anjo do Senhor, que representa o próprio Javé, renova as promessas divinas dos caps. anteriores (12,2s.7; 13,15s; 15,5.18; 17,4-8.15-21; 18,10.14), acrescentando “como as areias do mar” e o tom militar no v. 17: “Teus descendentes conquistarão as cidades dos inimigos” (lit. a porta dos inimigos; cf. 24,60; possível alusão a ocupação da Palestina em Js ou a conquista de Jerusalém por Davi, 2Sm 5). ”Juro por mim mesmo – oráculo do Senhor” (v. 16) é citado por Hb 6,13: “Não havendo um maior por quem jurasse, jurou por si mesmo”.

No antigo Israel, Abraão e Isaac eram venerados como ancestrais do sul, enquanto Jacó-Israel e José eram venerados como ancestrais do norte. As bênçãos e promessas foram utilizados pelos redatores para interligar estas tradições e criar a unidade do povo através da unidade da narrativa. Como os redatores eram do reino do sul (Judá), as tradições de Isaac e Jacó-Israel eram subordinadas ás tradições de Abraão, apresentado como patriarca de todo o povo.

Para os judeus, a “atadura de Isaac” continua nas diversas perseguições dos judeus ao longo da história (por ex. durante as cruzadas ou no “holocausto” nos campos de concentração pelos nazistas). A narrativa de Gn 22 é modelo para lidar com um sofrimento incompreensível e pode dar sentido e dignidade a um martírio, incluindo as vítimas de todos tempos do povo de Deus. É como se Abraão, Sara e Isaac ainda andassem pela nossa terra.

Os cristãos veem no sacrifício de Isaac um modelo para o Cristo atado na madeira da cruz. Chegou o dia em que Deus aceitou o sacrifício humano, mas não de um filho alheio, sim do seu próprio, Jesus, como expressão de seu amor ao ser humano e para salvá-lo. Em penhor de amor, o Pai não reservou a si seu Filho único, mas o entregou para salvação do mundo (Jo 3,16; Rm 8,32).

A tradição unânime da Igreja viu em Isaac um tipo de Cristo que se sacrificou “uma vez por todas” (Hb 7,27; 9,12.26.28; 10,10.12.14; Rm 6,10; 1Pd 3,18). Cristo carregou conscientemente a madeira da cruz ao Calvário (Jo 19,17; Mc 15,21-22p). Ele é o verdadeiro “Cordeiro” imolado (Jo 1,29.36; Ap 5,6) para o resgate de muitos (Mc 10,45; Mt 26,28; Is 53). Assim vemos uma evolução histórica de culto: os sacrifícios pagãos de seres humanos foram substituídos pelos sacrifícios de animais (cordeiros e outros) no culto judaico do Templo de Jerusalém e depois, estes pelo Corpo de Cristo oferecido na cruz, uma vez por todas, repetido de maneira sacramental (sem matança) e atualizado nos altares da Igreja.

2ª leitura: Rm 8,31b-34

O capítulo central da carta aos Romanos encerra com um espécie de canto triunfal ao amor que Deus Cristo nos tem. Por ele podemos vencer em qualquer processo que nos submetem, podemos derrotar os mais fortes inimigos coligados. Os vv. 35-39 (omitidos por nossa liturgia) inspiraram o canto “Quem nos separará”.

Se Deus é por nós, quem será contra nós? (v. 31b).

“Estar contra” e “acusar” ou ser fiscal é em hebraico o verbo satan (daí “satanás”; cf. Jó 1-2e Zc 3).

Deus que não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com ele? (v. 32).

Alude ao sacrifício de Isaac por Abraão em Gn 22,12.16 (cf. primeira leitura); com sua atitude, o patriarca demonstrou maior respeito a Deus.

Quem acusará os escolhidos de Deus? Deus, que os declara justos? Quem condenará? Jesus Cristo, que morreu, mais ainda, que ressuscitou, e está, à direita de Deus, intercedendo por nós? (vv. 33-34).

