25 de setembro de 2017 – Segunda-feira, 25ª semana

Leitura: Esd 1,1-6

O plano litúrgico das leituras nas próximas semanas volta ao AT (Antigo Testamento) e as dificuldades de reconstruir o templo em Jerusalém depois do exílio babilônico. O livro de Esdras faz parte da história cronista (redigida cerca de 300 a.C.) que engloba 1-2Cr, Esd e Ne. Enquanto a história deuteronomista (Js; 1-2Sm; 1-2Rs) contou os acontecimentos desde Josue, dos juízes e da monarquia incluindo os dois reinos do Norte (das dez tribos de Israel) e do Sul (das duas tribos de Judá e Benjamin) até a queda de Jerusalém (586 a.C.), a história cronista se concentra só no reino do sul (1-2Cr) e a continuação da comunidade judaica depois do exílio da Babilônia (Esd; Ne).

Os livros de Esdras e Neemias relatam os acontecimentos entre 538 e 400 a.C. O tema central é a organização da comunidade, que se formou a partir da volta do exílio. No início, tratava-se de um livro único, mais tarde (por S. Jerônimo na tradução latina, Vulgata) separado em duas partes, denominadas 1° e 2° de Esdras. Depois, o segundo recebeu o nome de Neemias (nas Bíblia antigas continua como 2Esd). Em conjunto, os vinte e três capítulos não se encontram na ordem cronológica e literária original. Em vista dessa dificuldade, é interessante ler todo o texto conforme a seguinte cronologia:

586: Destruição de Jerusalém e exílio na Babilônia

539: Ciro, rei da Pérsia, conquista a Babilônia

538: Edito de Ciro, permitindo a repatriação dos exilados (2Cr 36; Esd 1)

537: Primeiro grupo de repatriados com Sasabassar; recomeça o culto (Esd 2-3)

536: Preparativos para a reconstrução do Templo; obstáculos internos e externos (Esd 4-5)

520: Atividade dos profetas Ageu e Zacarias (Ag; Zc)

518: Obras do Templo interrompidas e retomadas (Esd 5-6)

515: Dedicação do Templo (Esd 6)

448: Uma colônia de judeus muda para Jerusalém (Esd 4,8-22)

445: Neemias vai para Jerusalém; construção da muralha (Ne 1-2). Neemias é nomeado governador (Ne 5,14)

433: Neemias volta para Susa (Ne 13). Atividade do profeta Malaquias (Ml)

430: Neemias e o escriba Esdras em Jerusalém; leitura da lei; reformas (Ne 8-10; 13)

429: Artaxerxes, rei persa, autoriza Esdras a promulgar a Lei (Esd 7-8)

428: Reformas de Esdras (Esd 9-10)

423-404: Os samaritanos constroem um templo no monte Garizim

 

No primeiro ano do reinado de Ciro, rei da Pérsia, para que se cumprisse a palavra do Senhor pronunciada pela boca de Jeremias, o Senhor moveu o espírito de Ciro, rei da Pérsia, que mandou publicar em todo o seu reino, de viva voz e por escrito, a seguinte proclamação: (v. 1).

O exílio na Babilônia terminou em 538 a.C. com o edito de Ciro (vv. 2-4). Os persas haviam conquistado a Babilônia e seguiam uma política de tolerância e respeito aos costumes e a religião dos povos dominados, que continuavam politicamente dependentes e deviam pagar tributo. O motor da história é Deus. Ele que incitou o rei babilônico, Nabucodonosor, para destruir Jerusalém, agora suscita Ciro para a restauração.

Jeremias tinha anunciado a destruição de Jerusalém e um exílio de 70 anos (Jr 25,11s; 29,10; cf. Dn 9), número redondo, mas pode ser entendido literalmente fazendo começar a sujeição de Judá no reinado de Joaquim (no ano 609 a.C.; cf. 2Rs 24,1). No exílio, Deutero-Isaias anunciou o rei persa Ciro II como libertador futuro e quase messiânico: meu pastor, ungido de Javé (cf. Is 41,2s.25; 44,28-45,1). Além da proclamação oral, temos no decreto de Ciro uma proclamação afixada, uma inscrição ou um documento de arquivo, como a de 6,2-8 (cf. 2Cr 30,5-6; Esd 10,7; Ne 8,15).

“Assim fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do Céu, me deu todos os reinos da terra e me encarregou de lhe construir um templo em Jerusalém, na terra de Judá. Quem, dentre vós todos, pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a caminho e suba a Jerusalém, e construa o templo do Senhor, Deus de Israel, o Deus que está em Jerusalém (vv. 2-3).

O decreto de Ciro já foi citado no final de 2Cr 36,22s, é reproduzido quase idêntico aqui. 2Cr é o último livro da Bíblia hebraica. O final do evangelho de Mt se parece com este decreto: Jesus ressuscitado diz que toda autoridade no céu e na terra foi entregue a ele. Só em vez de convocar os judeus para a Jerusalém, Jesus envia os apóstolos para todos os povos pagãos e afirma que Ele estará com eles até o fim do mundo (Mt 28,18-20; Emanuel, Deus conosco; cf. Is 7,14; Mt 1,23; 18,20).

