31 de dezembro de 2017 – Natal, Domingo da Sagrada Família, Ano B

1ª Leitura: Eclo 3,3-7.14-17a (grego 2-6.12-14)  (facultativo:  Gn 15,1-6; 21,1-3)

No domingo da Sagrada Família, a liturgia nos apresenta um texto que aprofunda o quarto mandamento “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem seus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá” (Ex 20,12; cf. Dt 5,16; Ef 6,1-3). Já no Ex e Dt, este mandamento traz uma promessa (vida longa na terra). No texto de hoje, há mais promessas e recompensas ainda. O livro é chamado “Eclesiástico” por causa do seu uso oficial na “Eclesia” (Igreja ou Assembleia), principalmente na instrução dos neo-batizados.

O livro de Eclo faz parte dos sete livros deuterocanônicos, ou seja, não se encontra na Bíblia Hebraica e, portanto, não nas Bíblias protestantes. Foi escrito em hebraico por Jesus Ben Sirac, mestre de sabedoria e em 130 d.C. traduzido para o grego pelo seu neto no Egito (cf. introdução e 50,27; 51,30). O texto hebraico se perdeu e foi transmitida apenas sua versão grega, mas nos séculos passados, alguns fragmentos hebraicos foram recuperados (daí a diferença na numeração dos versículos).

No texto de hoje transparece o choque entre os jovens judeus influenciados pela nova cultura grega e seus pais/anciãos tradicionais.

A Bíblia do Peregrino (p. 1579) comenta o conjunto 3,1-16 (nossa liturgia selecionou apenas uns vv.): Depois da grande introdução, que define a atitude do discípulo em relação a Deus – tema relacionado com o primeiro mandamento -, o mestre passa a dissertar sobre o primeiro mandamento da “segunda tábua”, ou seja, deveres para com os pais. Comenta-o com reflexões sapienciais e com exortações de inspiração deuteronômica. O tratado compreende introdução, três estrofes de quatro versículos e conclusão.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: O texto é dirigido a pessoas adultas, que devem observar a Lei. Trata do cuidado para com os pais, especialmente os idosos. O amor e o dever de cuidar não cessam quando o filho se torna emancipado da família de origem, mas permanece o dever de gratidão. A principal atitude inculcada no texto é a de “honrar” os pais. Um dos dez mandamentos (cf. Ex 20,12; Dt 5,16) é aqui concretizado e explicitado, evocando a ternura que deve reinar na família.

Deus honra o pai nos filhos e confirma, sobre eles, a autoridade da mãe. Quem honra o seu pai, alcança o perdão dos pecados; evita cometê-los e será ouvido na oração quotidiana. Quem respeita a sua mãe é como alguém que ajunta tesouros. Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido. Quem respeita o seu pai, terá vida longa, e quem obedece ao pai é o consolo da sua mãe (vv. 3-7).

A Bíblia do Peregrino (p. 1579) comenta: Os quatros versículos repetem o termo “honrar”. O termo hebraico abrange tanto o respeito à sua autoridade como o sustento em sua necessidade: ver Mt 15,4-6. A distinção “pai” e “mãe” tem função normal: todos os conselhos valem para ambos, pois a mãe está situada no mesmo nível. O último versículo, conforme costume do autor, vincula o preceito ao respeito devido a Deus. No v. 6 começa o texto hebraico conservado: cf. Ex 20,12.

Como em Ex 20,12 (cf. aqui v. 7: “vida longa”), há recompensas no plano humano: quem honra os pais terá alegria com os próprios filhos (v. 6). Há recompensa também no plano religioso: o amor aos pais perdoa os próprios pecados (vv. 3/4.14-15) e quem os honra será atendido quando rezar (vv. 5.15). Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A relação com os pais toca em Deus: quem os honra, os venera, honra a Deus. Por quê? Os filhos são dados por Deus e por isso devem agradecer a vida a Deus, honrando, respeitando, amando seus pais.

No v. 8b (omitido em nossa liturgia) se diz: “Ele servirá a seus pais como ao seu Senhor”; a versão grega traz: “como a seus senhores” (superiores). Obedecer e honrar aos pais resulta em benção (cf. vv. 9-11), enquanto a desobediência leva à maldição (cf. v. 18).

