27 de junho de 2017 – Terça-feira, 12ª semana

Leitura: Gn 13,2.5-18

A história dos patriarcas e das matriarcas do povo começa com “Abrão e Sarai” (a partir de Gn 17: Abraão e Sara). Segundo a cronologia bíblica, Abraão viveu como migrante, talvez por volta dos 1850 a.C. (idade de bronze). Saiu de Ur (Gn 15,7) em Caldeia (Babilônia, hoje Iraque) e com seu pai subiu o Rio Eufrates até Harã (sudeste da atual Turquia). Lá foi chamado por Javé-Deus para sair da sua terra e da sua família com a promessa de terra e descendência e tornar-se uma bênção para todas as famílias e nações da terra (12,1-6; 22,18). Abrão demonstra fé, apesar de ter 75 anos e uma mulher estéril, ele parte para uma terra desconhecida (“Canaã” 12,5; 13,7; mais tarde chamada de Israel e Palestina), levando também seu sobrinho Ló.

Não temos outras evidências (p. ex. arqueológicas) além da narrativa bíblica sobre a existência histórica de Abrão. Os peritos da Bíblia consideram Abraão um personagem que serviu aos redatores do exílio e pós-exílio para ser ponto de unidade entre os diversos grupos que formaram o povo de Israel (nômades vindo pelo deserto do oriente, escravos fugidos do Egito, tribos do norte (Israel) e outras do sul (Judá), exilados e remanescentes na terra).

Abraão representa todos eles e percorre os mesmos caminhos por onde o povo de Israel passará na sua história, vindo como nômade saindo de Ur da Caldeia (Babilônia, hoje Iraque; Gn 11,31; 15,7; Ne 9,7), descendo e voltando do Egito (Gn 12,10-20), construindo altares em várias partes do país que eram veneradas em épocas posteriores (cf. vv. 6-8).

Abrão era muito rico em rebanhos, prata e ouro (v. 2).

Costuma-se pensar na pobreza de migrantes sem terras, mas a releitura pós-exílica cuja teologia identifica bênção (12,3) com riqueza material (Gn 23,35; Jó 42,10-15; Pr 3,9s; cf. Mc 10,23-26), atribuiu muita riqueza para Abrão e Ló.

Para escapar de uma fome na região, Abrão havia descido ao Egito e voltou à terra de Canãa (13,1.3-4; cf. 12,5-9) como homem rico, “com ovelhas, bois, jumentos, servos, servas, jumentas e camelos” (12,16). Camelos começaram a serem domesticados para carregar fardos só a partir do 1º milênio a.C.; evidência que os textos foram escritos bem depois do tempo imaginário da narrativa de Abrão (1850 a.C.).

A única terra que Abraão adquiriu ao longo da sua vida, foi o túmulo para sua esposa em Hebron (cap. 23). Este fato mostra que o narrador idealizou a figura do patriarca na duração de vida (175 anos; 25,7-10) e na condição econômica. Os nômades, porém, não precisam de terras escrituradas para seu sustento que é a criação de ovelhas e cabras. Mas precisam de espaços, porque levam o rebanho de pasto para pasto, de um poço de água para outro. O acesso ao poço é fundamental, neste ponto acontecem encontros ou brigas (cf. 21,22-33; 24,11-27; 26,15-33; cf. Jo 4).

Ló, que acompanhava Abrão, também tinha ovelhas, gado e tendas. A região já não bastava para os dois, pois seus rebanhos eram demasiado numerosos, para poderem morar juntos. Surgiram discórdias entre os pastores que cuidavam da criação de Abrão, e os pastores de Ló. Naquele tempo, os cananeus e os fereseus ainda habitavam naquela terra (vv. 5-7).

Abrão não tinha filhos, só estava na companhia da mulher, do sobrinho Ló e de pastores empregados. Abrão cuidou do sobrinho órfão como de um irmão menor, e ambos se enriqueceram, com uma diferença notável a favor de Abraão (“prata e ouro”, v. 2).

Os nômades transumantes se movem dentro de uma região definida por pastos e fontes: a capacidade de população animal e humana de cada distrito é limitada. Cada grupo defende seus pastos e fontes, que costumam ser ocasião de conflitos e disputas (21,25; 26,20). As riquezas geram tensões e rixas porque necessitam de amplo espaço vital: a terra não basta para dois homens ricos (como Esaú e Jacó em 36,7; cf. Is 5,8).

Abrão disse a Ló: “Não deve haver discórdia entre nós e entre os nossos pastores, pois somos irmãos (v. 8).