O “Deus do céu” como é chamado nos atos oficiais, pode ser igualado ao deus supremo dos persas, Ahura Mazda. A religião persa era um dualismo, seu deus bom (Ahura Mazda) lutando contra o deus mal. Mas a política persa era de tolerância e respeito às culturas e religiões dos povos subjugados. Podemos comparar este edito de tolerância religiosa com o edito de Milão em 313 d.C., em que César Constantino deu liberdade à religião cristã, antes duramente perseguida no Império romano. Ambos os editos marcaram o começo de uma nova época. Podemos rezar que volte a tolerância religiosa nos estados muçulmanos/islâmicos (entre eles o Irã, a antiga Pérsia).

E a todos os sobreviventes, onde quer que residam, as pessoas do lugar proporcionem prata, ouro, bens e animais, além de donativos espontâneos para o templo de Deus, que está em Jerusalém”. Então se levantaram os chefes de família de Judá e de Benjamim, os sacerdotes e os levitas, todos aqueles que se sentiram inspirados por Deus para ir edificar o templo do Senhor, que está em Jerusalém. E todos os seus vizinhos lhes trouxeram toda a espécie de ajuda em prata, ouro, bens, animais e objetos preciosos, sem falar em todas as doações espontâneas (vv. 4-6).

Os vv. 4-6 relembram o êxodo da escravidão do Egito, onde os hebreus que partiram enriqueceram-se com os bens dos seus “vizinhos” egípcios (cf. Ex 3,21-22; 11,2-3; 12,35-36). Já Deutero-Isaias anunciava a volta do exílio como novo êxodo (cf. Is 40-55). Aqui, esses versículos mostram que o auxílio prestado pelos estrangeiros funcionava como indenização pelo trabalho no exílio. A volta dos primeiros grupos a pátria era como um sonho: “Quando Javé fez voltar os exilados de Sião, ficamos como quem sonha” (Sl 126,1). Mas nem todos voltam, só “aqueles que se sentiram inspirados por Deus”. Quase mil anos mais tarde, uma obra importante foi escrita pelos judeus que ficavam lá: o Talmude babilônico (séc. II-V). Na mesma região, em Dura Europos, uma sinagoga foi construída com pinturas bíblicas nas paredes (245 d.C.).

As dez tribos do reino do Norte haviam se misturado com os invasores pagãos (assírios em 722 a.C.) e se transformaram num povo sincretista e rival, os samaritanos (cf. 2Rs 17). Sobraram apenas as duas tribos do reino do Sul: “Judá e Benjamin”, junto aos “levitas” (a tribo de Levi não tinha terra, mas atuava como sacerdotes no templo de Jerusalém). Estas formam agora o povo dos “judeus” (cf. Fl 3,5), o “resto” de Israel (cf. Is 4,3; 6,13; Am 3,12 etc.), os “sobreviventes” (9,8.13-15; Ne 1,2; cf. Ez 6,8-10) que se identificam com os desterrados (cf. Jr 24). A volta para a terra e a possibilidade de retornar ao projeto de Javé, o Deus de Israel, são passos importantes para continuar a luta pela vida e liberdade.

Podemos comparar a volta dos judeus depois dos anos do exílio no séc. V a.C. com sua volta à terra de Israel no séc. XX d.C., depois de 1900 anos de diáspora/dispersão O templo e a cidade de Jerusalém foram destruídos novamente pelos romanos em 70 d.C.). A construção do Estado de Israel em 1948 só foi possível com o apoio dos EUA e da ONU (como antes pelo rei da Pérsia), mas logo enfrentou a hostilidade dos moradores que se instalaram lá (antes os samaritanos; cf. Esd 4; hoje os árabes palestinos desde o séc. VII d.C.).

Os livros de Esdras e Neemias mostram como um grupo se reúne e se organiza para formar comunidade. Certamente, o grupo deverá enfrentar dificuldades econômicas para sobreviver, políticas para constituir o seu espaço e ideológicas para manter a própria identidade original.

Evangelho: Lc 8,16-18

Depois de copiar de Mc 4 a parábola do semeador e sua explicação, Lc continua copiando na sequência as sentenças sapienciais de Mc 4,21-25. Nessa série apreciamos o parentesco da parábola com o refrão ou provérbio. Em fórmula concisa encerram um potencial de significados: O oculto se deve comunicar, o oculto se saberá. Escutando, aprende-se a escutar; assimilando, alarga-se a capacidade; quem julga saber e possuir tudo, irá ficando sem nada.

No presente contexto, o significado tem a ver com o ensinamento anterior de Jesus: Sua palavra é semente que deve brotar e produzir frutos em terra boa (na vida dos ouvintes, cf. vv.14-20), assim seu ensinamento é uma luz que é preciso fazer brilhar (na vida das pessoas) e da qual os beneficiários são de certo modo responsáveis.