Meu filho, ampara o teu pai na velhice e não lhe causes desgosto enquanto ele vive. Mesmo que ele esteja perdendo a lucidez, procura ser compreensivo para com ele; não o humilhes, em nenhum dos dias de sua vida, a caridade feita a teu pai não será esquecida, mas servirá para reparar os teus pecados e, na justiça, será para tua edificação (vv. 14-17a).

O quarto mandamento não se deve restringir à obediência que os menores devem aos pais, mas inclui a “caridade” (lit. esmola) aos idosos, não lhes causar desgosto (abandoná-los), mas ser misericordioso (compreensivo) com eles.

A Bíblia do Peregrino (p. 1579) comenta: A conduta inculcada deve durar a vida toda, também quando o pai for ancião, e o filho maduro (Pr 23,22). Inclui como antes o aspecto genérico de ajuda, “não o abandones”, e o de honra, “não o envergonhes” (Pr 30,17). Parece antecipar-se a uma objeção ou pergunta: o que fazer quando o pai se desonra com a senilidade? Dois versículos introduzem o tema da esmola: não feita ao pai, mas feita por ele. Quando o pai é ancião e incapaz de ajudar, a esmola que fez permanece como um capital de ajuda e proteção, mais ainda que os tesouros. “Pagar” e “pecados” fazem eco ao v. 3.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: Atualmente, a idade avançada, mais frequente que no passado, traz consigo também o desafio do amor gratuito, quando os pais não podem mais, humanamente, oferecer uma recompensa. É então o momento de os filhos, não sem sacrifícios, oferecerem o conforto de sua presença, o consolo de seu sincero amor filial e a disposição de propiciar-lhes um envelhecimento digno e minorar seus sofrimentos. Tal tarefa é exigente, e só se consegue levá-la adiante com êxito se vivida com o amor que vem de Deus.

2ª Leitura: Cl 3,12-21

A leitura desta carta apostólica traz exortações à comunidade cristã e uma orientação para os relacionamentos familiares.

Pelo que diz a carta, a comunidade de Colossas (200 km a leste de Éfeso na Ásia menor, hoje Turquia) não foi fundada nem visitada por Paulo (cf. 1,4.9; 2,1), mas a “Palavra da Verdade, o Evangelho” chegou lá através de Epafras, um discípulo de Paulo (1,7; 4,12; cf. Fm 23). Uns peritos biblistas atribuem a autoria da carta ao apóstolo Paulo, colocando-a entre as cartas do cativeiro que são Fl, Fm, Ef, escritas na prisão em Éfeso (56-57) ou em Roma (60-64). Outros afirmam que duas cartas Cl e Ef (Ef depende de Cl) seriam “deuteropaulinas”, ou seja, teriam sido escritas mais tarde, na segunda geração cristã por discípulos de Paulo, por volta de 80 a 90 d.C. Este costume de época chama-se “pseudepigrafia”, ou seja, discípulos escrevendo em nome do seu mestre (já em Isaias vemos três etapas/autores diferentes: caps. 1-39; 40-55; 56-66), não para falsificar, mas para homenagear e dar continuidade espiritual. Além do estilo e vocabulário diferente de Paulo, esta opinião baseia-se também em outras observações, por exemplo: a descrição de uma igreja mais universal e estruturada em que o Evangelho produz fruto já “no mundo inteiro” (1,6) indica um período posterior ao pioneiro Paulo. Portanto, a carta aos Colossenses poderia ser escrita pelo próprio Epafras (ou alguém do seu grupo) para demonstrar a “autenticidade” (cf. 1,7) da doutrina apostólica, com a qual se pretende refutar em seguida doutrinas alheias que estavam ameaçando a fé da comunidade.

Também hoje a fé e a família estão ameaçadas por diversas doutrinas e costumes contrários aos ensinamentos cristãs.

Na leitura de hoje, o autor da carta apresenta primeiro a parte positiva da conduta cristã (cf. a parte negativa do “homem velho”, ou seja, a conduta do pagão, em vv. 5-11; o homem novo é aquele que renasceu no batismo). É um programa pouco articulado, mas toca pontos essenciais (cf. Ef 4,1-2.32) para a convivência em comunidade. Depois, nos vv. 18-21 concentra-se nas relações das pessoas em casa (família).

Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos. Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se um tiver queixa contra o outro. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai vós também. Mas, sobretudo, amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição (vv. 12-14).

O autor aplica títulos do povo escolhido no AT (Is 43,20s; Ex 19,5s), retomados por 1Pd 2,9. Os sentimentos do povo de Deus devem corresponder aos do Senhor (cf. Ex 34,6s; Fl 2,1-5). Pode-se referir a condição depois do batismo (filhos amados, santos eleitos), por isso, depois do banho, precisa vestir-se com virtudes.

Nesta carta destaca-se a reciprocidade (“mutuamente”, “um ao outro”; cf. em seguida os preceitos particulares de moral doméstico e trabalhista em 3,18-4,1). O perdão mútuo inspira-se no modelo de Cristo, um eco do pai-nosso (Mt 6,12-15; 18,21-35). “Acima de tudo, … o amor, que é o laço da perfeição” (v. 14); Compare-se o hino ao amor (caridade), que supera todos os carismas, em 1Cor 13 (cf. Rm 13,8-10; Mt 5,43-48).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A primeira parte, exortativa, põe a ênfase no amor fraterno. O acento está na reciprocidade do amor e em suas manifestações concretas: bondade, compaixão, humildade, mansidão, longanimidade, um elenco de virtudes que exigem grande empenho pessoal (v. 12). Para tanto, porém, há forte motivação. O motivo último do amor não é jamais o próximo (o que ele é, o que fez ou não a mim etc.), mas a nova condição do cristão: Deus me santificou, me escolheu, me amou. Amo porque me sei amado, primeiro, e porque Cristo recriou meu ser. Posso, assim, viver a caridade que vem do Cristo, o amor paciente, humilde, que não guarda rancor, que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (cf. 1Cor 13,4-7).

Nessa história, o amor conhece os limites das pessoas e dos relacionamentos humanos. Por isso, faz parte do amor suportar-se mutuamente e perdoar. Também aqui o motivo é transcendente: perdoar como o Senhor perdoou (v. 13). E como ele o fez? Perdoou totalmente, sem exigir nada, a não ser a abertura e o acolhimento. Um perdão gratuito, sem limites, no qual não se contam quantas vezes se perdoou (setenta vezes sete!). O perdão expressa de modo particular o amor: é o amor que persiste dando, doando, per-doando. E, assim, o amor supera qualquer expectativa e constitui a união máxima entre seres por vezes tão diferentes. É ele que mantém a comunidade unida e a leva à perfeição (v. 14).

Que a paz de Cristo reine em vossos corações, à qual fostes chamados como membros de um só corpo. E sede agradecidos (v. 15).

O critério para superar litígios deve se construir ou restabelecer, a paz de Cristo (Fl 4,7; Ef 2,14; Jo 14,27); há de reinar sintonia e harmonia porque os cristãos são os membros do mesmo corpo, cf. o conceito paulino da Igreja como corpo de Cristo com diversos membros e dons/carismas (1Cor 12,12; Ef 2,16; 4,3-4).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A paz, que é dom de Cristo, surge então como consequência dessa vivência recíproca do amor. Sendo Deus a fonte de todo amor, cabe ao cristão, que vive nesse amor, agradecer a Deus (v. 15).

Que a palavra de Cristo, com toda a sua riqueza, habite em vós. Ensinai e admoestai-vos uns aos outros com toda a sabedoria. Do fundo dos vossos corações, cantai a Deus salmos, hinos e cânticos espirituais, em ação de graças (v. 16).