É como um credo sintetizado (cf. 1Cor 15,3-8; Rm 10,9). Cita Sl 110,1 para expressar a exaltação de Jesus.

 

Evangelho: Mc 9,2-10

Este evangelho sempre é lido no segundo domingo da Quaresma e repetido na festa da Transfiguração do Senhor (06 de agosto, na versão do evangelista do ano A, B ou C). Depois da profissão de Pedro (8,29 “Tu és o Cristo”) e o anúncio da paixão, a transfiguração ilumina a subida do messias a Jerusalém. Talvez a tradição oral (pré-sinótica, antes de Mc) tenha narrado a transfiguração neste contexto.

A alguns dos seus discípulos, que não podem compreender o caminho que seu mestre quer seguir (cf. a reação deles em 8,27-30; 9,32-37; 10,32-40), Deus faz vislumbrar a glória misteriosa do seu Filho e exige deles que escutem seu ensinamento. O relato segue esquema primitivo de uma revelação do gênero apocalíptico (cf. Dn 10,1-6; Mt 17,2). A interpretação não é fácil, porque não se sabe bem a origem desta história que alude a muitos motivos do AT.

Nos vv. anteriores, Jesus anunciou sua paixão, morte e ressurreição e convidou a seguir o caminho da cruz (vv. 8,31-38) terminando com uma frase enigmática: “Alguns não morrerão antes de ver o reino de Deus” (9,1). Esta palavra de Cristo implica evidentemente que certos contemporâneos de Jesus não morrerão antes da manifestação gloriosa do Filho do Homem. Com todos os profetas, Jesus anuncia o que deve acontecer para sua geração. Mas é difícil determinar a época desta informação. Uns pensaram na ruína de Jerusalém em 70 d.C., outros nas aparições do ressuscitado, outros ainda na transfiguração, que Pedro, Tiago e João testemunham logo em seguida.

(Naquele tempo,) Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha (v. 2a).

A costumeira introdução da liturgia (“Naquele tempo“) deve ser substituída pelo texto original que tem “Seis dias depois”. No contexto do evangelho, esta indicação parece não ter maior valor cronológico, mas este pormenor pode aludir ao transcurso da Festa das Tendas, festa alegre e popular (Ex 28,16; Lv 23,28-34; Dt 16,13), que começava “seis dias depois” do grande dia das Expiações (Yom kippur, cf. Lv 16) e durava sete dias (Lv. 23,34.36). A reação de Pedro em v. 5, poderia se referir a isso.

Em Mc, Jesus costuma instruir seus discípulos “sozinhos”, “à parte” da multidão (cf. 3,13s; 4,10s.34; 7,17). Entre os doze apóstolos, há um grupo mais íntimo, “Pedro, Tiago e João” (1,16-20; 5,37; 10,35-37; 13,3) que estarão com Jesus também na oração na horta das Oliveiras (14,33).

Na tradição, a “montanha alta” da transfiguração é o monte Tabor (593m) perto de Nazaré. Outros pensam num monte mais alto e mais perto do lugar mencionado nos vv. precedentes Cesareia Filipe (8,27), onde aconteceu a profissão de fé de Pedro. Deste lugar no norte de Israel, se vê o monte Hermon (2840m) no Líbano (Líbano significa brancura), sempre coberto de neve. Lá nasce o Rio Jordão. Mas a “montanha alta” da transfiguração pode ser simbólica: Junto com Moisés (Ex 3; 19-20; 24) e Elias (1Rs 19) lembra o monte Sinai/Horeb, onde Deus se manifestou em raios e nuvens e falou ao seu povo (Ex 19,16; 20,18-21). Em Ex 24,1.9.15s, Moisés subiu ao monte Sinai também com três homens escolhidos, o monte estava coberta de uma nuvem; no sétimo dia, Deus o chama de dentro da nuvem. Quando Moisés desceu da montanha, seu rosto estava brilhando (Ex 34,29-35).