Ninguém acende uma lâmpada para cobri-la com uma vasilha ou colocá-la debaixo da cama; ao contrário, coloca-a no candeeiro, a fim de que todos os que entram, vejam a luz (v. 16).

Nossa liturgia introduz: “Naquele tempo, disse Jesus à multidão”. É verdade que Jesus começou falar a “uma numerosa multidão” (v. 4). Mas depois de contar a parábola do semeador, os discípulos perguntaram sobre o significado (v. 9). Jesus apenas “respondeu” (v. 10-15), a eles ou à multidão? Em Mc 4,10ss, a pergunta e a explicação aconteceram “quando ficaram sozinhos” separados da multidão. Em seguida, Jesus falou essa parábola minúscula, englobada na explicação para os discípulos (Mc 4,21), igualmente em Lc.

Deste contexto brota seu primeiro sentido: com a explicação de Jesus, seus discípulos foram iluminados. Não devem guardar para si o ensinamento, como um saber esotérico para iniciados, mas devem difundi-los: “farei brilhar meu ensinamento como a aurora, para que ilumine as distâncias” (cf. Eclo 24,32; 37,22-26).

Quem recebe a palavra de Jesus, não deve esconder esta luz, mas “a coloca no candeeiro” (cf. Sl 18,29; 27,1; 36,10; 119,105; Pr 6,23 etc).  Lc repetiu o v. 16 em 11,33, desta vez, sim falando às multidões (11,29). Mt aplicou o mesmo à comunidade que ouviu as bem-aventuranças e não se deve esconder, mas ser a “luz do mundo” brilhando com suas boas obras (Mt 5,14-16).

Com efeito, tudo o que está escondido deverá tornar-se manifesto; e tudo o que está em segredo deverá tornar-se conhecido e claramente manifesto (v. 17).

Também esse aforismo fica envolvido pelo contexto. O mistério do reinado e tudo o que os discípulos estão aprendendo em particular está destinado a manifestar-se. É um aviso para eles e para as futuras comunidades. Este v. 17 (cf. Jo 1,1.5; 3,19-21) encontrava-se também na fonte Q (coleção perdida, mas preservada em partes de Mt e Lc) para motivar o anúncio sem medo (12,2 ss;  Mt 10,26ss).

Portanto, prestai atenção à maneira como vós ouvis! Pois a quem tem alguma coisa, será dado ainda mais; e àquele que não tem, será tirado até mesmo o que ele pensa ter (v. 18).

O aforismo é um paradoxo, que admite explicações, mas não tolera uma mudança de formulação. Sugere o dinamismo do receber e produzir. O que “seguramos” sem produzir apodrece, “nos é tirado”. Para este aforismo, dispomos de uma frase que o situa: trata-se da arte de “como escutar”. Devemos escutar para agir: como a semente produz frutos, a palavra acolhida deve produzir boas ações de justiça, paz, misericórdia etc. (Lc pulou a frase sobre a medida que estava em Mc 4,24; já a tinha escrito em 6,37 referindo-se a maneira de julgar, como estava na fonte Q; cf. Mt 7,1).

Este v. 18 não se encontra apenas em Mc 4,25, mas também na parábola das minas ou talentos oriunda da fonte Q (Lc 19,26; Mt 25,29). Naquela parábola, Jesus não opina sobre a lógica trágica do capitalismo, que pode levar povos inteiros à ruína através da especulação financeira, mas expressa uma experiência sapiencial; cf. Pr 10,4: “A mão preguiçosa empobrece, o braço diligente enriquece”. Mt 13,12 aplica o mesmo provérbio ao conhecimento do mistério do reino dado aos discípulos (cf. Mc 4,25), que são pobres materialmente (Mt 9,19s; 10,9s; 19,21-29), mas ricos espiritualmente (Mt 5,3; cf. Lc 6,20).  Assim em Lc também, Deus não reproduz, mas inverte a ordem capitalista: os pobres herdarão o reino de Deus e os ricos saem com nada (1,52s; 6,20-26; 16,22s).

É importante a “maneira como vós ouvis”. Quem não ouve com atenção e disposição para praticar a palavra, “com coração nobre e generoso” (v. 15; cf. v. 8; 5,5; 6,47), pode perder não só uma coisa, mas sua vida eterna (cf. 9,24s; 10,25; 16,29-31; 18,18; etc.).

O site da CNBB comenta: O conhecimento da Palavra de Deus é muito importante, mas não é suficiente para que uma pessoa se torne verdadeiramente cristã. O importante é assumir os valores que estão presentes nela, de modo que a Palavra de Deus se torne vida das pessoas, e assim elas testemunhem esses valores para todos e manifestem o amor de Deus para com seus filhos e filhas. Jesus nos faz uma grave advertência no Evangelho de hoje: “Portanto, prestai atenção à maneira como vós ouvis!” Existem doutores na Palavra de Deus, mas que fazem da Palavra de Deus apenas objeto de conhecimento. É claro que o conhecimento da Palavra de Deus é importante, mas devemos ser doutores na sua vivência.

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