“A palavra de Cristo”, outros manuscritos trazem “do Senhor” ou “de Deus”. O texto primitivo trazia talvez simplesmente: “A palavra” (cf. Fl 1,14; Mc 4,13-20). Parece referir-se às reuniões litúrgicas, com ensinamentos partilhados ao mesmo nível (cf. Jr 31,34; 1Jo 2,27) e cânticos inspirados pelo Espírito. Trata-se indubitavelmente de improvisações “carismáticas” sugeridas pelo Espírito durante as assembleias litúrgicas (Cf. 1Cor 12,7; 14,26; Ef 5,19s), hinos ou súplicas cristãs, compostos a imitações dos salmos; alguns deles passaram ao NT (cf. 1,15-20; Ef 1,3-14 etc.).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A segunda parte da exortação frisa a importância de ter uma vida modelada pelo evangelho. A Palavra de Cristo, seu evangelho, deve habitar no cristão como num santuário (v. 16). Se é assim, na comunidade os membros se edificam mutuamente: pela instrução mútua; pela celebração em conjunto (salmos, hinos, cânticos), em ação de graças. Tudo isso transborda no falar e no agir, que têm sempre sua origem no Senhor e são feitos por causa dele (v. 16-17).

Tudo o que fizerdes, em palavras ou obras, seja feito em nome do Senhor Jesus Cristo. Por meio dele dai graças a Deus, o Pai (v. 17).

Da fé se passa à vida, da liturgia se passa ao resto da existência sob o signo de Jesus como Senhor e de Deus como Pai (1Cor 10,31).

Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas. Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor. Pais, não intimideis os vossos filhos, para que eles não desanimem (vv. 18-21).

Como em Ef 5,21-6,9 (cf. 1Pd 2,13-3,7), seguem-se os preceitos particulares de moral doméstico e trabalhista em 3,18-4,1 (nossa liturgia omitiu a relação dos senhores e escravos que se encontravam também em casa), na qual também se destaca a reciprocidade (“mutuamente”, “um ao outro”). O autor da carta não propôs uma revolução das estruturas sociais (por ex. insurreição dos escravos como fez Spartacus e que foi derrotada em 70 a.C.), mas uma mudança nos corações inspirada no mandamento do amor cristão: amar o próximo como a si mesmo, amar como Cristo nos amou.

Se por um lado aceita a desigualdade de grau, por outro insiste em deveres correlativos, entre marido e mulher, pai e filho, patrão e escravo. Tudo deve acontecer com sentido religioso: “como agrada ao Senhor, por respeito ao Senhor, servindo ao Senhor, um Senhor no céu”. Os conselhos práticos são culturalmente condicionados. Mas o fato de passar da doutrina à prática é um ensinamento ou exemplo permanente.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: Dessa maneira, se a mulher devia estar subordinada ao marido, isso se deveria dar “como convém no Senhor” e não segundo um modelo social qualquer. Não se explica o que “convém no Senhor”, como se fosse coisa já conhecida pela comunidade. Mas as exortações ao amor mútuo feitas imediatamente antes oferecem indicações nesse sentido. De forma paralela, também os maridos devem “amar suas esposas”, um modo de falar que não era tão comum na época – e, mais, com o amor cristão delineado nos v. 12-15. A mesma relação de amor recíproco deve permear o relacionamento entre pais e filhos (v. 20-21).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1443) comenta o conjunto de 3,18-4,1: A carta desce a aplicação concretas na vida prática para a família e para a sociedade. Cabe lembrar que o contexto é da família patriarcal e da sociedade escravista (Ef 5,21-32; Tt 2,1-10). Imaginar outra estrutura familiar e política, simplesmente, não era fácil para a época. Mas, ao interno dessas estruturas, a proposta de relações é bem diferenciada. A subversão na relações se dá primeiramente pelo senhorio de Jesus Cristo. Já não há senhores e escravos na sociedade, quando todos têm um só Senhor no céu. Outro elemento que subverte as relações é que se estabelece a reciprocidade total. Se alguma prioridade existe, é justamente em prol dos mais fracos. Daí porque, na ordem das recomendações, o texto privilegia as mulheres, os filhos e os escravos. Um terceiro elemento muito forte de subversão é o caso do escravo que se torna herdeiro (v. 24).

Evangelho: Lc 2,22-40 (versão breve: vv. 22.39-40)

O evangelho de Lucas começa e termina no Templo de Jerusalém (1,8; 24,53). O templo era o centro religioso, político e econômico do judaísmo. Para Lc, Jerusalém é o centro predestinado da obra da salvação (cf. 9,31.51.53; 13,22-23; 17,11; 18,31; 19,11; 24,47-49.52), é o lugar da “libertação” (v. 38) pascal e o ponto de partida da missão cristã (cf. At 1,8). Dentro da história da infância de Jesus, ouvimos hoje da primeira visita de Jesus no templo, “a casa do meu pai” (v. 49), como ele vai dizer na sua segunda visita aos 12 anos.

