29 de Junho de 2017 – Quinta-Feira, 12ª semana

 

Leitura: Gn 16,1-12.15-16 (ou vv. 6-12.15-16)

Depois da experiência noturna e mística (a primeira aliança na teofania em cap. 15), Abrão (“Abraão” a partir do cap. 17) retorna a vida familiar, regida pelas leis matrimoniais da época. Apesar do elogio de fé de Abrão em 15,6, parece que ainda não confia plenamente na promessa de descendência que Deus confirmou em 15,4 (cf. 12,2.7; 13,16; 15,13.18), ou quer facilitar a realização da promessa atendendo ao pedido da sua mulher estéril. Neste, se encontra um tema atual no primeiro livro da Bíblia: uma mãe de aluguel, cujo nome é Agar.

Sarai, a mulher de Abrão, não lhe dera filhos. Mas, tendo uma escrava egípcia, chamada Agar, Sarai disse a Abrão: “Eis que o Senhor me fez estéril. Une-te, pois, à minha escrava, para ver se, por ela, posso ter filhos”. Abrão atendeu ao pedido de Sarai. Depois de Abrão ter morado dez anos em Canaã, Sarai, sua esposa, tomou sua escrava egípcia, Agar, e deu-a como mulher ao seu marido Abrão. Abrão uniu-se a Agar e ela concebeu. Percebendo-se grávida, começou a olhar com desprezo a sua senhora. Sarai disse a Abrão: “Tu és responsável pela injúria que estou sofrendo. Fui eu mesma que coloquei minha escrava em teus braços: e ela, apenas ficou grávida, pôs-se a desprezar-me. O Senhor será juiz entre mim e ti” (vv. 1-5).

O domínio egípcio estendia-se sobre os nômades árabes do sul da Palestina (onde ficava Abrão, em Hebron, cf. 13,18), aqui o agaritas, ligados a Agar. Abrão pode ter recebido ou adquirido a escrava na sua viagem ao Egito em 12,10-20. No direito mesopotâmico, uma esposa estéril podia oferecer uma serva a seu marido, assim o filho seria reconhecido como filho legítimo da esposa, mas a serva não devia prevalecer-se disso com relação à patroa. O caso se repetirá com as esposas de Jacó, Raquel (30,1-6) e Lia (30,9-13). As brigas de Agar com Sarai voltam a encontrar-se no cap. 21 (uma narrativa paralela)

Sarai culpa Deus por ela ser estéril (v. 2) e agora seu marido por ser desprezada (v. 5): o pleito se estabelece entre Abrão e Sarai, não com Agar. Parece insinuar que Abrão, sentindo-se pai, trata a escrava com privilégio (cf. Pr 30,21-23; Eclo 25,14).

Abrão respondeu a Sarai: “Olha, a escrava é tua; faze dela o que bem estenderes”. E Sarai maltratou-a tanto que ela fugiu (v. 6).

Abrão não quer se submeter ao juízo de Deus e se esquiva de qualquer responsabilidade: “Olha, a escrava é tua; faze dela o que bem entenderes” (v. 6).  O AT não apresenta personagens perfeitos, seus ancestrais e heróis têm virtudes e defeitos.

A lei mesopotâmica excita os sentimentos destes três personagens, bem descritos com traços breves.  Mas lei e sentimentos se escrevem num contexto mais amplo: o plano de Deus sobre Abrão. Não será a lei, com sua ficção jurídica, que assegurará uma descendência ao ancião, mas a palavra de Deus, que se cumpre contra as previsões humanas.

Um anjo do Senhor, encontrando-a junto à fonte do deserto, no caminho de Sur, disse-lhe: “Agar, escrava de Sarai, de onde vens e para onde vais?” Ela respondeu: “Estou fugindo de Sarai, minha senhora”. E o anjo do Senhor lhe disse: “Volta para a tua senhora e sê submissa a ela”. E acrescentou: “Multiplicarei a tua descendência de tal forma, que não se poderá contar” (vv. 7-10).