A riqueza ameaça romper as boas relações de um parentesco que o autor designa com o termo genérico de “irmãos”. Abrão não quer brigas entre parentes e diz: “Não deve haver discórdias entre nós e entre os nossos pastores, pois somos irmãos” (v. 8). Abraão chama Ló de “irmão” embora fosse sobrinho. Para os católicos, isto é uma evidência de que os “irmãos” de Jesus (cf. Mc 3,31p; 6,3p; Gl 1,19) eram simplesmente parentes e não outros filhos de Maria, como os protestantes sustentam. A língua de Jesus, aramaica derivada da hebraica, não tinha palavras próprias por tio ou sobrinho (são o irmão de pai ou mãe, e o filho dele).

O NT (Novo Testamento) foi escrito em grego, mas não fala em nenhum lugar que Maria teve mais filhos, nem que Jesus era filho único (mas em Jo 19,25-27, Jesus entrega sua mãe a um discípulo, como se não tivesse outros irmãos, como Maria não tivesse outro filho para sustentá-la). Não precisa supor que os “irmãos” de Jesus fossem os filhos da mesma mãe.

Estás vendo toda esta terra diante de ti? Pois bem, peço-te, separa-te de mim. Se fores para a esquerda, eu irei para a direita; se fores para a direita, eu irei para a esquerda” (v. 9).

Abrão é magnânimo: para salvar a fraternidade (cf. Sl 133), decide pela separação e sacrifica seus direitos. O mais velho divide e o mais novo escolhe, diz a norma tradicional.

Levantando os olhos, Ló viu que toda a região em torno do Jordão era por toda a parte irrigada – isso antes que o Senhor destruísse Sodoma e Gomorra -, era como um jardim do Senhor e como o Egito, até a altura de Segor. Ló escolheu, então, para si a região em torno do Jordão, e foi para oriente. Foi assim que os dois se separaram um do outro. Abrão habitou na terra de Canaã, enquanto que Ló se estabeleceu nas cidades próximas do Jordão, e armou suas tendas até Sodoma. Ora, os habitantes de Sodoma eram péssimos, e grandes pecadores diante do Senhor (vv. 10-13).

Num clima de deserto, o vale do rio “Jordão” parece como o “jardim” de Éden (Gn 2,10-15; como a Mesopotâmia com a irrigação dos rios Eufrates e Tígris, ou como o Egito regado pelo rio Nilo). O rio Jordão emboca no Mar Morto que o narrador imagina ter surgido pela destruição de Sodoma e Gomorra (será narrada no cap. 19). Ló olha e deixa-se levar pelas aparências. O narrador olha mais longe e contempla a região condenada por suas culpas: “Ora, os habitantes de Sodoma eram péssimos e grandes pecadores diante do Senhor” (v. 13). É a introdução de uma tradição (talvez independente do ciclo de Abraão) sobre Ló, originária da Transjordânia e centrada sobre a destruição destas duas cidades (caps. 18-19).

A escolha produz um fato decisivo. Ló prefere uma vida mais fácil aceitando o clima de pecado. Entra no âmbito de uma estrutura que se sustenta graças à exploração e opressão do povo.

E o Senhor disse a Abrão, depois que Ló se separou dele: “Ergue os olhos e, do lugar onde estás, olha para o norte e para o sul, para o oriente e para o ocidente: toda essa terra que estás vendo, eu a darei a ti e à tua descendência para sempre. Tornarei tua descendência tão numerosa como o pó da terra. Se alguém puder contar os grãos do pó da terra, então poderá contar a tua descendência. Levanta-te e percorre este país de ponta a ponta, porque é a ti que o darei” (vv. 14-17).

Abrão, ao invés, fica aberto para uma história nova, fundada unicamente na promessa e no projeto de Javé. Não tomando a dianteira para escolher a sua parte, mais uma vez Abrão entrega-se a Deus na fé, para que este lhe aponte o caminho. A generosidade de Abrão será recompensada pela renovação de promessa que se amplia ainda: Deus dará “toda esta terra” a Abrão e sua descendência, “tão numerosa como o pó da terra” (cf. 12,3.7), “para sempre”!

Também Abraão é convidado a olhar, pelo próprio Senhor. Contempla um território e uma terra futura. Toma posse primeiro com o olhar, depois “percorre este país” (v. 17). Antecipa o olhar de Moises antes de morrer (Nm 27,12s; Dt 34,2-40), prefigura o de Jesus (Mt 4,8s; Lc 4,5s) e o último olhar do vidente João no final da Bíblia (Ap 21,10). A escolha, aqui narrada como sancionada pelo Senhor, teve consequências históricas até o presente (conflito no Oriente Médio entre povos irmãos).

Tendo desarmado suas tendas, Abrão foi morar junto ao Carvalho de Mambré, que está em Hebron, e ali construiu um altar ao Senhor (v. 18).