Lc escreve para gregos e romanos que não conhecem a Terra Santa; ele não polemiza contra os judeus, mas descreve com simpatia seus costumes. Simeão e Ana representam a boa acolhida por parte dos judeus piedosos. Em Mt, porém, a família sagrada é perseguida na Judeia e tem que fugir de Herodes (Mt 2). A diferença explica-se pelo fato de que Mt escreve para judeu-cristãos que sofrem ainda hostilidades por parte dos fariseus (cf. Mt 23).

Quando se completaram os dias para a purificação da mãe e do filho, conforme a Lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor. Conforme está escrito na Lei do Senhor: “Todo primogênito do sexo masculino deve ser consagrado ao Senhor” (vv. 22-23).

O decreto de César Augusto causou o deslocamento de José e Maria para Belém, agora é a fidelidade dos pais à lei judaica (vv. 22.24.27) que os motiva a ir a Jerusalém para a “apresentação do Senhor”, exatamente 40 dias depois do seu nascimento (a festa no dia 02 de fevereiro). Na verdade, a “apresentação” do “primogênito” no templo não era requerida por lei, mas possível (cf. Nm 18,15) e devia aparecer convenientes às pessoas piedosas (cf. 1Sm 1,24-28). O que a lei prescrevia, era um sacrifício para “resgatar o primogênito” em agradecimento a libertação da escravidão quando Deus tinha matado todos os primogênitos dos egípcios, mas poupado os primogênitos dos hebreus (cf. Ex 13,2.12-15). Os primogênitos dos humanos e dos animais pertenciam a Deus (cf. Gn 22; Ex 22,28-29; 34,19-20; Nm 3,46-47; em Nm 18,15-16 estipula-se o pagamento de 50 gramas de prata ao sacerdote).

O menino Jesus já foi circuncidado no oitavo dia (v. 21; Gn 17,12; 21,4), provavelmente na sinagoga de Belém, e Maria era impedida de ir ao santuário em Jerusalém por mais 33 dias, porque a lei judaica considerava o sangue da menstruação e do parto uma coisa “impura” (Lv 15,25-32; Mc 5,25-34). Em quase todas as sociedades primitivas, a regra da mulher constitui a impureza temida despertando emoções provocadas por toda manifestação da vida sexual como a angustia sentida diante do sangue que corre sem que se tenha querido. Mas na Lei de Moisés obviamente consta uma prescrição machista, porque se estipulou ainda o dobro do tempo de purificação em caso do nascimento de uma menina (cf. Lv 12,1-5). Ao total são 40 dias depois do nascimento do menino, e este período fixou a data da festa da “Apresentação do Senhor” (também chamada Nossa Senhora das Candeias, no Candomblé é Yemanjá), no dia 02 de fevereiro, 40 dias depois do Natal.

Foram também oferecer o sacrifício – um par de rolas ou dois pombinhos – como está ordenado na Lei do Senhor (v. 24).

O sacrifício exigido pela purificação da mulher era um cordeiro, “se ela não tem meio para comprar um cordeiro, pegue um par de rolas os dois pombinhos” (Lv 12,8). O fato de José e Maria não terem condições de oferecer um cordeiro demonstra mais uma vez a situação de pobreza em que Jesus nasceu (cf. v. 7; cf. 2Cor 8,9).

Em Jerusalém, havia um homem chamado Simeão, o qual era justo e piedoso, e esperava a consolação do povo de Israel. O Espírito Santo estava com ele e lhe havia anunciado que não morreria antes de ver o Messias que vem do Senhor. Movido pelo Espírito, Simeão veio ao Templo (vv. 25-27a).

