26 de outubro de 2017 – Quinta-feira, 29ª semana

 

Leitura: Rm 6,19-23

Como concessão, consciente de seus limites, Paulo continua explorando a imagem de escravo do pecado que passa a ser servo da justiça do Senhor (vv. 16-18). Em linguagem jurídica se trataria de uma mudança de senhor.

Uso uma linguagem humana, por causa da vossa limitação. Outrora, oferecestes vossos membros como escravos para servirem à impureza e à sempre crescente desordem moral. Pois bem, agora, colocai vossos membros ao serviço da justiça, em vista da vossa santificação (v. 19).

A santidade própria de Deus (Lv 11,44s; 19,2; 20,7.26; 21,8; 22,32s; Sl 99; Is 6,3;Ez 36,21-23 etc.), que ele comunicava a seu povo pondo-o à parte (Ex 19,6; cf. Ez 36,25-29), ele a comunica também aos que crêem em Cristo (At 9,13; Cl 1,12 etc.). Ela perde entretanto seu aspecto ritual (Lv 17-26) para conservar sua interioridade; consiste em imitar a Cristo (2Ts 3,7), o Santo de Deus (Mc 1,24p; Lc 1,35; Jo 6,69; At 2,27; 4,14; 4,27.30; Ap 3,7).

O cristão se tornou propriedade exclusiva de Cristo pelo batismo, é santo, porque justificado e pertencendo ao povo santo, é habitado pelo Espírito Santo (5,5). Deve ainda pôr em ação essa santidade que lhe é dada e progredir na santificação (v. 22; Ts 4,3-7; 2Ts 2,13; 1Pd 1,14s). Como Israel devia corresponder à sua eleição, o cristão deve corresponder à sua pertença a Cristo como membro do seu Corpo (12,4s; 1Cor 6,15; 12,12-17) numa vida de obediência pela prática da justiça (cf. Ap 22,11: “que aquele que é santo, se santifique ainda”). Por esta santificação, o cristão realiza concretamente a vida nova dada em Cristo no batismo (6,4; cf. o contexto de vv. 3-11).

Quando éreis escravos do pecado, estáveis livres em relação à justiça. Que fruto colhíeis, então, de ações das quais hoje vos envergonhais? Pois o fim daquelas ações era a morte. Agora, porém, libertados do pecado, e como escravos de Deus, frutificais para a santidade até a vida eterna, que é a meta final (vv. 20-22).

Os vv. 21s são paralelos: A “morte” é resultado do final do “pecado”, e a “vida eterna” é o resultado final da “santificação (consagração)”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2717) comenta: A morte é o fracasso definitivo do homem, e arrasta ao fracasso todos os seus bens (Sl 49; Dt 30,15).  À “morte” (sem adjetivo) se opõe “vida eterna”. A morte é um fato definitivo; a vida só é definitiva se perdura.

Com efeito, a paga do pecado é a morte, mas o dom de Deus é a vida eterna em Jesus Cristo, nosso Senhor (v. 23).

 A “paga (salário)” (Is 59,18; 66,6), Paulo opõe “dom (gratuito)” (Pr 18,16; 19,6), pois não considera a vida eterna exigência natural, mas sobrenatural. O v. 23 marca a diferença: A morte, consequência do pecado desde Adão (5,12-21; Tg 1,15), é justa retribuição (salário), enquanto a vida eterna é obra da misericórdia gratuita de Deus (e do Espírito; cf. Gl 6,8: “do Espírito colherá a vida eterna”).

 

Evangelho: Lc 12,49-53

No evangelho de hoje, Jesus continua falando a seus discípulos, agora mudando de foco: antes falou sobre a vigilância necessária quanto à parusia (sua volta no fim do mundo; cf. vv. 35-48), agora sobre sua própria crise no sofrimento (v. 50) e a confusão e a divisão apocalípticas que se fazem sentir no tempo presente (vv. 51-53).

Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra! (v. 49-50).

Só Lc transmite esta frase sobre o fogo e este batismo, diferente daquele que João Batista administrava (cf. Mc 10,38; Lc 3,16p). O fogo que se fala aqui deve ser para Jesus aquele que acompanha o julgamento de Deus em cenas escatológicas (Is 66,15s; Ez 38,22; 39,6; Ml 3,19; Dn 7,9-11; Jt 16,17). Lc deve pensar no batismo no Espirito e no fogo em Pentecostes (3,16; At 2,3.19).