Maltratada, a escrava fugiu ao deserto (v. 6; alusão ao futuro êxodo do Egito, cf. Ex 3,7), mas o “anjo do Senhor” a encontra (v. 7). Nos textos antigos, o anjo de Javé (22,11; Ex 3,2; Jz 2,1; etc.) ou anjo de Deus (21,17; 31,11; Ex 14,19; etc.) não é um anjo criado distinto de Deus (Ex 23,20); é o próprio Deus na forma visível em que aparece. Entre os cananeus, o anjo (ou enviado) de uma divindade executava as ordens de quem o enviava entre os homens. A Bíblia, sem negar a existência de tais forças cósmicas personalizadas, subordina-as ao verdadeiro Deus e afirma a presença do próprio Senhor nos seus anjos (enviados e mensageiros).

Chamando a escrava pelo seu nome e sua condição social (pertença), o anjo faz uma pergunta: “De onde vens e para onde vais?” É uma pergunta na situação concreta, mas também filosófica: liberdade de e liberdade para (cf. o êxodo e a lei em Ex e Dt), fugir sem saber para onde tem sentido (cf. Sl 139)? O Concílio Vaticano II reconhece que “por meio de religiões diversas procuram os homens uma resposta aos profundos enigmas da condição humana … Que é o homem, qual o sentido e o fim de nossa vida …?” (NA 1).

Não chegou ainda a hora de libertar os escravos, por isso o anjo a manda de volta (melhor do que morrer no deserto; cf. o escravo fugitivo Onésimo que Paulo envia de volta com uma mensagem: Fm 10-18). A relação jurídica de ama e escrava persiste. Mas por sua relação com Abrão, Agar participará da benção patriarcal da fecundidade (cf. 12,2-3; uma tradição a faz matriarca dos agarenos): “Multiplicarei a tua descendência de tal forma que não se poderá contar” (v. 10).

Disse, ainda, o anjo do Senhor: “Olha, estás grávida e darás à luz um filho e o chamarás Ismael, porque o Senhor te ouviu na tua aflição. Ele será indomável como um jumento selvagem, sua mão se levantará contra todos, e a mão de todos contra ele. E ele viverá separado de todos os seus irmãos.” Agar deu à luz o filho de Abrão; e ele pôs o nome de Ismael ao filho que Agar lhe deu (vv. 11-12.15).

Apresenta-se o esquema clássico de anunciação (Jz 13; Is 7,14-16; cf. Lc 1,11-17.28-33): concepção, nascimento, nome explicado, futuro do menino. Seu nome Ismael significa “Deus ouve/ouça” (cf. v. 11: “o Senhor te ouviu na tua aflição”).

O nome do poço onde foi encontrado Agar deriva de El-Roi = “Deus vê” (a miséria de Agar; vv. 13-14, omitidos na leitura de hoje, cf. Ex 3,7). El era o nome de Deus supremo (Alá em árabe) entre os cananeus, mas havia uma diversidade de deuses. Após a reforma do rei Josias (640-609), a religião oficial identificou estes deuses e deusas com Javé, a quem transferiu as funções deles (como a fertilidade das mulheres, cf. 20,18; Dt 7,12-16), e se reconhece nos diversos nomes próprios desde os patriarcas, como Isma-El, Isra-El (cf. 32,29), El-ias e El-iseu, Ezequi-El, Dani-El, etc.

Ismael “será indomável como um jumento selvagem … viverá separado de todos os seus irmãos” (v. 12; cf. Jó 39,5-8: “Dei-lhe por morada a estepe … ele se ri do barulho das cidades”). Será o antepassado dos ismaelitas (tribos do norte da Arábia; cf. 17,20; 21,20s; 25,12-16; 37,35), os árabes consideram-no como ancestral e segundo sua tradição (Alcorão II, 124-128), o cubo preto do santuário (kaba) em Meca foi construído por Abraão (Ibrahim em árabe) e Ismael.

A história da família de Abraão com suas três mulheres (Sara, Agar, Cetura, cf. cap. 25) reflete as relações entre os povos da região. O povo de Israel surgiu juntos com outros “povos novos” (parentes) na idade tardia do bronze (tempo dos patriarcas), ao lado dos reinos mais antigos do Egito, da Mesopotâmia e de Canaã. Na narrativa dos patriarcas, a história complicada dos povos é reduzida a uma história de família.