O episódio de Simeão (vv. 25-35) e Ana (vv. 36-40) é um encontro do velho (AT) com o novo (NT). Simeão, “justo e piedoso, e esperava a consolação de Israel”, ou seja, a salvação do povo (v. 25; cf. Is 40,1; 51,12; 61,2). “O Espírito Santo estava com ele”, quer dizer que era profeta (v. 25; cf. Nm 11,17.25.29; 2Rs. 2,15; Is 11,12; 42,1; 61,1; Ez 11,5; Lc 1,41; 3,22; 4,1.18; At 2,4 …). Sua esperança apoia-se em muitas profecias antigas e na revelação pessoal de “que não morreria antes de ver o Messias que vem do Senhor”, lit.: antes de ver o “Cristo Senhor” (já v. 11; cf. 1Sm 24,7; Sl 84,10; 89,39.52; Lm 4,20). Outra vez, Lc menciona o Espírito que move Simeão na hora exata para encontrar o messias (Cristo).

Quando os pais trouxeram o menino Jesus para cumprir o que a Lei ordenava, Simeão tomou o menino nos braços e bendisse a Deus: ”Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar teu servo partir em paz; porque meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel” (vv. 27b-32).

A promessa se cumpre: Simão não só vê a salvação/consolação, mas toma o salvador nos braços (v. 28). Seu oráculo de louvor (vv. 29-32) corresponde ao salmo de Zacarias sobre João (1,67-79), mas em vez de se inspirar nos Salmos, tira seus termos da segunda parte do livro de Isaias (cf. Is 40,5; 42,6; 49,6; 52,10).

Proclamando a salvação concedida em Jesus, Simão se sente como escravo (“servo”) livre para “partir” (cf. Ex 21,26; Dt 15,13), certo de um futuro esplêndido (v. 32) que começa “agora” (v. 29). Por isso Simeão pode morrer tranquilo. Como também o hino de Maria (Magnificat) e o de Zacarias (Benedictus), este louvor de Simeão (em latim Nunc dimittis) entrou na Liturgia das horas, antes de dormir (o sono como imagem da morte).

Em Belém, o anjo já proclamou aos pastores que Jesus é o messias salvador, alegria “para todo o povo” (vv. 10s), mas agora anuncia-se pela primeira vez que é a salvação também dos pagãos (vv. 31-32; cf. 24,47: “a todas as nações, a começar por Jerusalém”; cf. At 1,8). Outra vez proclama-se o conjunto de paz, salvação, luz e glória (cf. vv. 9.11.14).

O pai e a mãe de Jesus estavam admirados com o que diziam a respeito dele. Simeão os abençoou e disse a Maria, a mãe de Jesus: “Este menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição. Assim serão revelados os pensamentos de muitos corações. Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma” (vv. 33-35).

Simão dá a benção (provavelmente sacerdotal; cf. Nm 6,22-25; 1Sm 2,20) ao casal e anuncia outro oráculo somente a Maria, porque José já terá morrido antes da sua realização (cf. Mc 6,3 não o menciona mais). A missão de Jesus de ser luz do mundo pagão será acompanhada de hostilidade e perseguição por parte do seu povo (cf. vv. 34-35; Mt 2,1). O pano de fundo é a profecia de Ml 3,1-4 na qual a entrada do Senhor no santuário é uma grande purificação. A profecia de Simão usa imagens bélicas: o sinal do estandarte (Sl 74,4.9), o tomar partido (cf 12,51, o cair e levantar-se (Is 8,14; Sl 20,9), a espada como emblema (Ex 33,2; Am 9,4).

Jesus será um “sinal” que não se impõe, mas ser acolhido livremente na fé. Uma parte importante de Israel o recusará (cf. At 28,26-28; cf. Is 8,14,16; Lc 20,17-18). Jesus denunciará muitas vezes a incredulidade no pensamento dos seus ouvintes (cf. 5,22; 6,8; 9,47; 24,38). Sua missão revela os segredos (pensamentos) dos corações (cf. Mc 7,6-8; Lc 16,15; At 1,24; 15,8).

“Uma espada te transpassará a alma” (v. 35); como em 1,46 e muitos outros textos a alma representa a pessoa, mas aqui obviamente não o corpo, mas a parte psíquica, emocional. Inspirada em Ez 14,17, esta ameaça deve ser interpretada segundo seu contexto: Israel vai se dividir diante de Jesus, e Maria como verdadeira Filha de Sião será dilacerada por esse drama. Pode-se ver aqui também o primeiro anúncio da paixão (cf. Jo 19,25; Zc 12,10).