E transfigurou-se diante deles. Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar. Apareceram-lhe Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus (vv. 2b-4).

Em outras passagens do NT, o verbo “transfigurar” designa uma transformação espiritual (Rm 12,2; 2 Cor 3,18). Aqui, a transformação é visível. Os três evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) assinalam a transformação perceptível da roupa (Mt e Lc mencionam que ela afeta também o rosto).

Como nos apocalipses judaicos, vestes tão deslumbrantes são um dos sinais da “glória” celeste, que é concedida aos eleitos tornando-os semelhantes aos anjos (cf. 2,9; 10,18; 11,36; 17,24; 24,4; Mt 28,3; At 9.3; 12,7; 22,6; 26,13; Ap 3,4; 4,4). Esta cena misteriosa só adquire sentido na perspectiva da ressurreição gloriosa de Cristo, da qual é evidentemente uma antecipação. Em Mc 16,5, um “jovem … vestido com uma túnica branca” é o anjo que anuncia o túmulo vazio no domingo da ressurreição.

“Moisés e Elias” representam o Antigo Testamento, “a lei e os profetas” (um representando a Lei e o outro, os Profetas; cf. Mt 5,17; 7,12; 11,13; 22,40; Lc 16,16.29.31; 24,27.44); no culto da sinagoga lê-se uma leitura da Lei, outra dos Profetas, cf. At 13,15. Eles aparecem aqui como precursores ou testemunhas da Aliança. Conversando com eles, Jesus mostra que é mais do que um simples carpinteiro, médico ou pregador. No pé da igualdade com estas ilustres autoridades do passado parece pertencer à esfera da eternidade divina. Abre-se uma janela no céu, ou seja, antecipa-se a ressurreição. Elias devia ser o precursor do Messias (Ml 3,23; cf. Eclo 48,10) e, aqui em seguida (vv. 11-13), é identificado com João Batista (cf. Mt 17,12; 11,14), morto por ordem de Herodes (6,17-29). Ao mesmo tempo aparece Moisés (cf. Ap 11,3-6), cuja assunção o judaísmo admite (cf. Dt 34,5s), tanto quanto a de Elias (2Rs 2,11) e de Henoc (Gn 5,24).

Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.” Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo (vv. 5-6).

O medo faz parte do gênero de epifanias (manifestações divinas, cf. 4,41; 6,49s.51; 16,8). Pedro como porta-voz dos discípulos abre a boca e manifesta sua incompreensão (cf. 8,32). Junto com a indicação inicial “seis dias depois” (v. 2a), a sugestão de construir tendas pode aludir ao transcurso da Festa das Tendas. Ou Pedro pensa em hospitalidade para as três figuras celestiais, como Abraão (Gn 18; cf. as moradas em Jo 14,2). Ou alude à morada dos celestiais no monte, como a habitação divina no templo, na cidade santa (cf. Ez 37,27; Zc 2,14; Ap 21,3). Ou Pedro quer evitar o sofrimento de Jesus como em 8,32, porque no monte estaria seguro e ninguém saberia onde estava.

Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles (vv. 7-8).

Não bastava só o testemunho de Moises e Elias, agora o próprio Deus se manifesta sobre Jesus. A “nuvem” é sinal de teofania (cf. 2Mc 2,7s), da mesma forma como sobre o Sinai (Ex 19,16; 24,15s), como sobre a Tenda do encontro (Ex 40,34-38) e sobre o Templo (1Rs 8,10-12; cf. a alusão em Lc 1,35).

“Escutai-o”. No batismo (Mc 1,11), a voz do céu designara Jesus como o seu Filho (cf. Sl 2,7), lembrando o Servo de Javé (Is 42,1). Na transfiguração, ela o designa antes como o profeta indicado por Moisés que todo o povo deve escutar (Dt 18,15, citado por At 3,22). No Jordão, ela se dirigiu a Jesus (em Mc), aqui no monte, ela se dirige aos discípulos e, através destes, às “multidões”.

Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos” (vv. 9-10).

A recomendação de guardar segredo sobre o que foi revelado pelo Céu é um tema clássico da literatura apocalíptica (cf. Dn 12,4-9), reprisado pelos sinóticos, sobretudo por Mc, na perspectiva do “segredo messiânico”:

Em Mc só um homem reconhece Jesus como Messias: Pedro, mas é logo intimado ao silêncio (8,29s; em Mt 16,17-19 é instituído “Papa” primeiro). Jesus só aprova esse título Messias/Cristo durante seu processo (14,61s). Estas imposições de silêncio são particularmente frequentes em Mc. Muitas vezes tal imposição não é respeitada, como se a irradiação do poder do Filho de Deus não pudesse ser contida.

Aos demônios (1,25.34; 3,12), como aos miraculados (1,44; 5,43; 7,36; 8,26) e mesmo aos apóstolos (8,30; 9,9), Jesus impõe, sobre sua identidade messiânica, uma recomendação de silêncio que só depois de sua morte será suspensa (Mc 9,9; Mt 10,27). Como vulgarmente se fazia do Messias uma ideia nacionalista e guerreira (como Davi), muito diferente daquela que Jesus queria encarnar, ele precisava usar de muita prudência, pelo menos nas terras de Israel (cf. 5,19), a fim de evitar infelizes mal-entendidos sobre sua missão (cf. Jo 6,15; Mc 4,10-13p). Essa recomendação do “segredo messiânico” não corresponde a uma tese artificial inventada extemporaneamente por Marcos, como alguns têm afirmado; corresponde, sim, a uma atitude histórica de Jesus, tema sobre o qual, de fato, Marcos tinha gosto em insistir, talvez pelo fato de escrever no final da guerra Judaica (66-70 d.C.; cf. Mc 13). Com a exceção de Mt 9,30, só nas passagens paralelas a Mc essa recomendação ocorre em Mt e Lc; com frequência, chegam mesmo a omiti-la.

“Até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos”; somente aqui em 9,9 o segredo messiânico tem data para ser revelado: a ressurreição do Filho do Homem (assim Jesus se autodenomina, cf. 2,10.28; 8,31; 9,11.30; 10,33; 13,26; 14,21.62). No capítulo final, quando Jesus ressuscitou, as mulheres, porém, guardam segredo sobre o túmulo vazio, em vez de comunicar a Boa Nova do anjo, “pois tinham medo” (16,8). Assim termina o Evangelho original de Mc!

Pode ser que se tenha perdido cedo a pagina final do original de Mc, que foi substituída por 16,9-20 (um anexo do séc. II com vocabulário e estilo bem diferente e que resume encontros do ressuscitado dos outros evangelhos). Mas pode ser também que Mc quisesse mesmo terminar com este fim absurdo: O tempo todo Jesus pede segredo, mas as pessoas não conseguem se calar. Agora, quando é tempo de anunciar a boa nova (“evangelho”) do ressuscitado, as pessoas se calam. Certamente as mulheres falaram depois, porque, como saberia o evangelista (e nós) do fato do túmulo vazio se ninguém tivesse falado? Assim este fim do Ev de Mc torna-se um apelo para anunciar, perder o medo (das perseguições e dificuldades) e evangelizar com alegria.

Diferente dos outros evangelistas, Mc não apresenta aparições do ressuscitado, pois já antecipa a ressurreição pelo relato da transfiguração. A vida e ação de Jesus não terminam com sua morte. A transfiguração é sinal de ressurreição: a sociedade não conseguirá deter a pessoa e a atividade de Jesus, que irá continuar através de seus discípulos. A voz de Deus mostra que, daqui por diante, Jesus é a única autoridade. Todos os que ouvem o convite de Deus e seguem a Jesus até o fim, começam desde já a participar da sua vitória final quando ressuscitarão com ele.

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