Então são irmãos de sangue: ismaelitas e israelitas, árabes e judeus, palestinos e israelenses. Mas para ter uma convivência pacífica precisa de algo mais do que um ancestral comum. Já os judeus sabiam que “não basta ser filho de Abraão” (cf. 1Mc 2,51s; Ez 33,24s; cf. Mt 3,8s; Lc 3,8; Jo 8,33.37.39).

Ismael, filho da escrava, é abençoado, mas não é através dele que Javé realizará a promessa no AT (Antigo Testamento). Deus faz um grande projeto para o homem; contudo, muitas vezes, o homem acha impossível realizá-lo, e recorre a subterfúgios, traindo o desafio contido na promessa e que está dentro da aspiração humana.

Abrão tinha oitenta e seis anos, quando Agar deu à luz Ismael (v. 16).

A leitura termina com uma nota da redação sacerdotal que faz a cronologia no Pentateuco (cf. v. 3; 12,4).

 

Evangelho: Mt 7,21-29

Hoje temos no evangelho a conclusão do Sermão da Montanha (vv. 21-27) e sua reação no povo (vv. 28-29). O cristão deve tomar decisões e caminhar entre dificuldades e ambiguidades. Jesus o previne e lhe oferece critérios para distinguir, usando e renovando as imagens tradicionais do caminho, da arvore (cf. evangelhos de ontem e antes de ontem) e da construção. A insistência do verbo “fazer” (aqui se traduz também: “pôr em prática”) indica o sentido prático da instrução. Mt não quer excomungar os falsos profetas (vv. 15-20; cf. 7,1-5: não julgar), mas quer dar orientações para discernir e praticar a justiça maior (5,20) e não se precipitar para o juízo final de Deus sobre o trigo e o joio (cf. 13,24-30.36-43).

Nem todo aquele que me diz: “Senhor, Senhor”, entrará no Reino dos Céus, mas o que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus. Naquele dia, muitos vão me dizer: “Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos? Não foi em teu nome que expulsamos demônios? E não foi em teu nome que fizemos muitos milagres?” Então eu lhes direi publicamente: “Jamais vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais o mal (vv. 21-23).

Aqui se apresenta um horizonte escatológico (do fim, do juízo final) que todo sermão da montanha adota. Porque nele está a “vontade do Pai” (6,10; cf. Sl 143,10) a ser cumprida, é o caminho estreito, mas que leva a vida, enquanto “muitos” já andam pelo caminho largo e se perdem (v. 13).

“Em nome de” significa: como enviados, representando ou invocando o Senhor; também o fazem os falsos profetas (cf. Jr 27,15). Se o ato de fé pela palavra não for acompanhado de ações, é vazio e sem sentido. Invocar Jesus como “Senhor” é profissão solene de fé (cf. At 2,36; Fl 2,11), mas não basta invocar só pela boca, nem duas vezes (“Senhor, Senhor”; cf. Lc 6,46). Para Paulo e João, confessar Jesus como Senhor é importante, mas o critério é o amor-caridade (1Cor 12,3; 13; 1Jo 3,10; 4,2).

Em Mt, “Senhor” é a invocação dos discípulos a Jesus, principalmente ao juiz do mundo (18 vezes no último discurso em 24,42-25,46). “Naquele dia” refere-se à parusia (volta triunfal de Cristo), o momento de prestar contas na ocasião da vinda do Senhor (24,36). A expressão «naquele dia» indica o dia do Julgamento que manifestará a glória de Deus (Is 2,11) e para os homens o castigo (Is 10,3) ou a salvação (Is 49,8). Nem mesmo o ato de fé mais profundo da comunidade, que é o reconhecimento de Jesus como o Senhor, faz que alguém entre no Reino. Na descrição do juízo final de Mt 25,31-46 são enumeradas as ações que qualificam o autêntico reconhecimento de Jesus como Senhor: as obras da misericórdia e do amor ao próximo.

Tampouco bastará a atividade carismática de profetizar ou fazer milagres. Para judeus e cristãos, milagres fazem parte da atividade profética e missionária (cf. 5,2; 10,1.7s; 11,20-24; 17,19s; 23,24). Mt não é contra, mas eles não bastam; há de praticar a justiça maior para entrar no Reino dos céus (5,20).