Havia também uma profetisa, chamada Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era de idade muito avançada; quando jovem, tinha sido casada e vivera sete anos com o marido. Depois ficara viúva, e agora já estava com oitenta e quatro anos. Não saía do Templo, dia e noite servindo a Deus com jejuns e orações (vv. 36-37).

Lc tem o bom costume de não só falar dos homens, mas também das mulheres (cf. os textos próprios sobre a viúva em Naim em 7,11-17; a pecadora e as seguidoras de Jesus em 7,36-8,3; Marta e Maria em 10,38-41; a cura da mulher encurvada em 13,10-17; a mulher que procura a moeda em 15,8-10; a viúva contra o juiz em 18,1-8; as mulheres de Jerusalém em 23,27-31 e outras no túmulo vazio em 24,10s; cf. At 1,14; 9,36-42; 12,12s; 16,14-18; 18,2s.18.26 etc.). Lc destaca o papel de Maria e Isabel na infância de Jesus (cap. 1-2) e parece ter informações privilegiadas de Maria (cf. 2,19.51). Aqui, segundo seu costume, Lc põe uma mulher ao lado do homem: a Simeão, se junta uma viúva, Ana.

Ana é de uma tribo setentrional (Aser). É viúva e anciã, como Judite (Jt 16,22-23), “profetisa” como Miriam (Ex 15,20), Débora (Jz 4-5) ou Hilda (2Rs 22,14). “Não o saia do templo” (v. 37, ideal de perfeito israelita, cf. Sl 23,6; 26,8; 27,4; 84,5.11), “dia e noite servindo a Deus com jejuns e orações” (cf. 18,7; At 20,31; 26,7). Lc gosta de mencionar a constância no serviço e na oração (cf. a viúva em 18,1-8) e a atribui aqui a Ana, contrariamente ao costume judaico que não admitia as mulheres à noite no recinto do templo (cf. sobre o direito da mulher ouvindo a Palavra no episódio de Marta e Maria em 10,38-41).

Ana chegou nesse momento e pôs-se a louvar a Deus e a falar do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém (v. 38).

Segundo Jl 3,2, nos últimos tempos, profetizarão homens e mulheres, jovens e anciãos (cf. At 2,17-18). Ana se une a Simeão e louvando a Deus dispõe-se a “falar do menino a todos que esperavam a libertação de Jerusalém” (v. 38). Esta libertação (lit. resgate, termo da lei dos primogênitos, cf. v. 23) do povo eleito (cf. 1,68; 24,21) interessava em primeiro lugar a capital Jerusalém (cf. Is 40,2; 52,9).

Depois de cumprirem tudo, conforme a Lei do Senhor, voltaram à Galileia, para Nazaré, sua cidade (v. 39).

Em Lc não há notícias sobre uma fuga ou uma estadia no Egito relatadas em Mt 2. Mt e Lc escrevem na mesma época (cerca de 80 d.C.), mas em lugares diferentes sem conhecer um ao outro. Ambos usam duas fontes: o evangelho de Mc (escrito em 70 d.C.) e uma fonte catequética que continha palavras de Jesus (bem-aventuranças, parábolas etc.; esta fonte, chamada Q, se perdeu na história e só pode ser reconstruída a partir de textos comuns em Mt e Lc). Mas fora das duas fontes, nas narrativas da infância (e das aparições do ressuscitado), Mt e Lc concordam apenas em poucos pontos, porém essenciais: Jesus foi concebido do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria em Belém e foi criado em Nazaré; José é pai adotivo e descendente de Davi. Nos detalhes, porém, há bastante diferenças entre Mt e Lc.