Em Mc 10,38, o batismo é posto em paralelo com a taça do sofrimento para evocar o martírio (cf. Mc 14,36). Aqui, o batismo está em paralelo com o fogo, num contexto que evoca o julgamento (cf. 3,16-17p). A associação de água e fogo como instrumentos do julgamento é reencontrada em 17,26-29 (Noé, Ló; cf. 2Pd 2,5s; 3,6s).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1955) comenta: Esse fogo, evidentemente simbólico, pode assumir significados diferentes, conforme os contextos: O Espírito Santo ou ainda o fogo que purificará e abrasará os corações e que deve ser aceso na paixão, na cruz. O v. 50 favoreceria essa última interpretação, mas os vv. 51-53 sugerem antes um estado de guerra espiritual que o aparecimento de Jesus suscita.

A Bíblia do Peregrino (p. 2501) comenta: Fogo e água podem resumir qualquer tipo de perigo (Is 43,2). Será que as duas imagens se referem aqui ao mesmo fato, a paixão próxima? Em 3,16p, João Batista falou de outro batismo “com Espírito Santo e fogo”, fogo de julgamento e purificação [cf. 1Pd 1,7; Ap 3,18]; Is 4,4 fala de uma purificação com “vento” (pneuma) de julgamento: aniquila ou purifica e limpa. A pregação de Jesus já acendeu esse fogo (cf. Is 1,25; 9,17; Zc 13,9). Cabe referir os versículos à paixão como julgamento que vai separar. O batismo aqui é a grande prova, que alude à paixão (cf. Sl 42,8; 69,2; 124,40) [cf. Mc 10,38-39p; Is 43,2; Ct 8,7]. Outros distinguem: o batismo é a paixão, o fogo é Pentecostes; Jesus anseia que chegue o Espírito purificador, mas se aflige diante da proximidade da paixão [cf. a aflição de Jeremias em Jr 20,9]. E o cristão tem de seguir a mesma trajetória.

Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão (vv. 50).

Estes versículos, que tem um paralelo em Mt 24,34-36, apoiam a interpretação do fogo como julgamento, “divisão”; a palavra grega krinein (daí a palavra “crise”) significa discernir, dividir, julgar, separar (o bem do mal). Mt 10,34 diz mais concretamente: “trazer a espada” (símbolo da justiça que divide) que deve ser primitivo.

Para Lc, a “paz” é o dom messiânico por excelência e ele insiste nisso (1,79; 2,14.29; 7,50; 8,48; 10,5s; 11,21; 12,51; 14,32; 19,38.42; 24,36; cf. Ef 2,14).  Mas a paz de Jesus não é uma paz carnal e fácil como os falsos profetas sonhavam (6,22-23.26; cf. Jo 14,27; Jr 6,14; 8,11; Ez 13,10.16).

Pois, daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas e duas contra três; ficarão divididos: o pai contra o filho e o filho contra o pai; a mãe contra a filha e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra (vv. 50-53).

A Bíblia do Peregrino (p. 2502) comenta: Diante de Jesus as pessoas terão de tomar partido, como Simeão anunciou (2,34-35), passando por cima dos laços familiares. Recorda-se, na tremenda cena de Ex 32, o grito de Moisés: “A mim os do Senhor!” e a matança dos culpados, sem perdoar nem “irmão, parente ou vizinho”. A divisão que Jesus provocará atravessará grupos humanos naturais… A expectativa da paz messiânica (Is 2,2-5; 11,1-10; Zc 9,10) não pode ignorá-lo.

Na tradição profética, a “divisão” das famílias é uma característica da tribulação do fim dos tempos (Mq 7,6; Ag 2,22; Ml 3,24). Jesus voltará a isso no discurso sobre o fim do mundo em 21,16 (Mc 13,12p). Para Lc e sua comunidade era um consolo que as divisões nas famílias por causa da fé fazem parte da vida cristã e do plano divino; o próprio Jesus as experimentou (cf. 4,16-30; 8,19-21p; Mc 3,21; Jo 7,5).

O site da CNBB comenta: A vinda de Jesus cria um divisor de águas na história dos homens. De um lado encontramos os que são dele e, de outro, os que são do mundo. A partir dessa divisão se estabelece o conflito, que é caracterizado principalmente pela diferença de valores, e exige de todos os que abraçam a fé a consciência de suas consequências, entre elas a de ser odiado pelo mundo. Como cristãos, devemos enfrentar o conflito com o mundo, mas não com as mesmas armas do mundo, uma vez que estas levam à morte, o grande valor do mundo. Devemos enfrentar o mundo com a fé, a espiritualidade, a entrega, a partilha, a doação, a fraternidade, o testemunho, o profetismo, que são valores do Reino e levam à vida.

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