A admoestação é grave e termina com uma sentença definitiva de condenação: “Afastai-vos de mim, vós que praticais o mal!” É uma adaptação do Sl 6,9, súplica de um doente. Na parábola das dez virgens que esperam pela a vinda do noivo (parusia) em 25,1-13 encontram-se semelhanças significativas: o contraste entre prudente e sem juízo (cf. a parábola em seguida: 7,24-27), a invocação dupla “Senhor, Senhor” e a reposta do noivo (Cristo) que não as deixa entrar: “Não vos conheço”.

Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as põe em prática, é como um homem prudente, que construiu sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enchentes, os ventos deram contra a casa, mas a casa não caiu, porque estava construída sobre a rocha. Por outro lado, quem ouve estas minhas palavras e não as põe em prática, é como um homem sem juízo, que construiu sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as enchentes, os ventos sopraram e deram contra a casa, e a casa caiu, e sua ruína foi completa!” (vv. 24-27).

Semelhante aos finais das leis da santidade (Lv 26) e do Deuteronômio (Dt 30,15-20), o término do sermão da montanha (e já na sua fonte Q, cf. Lc 6,47-49) coloca os ouvintes diante de uma grande escolha, aqui em forma de parábola: construir a casa (o projeto de vida) sobre a rocha ou sobre a areia. Construir sobre a rocha é viver e agir de acordo com a justiça do Reino apresentada no sermão da montanha. Construir a casa sobre a areia é ficar na teoria, sem passar para a prática. Pode-se ler a comparação sobre o pano de fundo de Ez 13,10-14, que fala da construção fraca que é derrubada pelo aguaceiro.

Jesus apresenta com autoridade a sua mensagem como terreno firme sobre o qual se pode construir uma vida frente à fúria dos elementos. Os dois tipos são qualificados de “prudente” e “sem juízo” (insensato), termos sapiências (cf. Mt 11,18-19; 25,2; 1Cor 1,30): o sermão de Jesus oferece ao homem que o cumpre a sabedoria autêntica, para que seja realmente homo sapiens (“homem sábio”; nome científica da nossa espécie).

Em Mt 16,18, Jesus construirá sua igreja sobre a rocha, ou seja, a fé firme de Simão Pedro (mesma palavra grega: Pedro=pedra=rocha), e “as portas do inferno nunca prevalecerão sobre ela”. Outro apóstolo, Paulo, interpretou a rocha de onde saiu água ser o próprio Cristo (1Cor 10,4; cf. Ex 17,5-6; Nm 20,7-11). Para Mt, o importante é praticar estas palavras de Jesus que nos ensinam a praticar (lit. “fazer”) a lei e os mandamentos interpretados por Jesus neste sermão para uma justiça maior (vv.24.26; cf. 5,19-20; 28,20).

Quando Jesus acabou de dizer estas palavras, as multidões ficaram admiradas com seu ensinamento. De fato, ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os mestres da lei (vv. 28-29).

Mt termina o primeiro dos cinco discursos de Jesus no seu evangelho com a reação do povo: Mais do que no início (cf. 5,2), salienta aqui que o povo todo é ouvinte deste sermão, não são apenas os discípulos, mas “as multidões” (v. 28). Está errada, portanto, a introdução que a liturgia costuma fazer no início do evangelho de hoje (e nos dias passados): “Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: …” Na montanha, Jesus como novo Moisés apresenta sua versão da lei ao povo todo (cf. Ex 19-20), e seu conteúdo se dirige a todos os discípulos em potencial.

A autoridade de Jesus não se apoia em citações de doutores fariseus, não progride por casuística sutil; expõe com limpidez e exige sem concessões, não se baseia em tradições ou sistemas, e sim na sua própria pessoa. Ele vive e pratica o que ensina aos outros. Sobre a admiração do povo que considera o ensinamento de Jesus diferente dos doutros da lei (v. 29), Mt já leu esta frase em Mc 1,22.27p (a reação do povo ao primeiro milagre, o exorcismo na sinagoga de Cafarnaum). Mt copia a reação do povo e a transfere para o final do primeiro discurso de Jesus, mas sem relatar este exorcismo (poderia causar um mal-estar a seus ouvintes judeu-cristãos: um espírito impuro na sinagoga?! Mt também diminui o exorcismo na Decápolis, cf. 8,28-34 e Mc 5,1-20). Mt omite o primeiro milagre de Mc, mas inicia também um sequência narrativa de curas (cf. evangelho de amanhã).

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