Em Lc, Maria e José já moravam em Nazaré desde o início e só se deslocaram a Belém por causa do recenseamento. Depois do nascimento do menino em Belém e a apresentação no Templo de Jerusalém, voltam para casa em Nazaré (v. 39). Em Mt, a história é diferente: Desde o início, Maria e José já moravam em Belém numa casa onde Jesus nasceu (Mt 2,11), depois fogem para Egito (Mt 2,13s) e voltam para Israel só depois da morte de Herodes; e por causa do filho mais cruel de Herodes reinar em Jerusalém, a Sagrada Família não vai mais para usa casa em Belém (6 km de Jerusalém), mas migra para a Nazaré, povoado distante na Galileia (Mt 2,19-23).

Não é fácil conciliar os dois relatos. Ou Lc omitiu a fuga ao Egito (por qual motivo? Ou nem sabia dela?), ou Mt inventou-a. A maioria dos exegetas modernos considera o relato da visita dos magos e da fuga ao Egito uma ideia teológica de Mt. “Ao contrário da anunciação, a adoração dos magos não toca em nenhum aspecto essencial da fé. Poderia ser uma criação de Mt, inspirada por uma ideia teológica; em tal caso, nada cairia por terra” (Daniélou, citado por Bento XVI, Infância de Jesus, p. 99).

Assim, Mt poderia seguido uma tradição judaica de narrativas (midrash) que inventavam ou ampliavam relatos sobre Moisés e outros personagens. O evangelista não quer dar um testemunho falso da história, mas revelar seu sentido espiritual: através desta introdução em forma de narração, Mt ajuda e motiva seus leitores judeu-cristãos a lerem e entenderem que Jesus não é só o Messias de Israel (cf. genealogia em Mt 1,1-17), mas também um novo Moisés sobrevivendo à matança dos recém-nascidos ordenada por um rei (Faraó, Herodes) e “saindo do Egito”, dando depois uma nova interpretação libertadora da “Lei” (no sermão) na “montanha” (Mt 5-7).

O evangelista Lc, porém, segue sua pesquisa histórica para convencer seus leitores greco-romanos. No seu prólogo, fala de “testemunhas oculares” e “acurada investigação de tudo desde o princípio” (1,1-4). Portanto, a narração de Lc que fala da volta da família sagrada a Nazaré, em vez de fugir ao Egito, é bem mais provável.

O menino crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele (v. 40).

A breve notícia que conclui o evangelho de hoje é estritamente paralela à de 1,80 sobre João Batista (sem se retirar ao deserto) e será repetida em v. 52 (cf. o crescimento do menino Samuel em 1Sm 2,21.26; 3,19). No ambiente greco-romano que valoriza a filosofia (a palavra grega significa: amor à sabedoria; cf. At 17), Lc se detém na qualidade de “sabedoria” que inclui conhecimento, juízo, sensatez. Jesus não a recebe de uma vez (como poderia sugerir Is 11,2), mas por maturação lenta. Na sua pregação, Jesus adotará o estilo sapiencial com mais frequência que o profético (cf. parábolas). Lc quer frisar, que ela é um bem próprio de Jesus (v. 52; 11,31; 21,15). Sobre João estava a mão do Senhor (1,66), como sobre os profetas. Sobre Jesus está a “graça (favor)” por excelência (cf. 1,28).

O site da CNBB comenta a respeito de Simeão e Ana:  Quem espera no Senhor jamais será decepcionado, pois ele sempre cumpre as suas promessas. Deus prometeu durante todo o Antigo Testamento a vinda do Messias e muitos em Israel acreditaram nessa promessa, vivendo na esperança da sua chegada. O canto de Simeão nos mostra esta esperança e a alegria da realização da promessa, assim como os elementos principais da missão messiânica de Jesus, que será um sinal de contradição para o povo, pois será libertação para o pobre e condenação para aqueles que não acreditam nele e na sua palavra, de modo que não se convertem.

Toda pessoa que faz da sua vida um serviço a Deus vive a alegria do encontro com ele. Com Ana não foi diferente. Depois de oitenta e quatro anos vividos na busca da realização da vontade de Deus, ela tem a alegria do encontro pessoal com ele. Mas Ana não fica com essa alegria só para ela; sai anunciando a todos que aquele menino é a resposta do próprio Deus a todos os que esperam a verdadeira libertação. E este anúncio é acompanhado do reconhecimento do amor de Deus, que é fiel às suas promessas, através do louvor a ele.

Voltar