Mambré era amorreu e se torna aliado de Abraão em 14,13. Em Canaã e no início de Israel, os carvalhos marcavam lugares sagrados (v. 1; cf. 12,6; 13,18; 14,13; 21,33; 35,4.8; Dt 16,21; Jz 4,11; 6,11; 9,6.37; 1Sm 10,3; Is 2,13; Os 4,13), onde deuses e deusas interagiam com os seres humanos. Os cananeus tinham árvores como objetos de veneração (cf. Gn 12,6; Dt 11,30; Jz 9,37).

Em Hebron, Abrão constrói o terceiro altar (cf. 12,7.8), num lugar de grande importância históricas para os patriarcas e depois para Davi que o escolheu como primeira capital onde foi ungido rei de todas as tribos de Israel (2Sm 1,1-4; 5,5-15).

Erigindo um altar, Abraão responde ao Senhor: é ele que toma posse sagrada da terra. Em Hebron, Abrão está acampado (14,13), verá Deus (18,1) e comprará o túmulo para sua esposa (23,1-20). Os outros patriarcas e matriarcas,

Isaac e Rebecca, Jacó e Lea, e ainda José serão enterrados também neste lugar que se torna lugar de romaria para as três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo veneram Abraão como pai da fé (cf. Rm 4,1-5; Gl 3,6-9; Hb 6,13-15) e “amigo de Deus” (2Cr 20,7; Is 41,8; Dn 3,35; Tg 2,23; Alcorão IV,25). Hoje Hebron, ao sul de Jerusalém, pertence ao território palestino, mas está sob forte vigilância israelense.

Em Abrão, a vontade de criar a paz é tão grande que deixa seu sobrinho (“irmão”) escolher a terra melhor. A regra de ouro para criar a paz é reconhecer o direito alheio. Hoje, somos mais inclinados a pensar que o direito é meu e o dever é do outro! A sabedoria de Abrão poderia ajudar aos povos-irmãos no Oriente Médio e aos vizinhos em nossas cidades e campos a estabelecerem a paz e receber a benção de Deus.

 

Evangelho: Mt 7,6.12-14

O último capítulo no sermão da montanha está composto de sentenças menores (Mt 7). Depois da advertência de não julgar (7,1-5), uma frase que parece fora do contexto:

Não deis aos cães as coisas santas, nem atireis vossas pérolas aos porcos; para que eles não as pisem com os pés e, voltando-se contra vós, vos despedacem (v. 6).

Esta advertência à prudência (cf. 10,16; Pr 9,7) está no estilo é sapiencial; cf. Pr 11,22: “Um anel de ouro no focinho de um porco é a mulher formosa sem bom senso”.

Na Palestina, cães e porcos eram animais desprezíveis ou impuros. Para comer das oferendas e sacrifícios do culto, a pessoa deve estar pura. “Coisas santas” são as porções de carne consagrada, alimentos santificados por terem sidos oferecidos no templo (cf. Ex 22,30; Lv 22,14). Do mesmo modo não se deve propor uma doutrina preciosa e santa a pessoas incapazes de recebê-la bem e que poderiam fazer mau uso dela. O texto não especifica de que tipo de pessoas se trata: seriam os judeus hostis (cf. Fl 3,2)? Ou os pagãos (cf. Mt 8,28-34p; 15,26p)? A respeito de heresias, 2Pd 2,22 cita Pr 26,11: “Como o cão que torna a seu vômito, é o insensato que repete sua estultícia”, e continua: “A porca lavada tornou a revolver-se na lama”.

Os tesouros cristãos (cf. 13,44-46) necessitam de devida discrição e cuidado (cf. na liturgia ortodoxa, antes de distribuir a comunhão, o sacerdote diz: “o santo para os santos”). Profana-se o santo e os indignos não se beneficiam. Ben Sirac diz que “ensinar um néscio é catar cacos” (Eclo 22,9a). Esta sentença pode significar no contexto, que é desperdício e perigo anunciar o Reino aos que não estão preocupados com ele. Ligada à sentença sobre os dois senhores (Mt 6,24), poderia significar que é inútil e até perigoso anunciar os princípios evangélicos àqueles, cujo deus é o dinheiro, as riquezas. O coração deles está em outro lugar; fizeram outra opção fundamental.

Tudo quanto quereis que os outros vos façam, fazei também a eles. Nisto consiste a Lei e os Profetas (v. 12).

Saltando uma recomendação sobre a oração (vv. 7-11; cf. 1ª semana da quaresma, 5ª feira), o evangelho de hoje apresenta a chamada “Regra de Ouro”: “Tudo quanto quereis que os outros vos façam, fazei também a eles” (v. 12a). Na fonte original Q que Mt e Lc usavam (mas se perdeu na história), esta regra estava ligada ao amor aos inimigos (cf. Lc 6,31). Mt deslocou-a para fazer um parêntese com 5,17, incluindo assim todo conteúdo principal do sermão, pôde demonstrar como Jesus cumpre “a Lei e os Profetas” (significa todo o Antigo Testamento) plenamente.

A Regra de Ouro é universal e existe em várias formas nas diversas filosofias e religiões, cf. Confúcio (China, 551-479 a.C.): “Uma palavra resume a boa conduta: Não fazer aos outros aquilo que tu mesmo não gostarias que fosse feito a ti”. Para Immanuel Kant (Alemanha, 1724-1804 d.C.), o imperativo categórico é “agir sempre da maneira que tua conduta possa ser uma norma (lei) geral para todos”. No AT, Eclo 31,15 (grego): “Julgo por ti mesmo o que o outro (próximo) sente e comporta-te sempre com reflexão”. Sua aplicação abrange desde o cotidiano até o heróico.

Já o rabi Hilel (60 a.C – 10 d.C.) viu nela um resumo da Lei de Moisés. Na forma negativa (Tb 4,15: “Não faças a ninguém o que não queres que te façam”), ela é a mais comum; é um resumo da ética, uma lógica natural (“lei natural”, quer dizer: não precisa de uma revelação divina para entendê-la, basta seguir a consciência humana). A forma positiva que Jesus apresenta é mais exigente e desafia a criatividade: não somente não prejudicar o outro (cf. o Decálogo em Ex 20; Dt 5), sim pensar como posso fazer bem ao outro. S. Tomás de Aquino (1225-1274) definiu “amar é fazer o bem ao outro”.

Da Regra de Ouro “depende a Lei e os Profetas” (v. 12b), ou seja, a ética de todo Antigo Testamento (AT). Perguntado sobre o maior mandamento, Jesus não citou a Regra de Ouro, porque ela não está escrita explicitamente na Lei de Moisés. Jesus citou Dt 6,5 (“amarás teu Deus…”) e Lv 19,18: “Amarás ao próximo como a si mesmo” (cf. Mt 22,34-40; Gl 5,14; Rm 13,8-10). A Regra de Ouro, na sua forma positiva, é amar o próximo como si mesmo, em outras palavras (cf. Tg 2,8). Assim Jesus interpreta e cumpre toda Lei e os Profetas (5,17).

Depois deste grande parêntese entre 5,17 e 7,12, Mt finaliza o sermão de Jesus na montanha com três exortações, cuja primeira ouvimos hoje:

Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso é o caminho que leva à perdição, e muitos são os que entram por ele! Como é estreita a porta e apertado o caminho que leva à vida! E são poucos os que o encontram! (vv. 12-14).

A doutrina dos dois caminhos, o do bem e do mal, entre os quais os homens devem escolher, é um tema antigo e comum no judaísmo (cf. Dt 30,15-20; Sl 1; Pr 4,10-19; 12,28; 15,24; Eclo 15,17; 33,14). É novo o critério de largueza e estreiteza (cf. o. caminho largo de Sl 119,45; 18,37).

Tanto a opção fundamental pelo Reino e sua justiça (“entrar pela porta”), como continuar nessa busca fundamental (“caminho”), não é fácil. A escolha verdadeira nunca será feita pelos indecisos e acomodados. Estes ficam relutando, ou escolhem a estrada mais larga proposta pelos ídolos. A porta que Abrão escolheu na 1ª leitura é estreita, porque comporta uma renúncia. No entanto, a renúncia produz a paz e a tranquilidade de vida para o ambiente. O bem da paz nasce de um sacrifício. O próprio Jesus se oferece como “caminho”, “porta” (Jo 14,6; 10,7.9) e sacrifício (“cordeiro”: Jo 1,29.36) universal (do mundo).

O site da CNBB comenta: Hoje em dia, fala-se muito da questão da inculturação. É inculturação do anúncio, da liturgia e assim por diante. De fato, a inculturação é necessária para que todos possam viver os valores do Reino de Deus. Mas o Evangelho de hoje nos faz uma grave advertência: não atireis vossas pérolas aos porcos. É claro que devemos valorizar todas as formas e expressões de uma cultura e reconhecer os grandes valores que estão presentes na cultura e que expressam os valores evangélicos, mas inculturar o Evangelho não significa submetê-lo aos valores culturais, pois a cultura tende a ver o Evangelho de uma forma ideológica e a usar as suas palavras sem os critérios do Reino, pisando nelas e voltando-se contra nós.

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